Acordo no dia seguinte, com fome. Harry ainda está dormindo, então levanto devagar e vou até a cozinha. Quando termino o segundo sanduíche, vou até o banheiro e ligo o chuveiro. A água fria bate no meu corpo e eu tremo. Olho ao redor.
Tomo o cuidado de não olhar muito para o meu corpo, mas não funciona, e tenho vislumbres dos estragos nas minhas coxas e na minha barriga. Meu estômago dá um nó. Inclino o rosto para o jato do chuveiro e de repente a água fica quente, quente de uma hora para a outra. Finjo que o ardor repentino do calor é o motivo de eu estar chorando.
Quando saio do banheiro, Harry ainda está dormindo. Me tirar do mar em meio à uma tempestade o deixou exausto. Olhar para ele assim, cansado por causa de mim... isso acaba comigo. Saio para a varanda do chalé, e a brisa da manhã me envolve.
Depois de um momento, me assusto quando uma
— Não quero falar sobre isso agora — respondo, e enfio abacaxi e morango na boca. Pisco rapidamente e torço para as lágrimas não escorrerem. Eleanor lambe a gordura de bacon dos dedos calejados e limpa cada um deles em um guardanapo. — A maioria das garotas da sua idade vai para a faculdade, trepa com garotos, ganha peso, tira algumas notas boas, algumas notas ruins. Mente para a mamãe e para o papai. Coloca piercing, faz tatuagem... — Ela sorri para mim. — Mas você não é assim, certo? Harry disse que você só terminou o ensino médio. — Comecei um curso — respondo na defensiva, com a boca cheia de comida. Engulo. — Bom, quase. Mais ou menos. Eleanor morde um pedaço de abacaxi. Olha para mim com firmeza, os olhos ligeiramente aumentados pelas lentes dos óculos. E faz um som grave e explosivo na garganta. — Bum! — Ela abre os dedos. — Você guarda as pessoas dentro de você, é isso que acontece. As lembranças e os arrependimentos engolem você, elas v
Quase dois meses depois: Segunda-feira, 08 de janeiro de 2019 Londres, Inglaterra Grace Doutora Thompson sorri para mim. — Grandes mudanças — diz ela. — Cortou o cabelo. Não se feriu mais. Como está se sentindo? Olho para o lado. O peixinho parou no aquário, como se também estivesse me esperando abrir a boca. O corpinho balança na água. Será que ele gosta da casinha no fundo, com uma entrada grande o suficiente para que ele possa atravessá-la? Será que tem vontade de sair? Cruzo os braços e afundo na poltrona. — Nada — digo para ela, com a voz abafada. — Nada — repito. — Ainda não sinto nada. — A sensação é de um vazio ou você sente algo, mas não sabe? Não respondo. — Grace? Porque tem diferença aí, e quero que você pense nessa diferença. Vai ser essencial para o seu tratamento. Depois de m
— Eu tive uma professora na sexta série, na escola nova que fui transferida, depois da morte do meu pai. Ela era bem legal, até com as crianças mais agressivas da sala. Nunca gritava. Sempre me deixava em paz, não me obrigava a sair no recreio se eu não quisesse, nem a ir para a aula de educação física. Ela me deixava ficar na sala de aula escrevendo enquanto corrigia provas ou olhava pelas janelas grandes e quadradas. Uma vez, ela disse: “Grace, sei que as coisas estão muito difíceis agora, mas elas vão melhorar. Às vezes, a gente demora para encontrar um amigo especial, mas você vai encontrar. Puxa, acho que só fui ter uma amiga de verdade mesmo depois do ensino médio”. Ela estava certa. Eu encontrei minha amiga especial. Mas ninguém me avisou que eu ia matá-la.Dra. Thompson suspira:— Grace, nada do que aconteceu foi
Terça-feira, 23 de janeiro de 2019George não está indo bem com a carne na grelha. Disse que nunca tinha tentando antes, e a fumaça atrapalha sua visão. Estamos reunidos em torno de uma mesa de madeira comprida do lado de fora. O ar está frio. Natan me emprestou um suéter de lã. Hannah está cortando um queijo branco cheiroso e Harry está cortando fatias de abacate. Rebecca está dentro da casa, preparando as bebidas e alimentando um cachorro velho e cego que encontrou na rua.George coloca a carne lustrosa em uma travessa e a deposita sobre a mesa, abrindo o guardanapo no colo. Ele olha para o céu e então me olha por cima dos óculos e toma um longo gole de sua cerveja, suspirando satisfeito depois de engolir. Ele me encