Joana acordou pela segunda vez na madrugada. Olhou o relógio e eram 02:30. Foi despertada pelo mesmo sonho que vinha atordoando sua mente desde a última visita que fizera a seu pai no hospital, há uma semana: a Morte, em todo o seu esplendor, lhe encontrava em uma floresta escura e sem vida – todas as suas folhas estavam despencadas no chão e a neblina cobria todos os lados. Tudo era escuridão, mas, ao longe - se ela se esforçasse bastante –, era possível ver uma pequena luz cintilar e era para lá que o dedo cadavérico da Morte apontava. Joana sabia que não deveria confiar em uma entidade como a Morte, mas algo a impulsionou em seguir a luz.
Alcançando-a, viu que o lugar tinha alguns cravos da cor amarela e uma pequena mesa de xadrez amadeirada e que a Morte lhe desafiava a jogar. Joana sentou e as jogadas começaram em meio a uma conversa franca, onde a Morte apontava a necessidade do perdão entre ela e Torres. A Morte mais parecia uma deusa que tudo sabia, estava em seus trajes pretos e Joana desconhecia seu rosto, apenas ouvia a sua voz, que ecoava junto com o vento, e conhecia os seus dedos esqueléticos que dominavam as peças do jogo com destreza. A Morte, em meio a um movimento e outro, não tinha pena de pôr o dedo na ferida, mas, ao mesmo tempo, ela sabia como acalmar a alma sofrida de Joana após suas pequenas vitórias. Mas, no fim de tudo, era Joana quem dizia “Xeque-mate” para a Morte e ela sabia o que aquilo queria dizer: não haveria perdão. Joana não via, mas, sentia a Morte sorrir desapontada com a sua decisão e desaparecer vagarosamente enquanto seus olhos se abriam na escuridão do quarto com o coração a bater desesperadamente.
Equilibrando o seu espírito agitado pelo sonho, ela suspirou e, de bruços para cima, manteve os olhos bem abertos e fixos no teto—não queria voltar a dormir! Ouviu o respirar de Théo e o seu corpo se movimentando e mudando de posição na cama – provavelmente, estava tendo algum sonho bom. Suspirou sentindo uma intensa vontade de colocar a cabeça no peitoral daquele homem e, ouvindo as batidas de seu coração, transferir para si aquela sensação de paz, mas, ficou com medo de despertá-lo do momento de descanso que ele estava tendo depois de um dia tão árduo de trabalho. Ainda inquieta, acabou optando por levantar de fininho; pegou o robe preto trabalhado em seda com detalhes de renda que estava em cima de uma das poltronas que ficavam ao pé da cama e que combinava com a camisola longa e seguiu para a sala de estar.
A sala do apartamento em que Joana e Théo viviam era imensa e era organizada com uma decoração que trazia uma mistura do estilo moderno com o clássico. O piso era amadeirado com um aspecto rústico em tom claro, as paredes eram completamente brancas e se iluminavam quando o sol adentrava pelas cortinas de vidro da janela. Os sofás eram da cor branca assim como as paredes e tinham uma forma quadrada com espaço para cerca de seis pessoas, o encosto era bem baixo, mas as almofadas em tom cinza, bege e dourado que deixavam o espaço bem confortável. Além disso, a sala tinha quatro poltronas – iguais às do quarto – com o estofado decorado em linhas brancas e bege, e contornado com um material de cor dourado; no meio do espaço deixado pela organização dos dois sofás e das quatro poltronas, havia dois pequenos centros, bem baixinhos, em tom mais ou menos similar ao do piso que tinham seus visuais completos com vidro em cima e finalizados com um jarro transparente que carregava belíssimas tulipas amarelas e algumas revistas e livros - que nunca foram lidos por Joana.
Os pés de Joana, que antes tocavam a madeira fria, estavam agora pisando o tapete quente e aconchegante que ficava na sala. Ela ainda caminhou alguns metros para que chegasse até a sua parte favorita da casa: uma janela com uma belíssima cortina de vidro que percorria toda a dimensão da sala e que tinha uma esplêndida vista para o mar. Joana aproximou-se da janela como se pudesse atravessá-la e suspirou. Viu que o ar que saía de suas narinas deixou rastros pelo vidro, seus dedos dançaram numa tentativa de escrever algo no vidro embaçado, como fazia quando criança, mas, desistiu ao ver que ele se desfazia com rapidez. Lançou um olhar para o mar se movimentando na escuridão, mas não conseguiu enxergar as ondas, abriu uma fresta da janela, fechou os olhos e puxou para dentro dos pulmões todo ar que pôde e o cheiro de maresia impregnou seu ser. Sentiu o seu robe voar com a brisa revoltada do vento e expirou enquanto ouvia o canto de vaivém que as ondas faziam. Naquele momento, seu coração se machucou com a saudade das cores e dos ares da fazenda – mesmo que eles fossem demasiadamente áridos!
Tiveram que se mudar para a capital do estado quando a doença de Torres não deixava mais margem para uma vida interiorana e a condição dele já não dispensava um acompanhamento médico, consequentemente, mudaram também a sede da Jota. Co; a empresa que começou com a proposta de uma indústria familiar e, nas mãos de Joana, se expandiu. Ela esboçou um sorriso cheio de satisfação e de ambição, coisa que sempre lhe foi natural, e ficou mais alguns instantes aproveitando um pouco mais a brisa que o mar oferecia - ela sempre foi um pouco extravagante quando se tratava de ter uma vida luxuosa, mas, sabia apreciar as coisas simples também.
Depois de menos de quinze minutos, ela fechou a janela, ajeitou o robe completamente bagunçado e estava prestes a sair da sala de estar quando se voltou para trás e viu que Théo estava a poucos metros dela, observando-a com os olhos cheios de atenção. Joana ergueu os olhos escuros sem esconder o susto e a desconfiança natural que eles traziam, depois, sorriu para Théo – coisa que não era tão difícil de fazer. Seus cabelos que caiam abaixo do pescoço, sua pele que beirava o dourado, seus olhos que de tão azuis pareciam ser cinzas e que sempre estavam em perfeita sincronia com todas as maravilhas do mundo, além da boca… Ah, aquela boca! Sempre parecia estar pronta para um delicioso beijo. Ele parecia uma verdadeira obra de arte viva.
- Joana? - ele já estava perto o suficiente dela. Em que momento ele havia se aproximado tanto? - Você ouviu alguma coisa do que eu disse?
Ela poderia mentir, mas, simplesmente, sorriu envergonhada por não ter dado a necessária atenção:
- Absolutamente nada. - ela suspirou e inventou uma desculpa qualquer – Estava pensando em alguns números…. - ela percebeu o sorriso de Théo se abrir ao reconhecer a sua mentira. Ela acabou sorrindo também, era involuntário…. Théo conhecia muito bem os efeitos que ele tinha sobre Joana – Desculpe. O que você disse mesmo?
- Perguntei se você teve aquele sonho de novo.
Joana suspirou e fez uma careta, caminhou em direção ao sofá e jogou seu corpo de qualquer jeito, bagunçando as almofadas e amassando ainda mais o seu robe. Théo olhou o robe entreaberto e amassado no corpo dela e ele a desejou, mas, achava que aquele não era o momento; decidiu, simplesmente, que seria melhor acompanhá-la e servir de apoio para que sua cabeça descansasse.
- Sim. - Joana, finalmente, respondeu. Depois, pausou e fixou o olhar – Infelizmente, sim. - falou baixinho na intenção de que Théo não escutasse, afinal, não tinha o menor interesse em conversar sobre aquilo novamente.
- Joana… - ele deslizou a mão pelo braço dela até que alcançasse a sua mão e o corpo de Joana se arrepiou por completo com aquele toque – Você sabe que poderia ter me acordado, eu poderia te fazer companhia, conversar sobre isso… - a outra mão de Théo percorreu o rosto de Joana, ela fechou os olhos num gesto de prazer e aquela escuridão era melhor do que muita coisa que ela já tinha visto em toda a vida – Não sei! O que você quisesse fazer! Você sabe que pode contar comigo! - a voz dele não fazia questão de esconder que estava chateado
- Théo – ela abriu os olhos e sorriu para ele, soltou a mão que ele segurava e se sentou. Olhou-o nos olhos, depois apanhou a mão dele e beijou-a – Eu sei que você é uma pessoa com quem sempre poderei contar. Eu sei que poderia te acordar e te pedir um carinho, pedir um colo… Mas, o que eu quero no momento é que você esteja descansado e disposto para amanhã. - ela pausou – Amanhã é um grande dia para você, meu querido. - Joana olhou para o relógio de modelo antigo que ficava no canto da sala - Aliás, hoje é um grande dia para você - ela olhou dentro dos olhos dele - E pra mim também.
Os olhos de Théo flamejavam de alegria e orgulho. Joana já sabia como ele se sentia bem e extremamente incentivado quando ela fortalecia os sentimentos que existiam entre eles. Joana não era a mais romântica das mulheres – aprendeu a preservar o que restou do coração –, mas não teve muitas dificuldades em aprender a se libertar um pouco mais com Théo. Ele não era um homem difícil de se conviver, ele era divertido, romântico… “Gostoso”. Ela sorriu maliciosamente e esperou que Théo não visse aquela reação, sabia que ele nutria um desejo muito forte por ela - assim como ela por ele.
O motivo de tanta preocupação da parte de Joana era que, mais tarde, naquele mesmo dia, Théo realizaria uma prova muito importante para que trabalhasse como treinador da equipe estadual de hipismo. Ele foi um grande hipista e vinha ganhando um destaque cada vez maior no cenário de treino e preparo de novos atletas – certa feita, tinha até sido convidado por uma equipe de hipismo russa –, por isso, Joana tinha certeza que aquela seria uma etapa atravessada com sucesso. Definitivamente, aquele seria um dia importante para os dois e, por isso, ela desejava que ele estivesse descansado.
- Eu me dediquei muito para isso, meu amor… - ele soltou as mãos das de Joana e passou-as rapidamente bagunçando ainda mais os cabelos dele. Ele era encantador. Joana suspirou. - Estou um pouco nervoso, mas… - ele suspirou – Eu acredito que tudo vai dar certo. De verdade.
- Não tem por que ter medo, meu querido. - ela penetrou nos olhos de Théo com uma confiança inabalável, que lhe parecia era natural. Na verdade, era. Em raras situações, Joana se deixava abater por qualquer fator externo. Ela era uma guerreira, estava em seu sangue - Vai dar tudo certo. - ela pausou - Você quer que eu prepare um chá? - ela estava se levantando para seguir para a cozinha. - Quem sabe você se acalma mais e vol…
- Não! - ele puxou Joana para os seus braços e seus olhos mudaram a expressão: aquele amor tranquilo, o carinho se esvaíram e o fogo do desejo dominou o olhar de Théo por completo – O que eu quero, tenho certeza que você vai me negar.
O homem encheu os lábios dela de beijos e Joana sorriu. Ela o provocou e subiu um pouco a camisola, depois sentou, com as pernas abertas entre as pernas dele e, olhando dentro daqueles lindos olhos, disse como num sussurro:
- Uma das suas características mais felizes é o fato de ser realista. - eles sorriram juntos. A verdade era que Joana estava toda arrepiada, mas, tinha que se controlar. Era para o bem de Théo. - Não faço por mal, você sabe. - ela alisou o rosto dele – O máximo que posso fazer por você hoje é isso…
Ela rasgou os lábios de Théo com um beijo, ele apertou a cintura dela com força e, por um instante, se preocupou de que aquele “máximo” terminasse com os dois sem roupas ali no tapete da sala – o que seria uma opção muito boa, na verdade. Théo virou um pouquinho para o lado direito e deitou Joana no sofá, depois voltou a beijá-la, ele mordeu o lábio inferior dela e abriu o robe.
- Théo… - Joana falou quase que num tom de súplica – A sua prova…
Ele passou a mão por debaixo da camisola dela e ouviu o gemido abafado de Joana. Depois, olhou-a nos olhos e disse bem baixinho em um tom extremamente calmo:
- É minha prova, Joana. Eu sei o que faço.
Joana sorriu com aquela colocação. Não escondeu que tinha tanta vontade de tê-lo dentro de si quanto ele tinha vontade de possuí-la. Théo beijou o pescoço dela, mordeu a ponta de sua orelha e, naquele momento, a Morte, a saudade da fazenda, a necessidade de perdão ou qualquer outra foi esquecida e eles fizeram amor ali mesmo. Joana cravava as unhas nas costas de Théo; entre beijos e mãos perdidas pelo corpo dela, ele se acomodava cada vez mais dentro do corpo da mulher e, a cada movimento, ela se sentia pecaminosamente amada. Sabia que aquele não era o momento para se pensar esse tipo de coisa, mas voltou a se perguntar o que fizera de tão bom para merecer aquele homem em sua vida, no fim, achou melhor deixar aquilo de lado e aceitou o simples fato de que alguém a amava – isso não era impossível.
Quando terminaram, estavam como ela previu: deitados no tapete e sem roupas. Sem abrir os olhos, ela se voltou para Théo; a sua respiração ainda estava ofegante, mas logo que ela abraçou o corpo nu do homem, sentiu uma luz que fazia a vida dela perder um pouco da escuridão que há tanto tempo carregava e ela se sentiu plenamente tranquila. Ficaram alguns instantes ali, abraçados e se recuperando, mas, Théo tinha que voltar a dormir logo, pois, a competição se iniciaria em poucas horas. Ele convidou Joana para se deitar junto a ele, mas, ela disse que aproveitaria o tempo que ainda tinha para adiantar umas atividades da empresa que havia deixado pendente. Depois de se vestirem, ela beijou os lábios de Théo e desejou-lhe um bom sono, depois voltou-se para o mar e esperou ter certeza de que o rapaz tinha voltado a dormir.
Depois de todo o momento de prazer que teve com Théo e, mesmo com todo aquele sentimento que ele lhe trazia, a saudade da fazenda ainda a domava; mas, não era bem a fazenda, ela sabia. Na janela, seus dedos tamborilavam em resposta a essa angústia e, com o tempo, eles foram ganhando vida própria, passando a percorrer as paredes como se a guiasse até o remédio que acalmaria aquela turbulência que havia se instalado em seus sentimentos. Quando suas mãos finalmente alcançaram a porta do escritório, a agitação de seu coração diminuiu e, de repente, o medo tomou conta – era como se ela estivesse prestes a cometer um grande pecado! Mas, ainda assim, ela entrou no cômodo cheio de livros e obras de arte, e apanhou o tablet. Sua consciência gritava dizendo que aquilo era errado. Ela sabia que era, mas quando sentou-se na cadeira do escritório, foi quase que num pulo: ligou o tablet e, enquanto esperava que iniciasse, girou a cadeira algumas vezes.
Traidora. Traidora. Traidora. Sua parte culpada conspirava contra ela e isso a enlouquecia! Quando o aparelho finalmente iniciou, as vozes se calaram e ela abriu uma aba de pesquisa no navegador. Ainda reticente piscou para a tela inúmeras vezes antes de digitar o nome, aquele nome que nunca saíra de seu coração – mesmo quando a sua boca insistia em mantê-lo presas embaixo da língua.
- Edgar.
Ela sussurrou como se fosse uma confissão e, pela milésima vez, viu todas as notícias que diziam respeito a Edgar: a sua brilhante carreira de artista plástico, a sua vida no Japão, as suas exposições mundiais que avançavam, cada vez mais, na direção de tudo o que eles viveram, o seu sucesso, a sua busca por uma vida reservada e fora dos holofotes. Ela foi até a parte de imagens e abriu uma foto dele, ampliou e o admirou por alguns instantes: Théo era lindo, estonteante, uma réplica real de Narciso e despertava nela o fogo do desejo, mas Edgar… Existia uma coisa entre eles, algo que superava desejo, a distância e, até mesmo, o ódio que ela dizia sentir por ele durante boa parte da vida, era algo que ainda estava em aberto. Era a tal centelha de que todos falavam, a fagulha que, com sorte, se encontrava apenas uma vez na vida – ela havia encontrado e foi a pior coisa que lhe aconteceu!
Nas fotos, o olhar dele era o mesmo de dez anos anos atrás, já o sorriso… Ela não saberia dizer o por quê, mas Edgar já não sorria mais. Ela passou as imagens na tentativa de encontrar alguma foto em que Edgar estivesse sorrindo e estava prestes a desligar o aparelho quando viu uma foto postada a poucos minutos: na foto ele estava com uma linda asiática que tinha os cabelos acobreados e o corpo estonteante, ela estava vestida num lindo vestido marsala midi que lhe caía como uma luva. Ela sabia quem era a mulher: Milena Watanabe, nome de referência no mundo das artes, a marchand e grande amiga de Edgar - possível affair, segundo alguns jornalistas. Sem conter seus dedos, Joana se dirigiu para a página em que estava a foto e viu que Edgar acabara de assumir a relação com Milena. Joana deu zoom na foto, encarou a foto sorridente de Edgar com desdém e ergueu uma sobrancelha, depois de um tempo disse para si mesma em tom irônico:
- Oh.. - sorriu - Que fofo, não é mesmo?! Que lindo… Finalmente, os jornalistas não precisam mais especular: Lelo e Milena Watanabe estão mesmo juntos!
Cinco minutos de uma conversa consigo mesma foram mais do que suficientes para Joana perceber quão ridículo era aquilo que fazia e não pôde deixar de se perguntar se Edgar fazia o mesmo – tinha certeza que não, mas, qualquer coisa era válida para que não se sentisse tão mal.
Joana já imaginava que fosse real o envolvimento de Edgar e Milena, mas era impossível maquiar o seu coração e fingir que não havia se entristecido. A sua tristeza se materializou na forma de uma lágrima, mas, ela conseguiu conter o restante que pretendia acompanhá-la. Ela não era de chorar e não seria naquele momento – tampouco por Edgar! - que as coisas mudariam. Enxugou a lágrima e apagou o histórico de todas as pesquisas que tinha feito, por fim, desligou o tablet e seguiu para o quarto.
A janela da sala e os primeiros raios do sol já mostravam a dança do mar. Ela observou por alguns instantes e teve certeza que a saudade da fazenda já não era tão grande quanto foi um dia. Seguiu para o quarto e, ao atravessar o umbral, viu o deus que estava deitado em seus lençóis… Parou na beirada da cama e sorriu satisfeita com a pessoa que tinha ao seu lado. Tirou o robe amassado e impregnado do perfume de Théo sem conseguir evitar de pensar sobre quem queria ser, quem tinha se tornado e o que ainda poderia ser nesse tempo. Deitou ao lado do rapaz, pegou o smartphone na cabeceira da cama e enviou uma mensagem à Elba, sua secretária, dizendo que cancelasse seus compromissos da manhã – só chegaria na empresa pela parte da tarde. Fechou os olhos e antes de dormir agradeceu a Deus por tudo que tinha agora; as perdas do passado eram poucas. Edgar era, no fim, só mais um peão derrubado no grande jogo de xadrez da Vida.
Os olhos de Edgar atravessavam as bordas amadeiradas da imensa janela, estavam fixos na imagem da rua lá fora: as pessoas indo e vindo em seus trajes superaquecidos, a neve embranquecendo tudo ao redor deixando o mundo monocromático, milhares de carros, alguns pontos amarelos, as luzes vermelhas enfileiradas… Diziam que aquele seria o inverno mais rigoroso que teriam. Suspiro. Pensou que Nova York não era tão encantadora quanto diziam. Ele, particularmente, preferia mil vezes o Japão...! Se
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A alma de Violeta estava desolada. Ela sabia que José não era a melhor pessoa do mundo, mas, ele era o único irmão vivo que lhe restara e, da linhagem pioneira dos Torres, agora só restava ela. Ela, Violeta Torres, a mais rotulada de todas as Torres, a tida como mais frágil, a, secretamente, maldita como solteirona... Ela não se vitimizava por esses adjetivos que recebia, tampouco vivia culpando ou maldizendo os outros por não entenderem o que se passava com ela - e nem haveria de fazê-lo! -, ela apenas continuava a viver a vida que Deus lhe dera e buscava fazê-lo com o coraç&
O celular deslizou da mão de Edgar e, por pouco, não beijou o chão e se fragmentou em mil pedaços - Milena o alcançou rapidamente. Ele teve que desligar a ligação. Teve. Se continuasse ao telefone com tia Violeta entraria em colapso com ela do outro lado e isso era tudo o que ele não queria. As lágrimas que escorriam sem parar de seus olhos pretos não escondiam que algo estava errado, muito errado. Milena temia em perguntar o que havia acontecido, mas, usou as palavras. Ele não a ouviu - estava no mundo dos mortos, mais uma vez. Edgar se aproximou da parede e fez daquele pon
No velório de Torres, o sol não deu as caras. A chuva também não apareceu. O céu estava coberto de nuvens escuras que o encobriram mostrando a indiferença do tempo em relação à partida daquele filho de Deus. Enquanto o tempo escondia sua beleza, Joana, mesmo sem querer, estava particularmente deslumbrante. O vestido preto com tecido de veludo, de gola e sem mangas que ia até o joelho, marcava, sem vulgaridade, as curvas de um corpo que não escondia a paixão pela corrida; os óculos grandes com lentes pretas e as armações com detalhes dourados cobriam os olhos que se mantinham indiferentes diante da
A viagem de Edgar durou, no total, seis horas. Era um tempo menor com o que ele estava acostumado, mas, Milena já havia alertado que o jatinho era um dos mais modernos, o que dispensava a necessidade de pararem para abastecê-lo e diminuía o tempo da viagem. Quando desceu, Edgar sentiu o vento quente acariciar o seu rosto, e o artista pensou que aquela era uma maneira de a Natureza lhe dar boas-vindas. Ele fechou os olhos e inspirou levando aquele ar árido do nordeste da Bahia para os seus pulmões e lembrou-se de como é verdadeiramente se sentir em casa; o aconchego foi tamanho que, por debaixo de todas as roupas que ele utilizava, o calor começou a alca
O padre falou mil coisas lindas sobre Torres, e Joana tinha certeza que boa parte delas eram mentiras, mas, entendia que era um terrível hábito humano santificar certas personalidades após a sua partida. Torres não fora nenhum santo – essa era uma certeza que ela tinha – e não tinha a menor ideia de como poderia falar algo bom sobre ele com tantas concepções ruins guardadas em seu coração, mas, em seu íntimo, ela sabia que tudo daria certo. Théo deu um empurrãozinho em Joana indicando que a hora dela expressar seus sentimentos se aproximava, depois ele sorriu como quem diz: “Vai dar tudo certo&rd
Naquele dia, Joana insistia em desviar o olhar do calendário que decorava sua mesa, mas, acidentalmente, quando seus olhos se cruzaram com os números, viu que já iria se completar um mês desde que Torres havia falecido. Ela recebeu inúmeras ligações da tia, que tentava convencê-la a realizar uma missa de um mês para o descanso da alma do pai, mas, Joana preferiu não fazer e tinha seus motivos para tal comportamento: primeiro, porque ela estava cheia de ocupações na empresa; segundo, porque tinha que terminar de resolver algumas questões de seu casamento com Th&eac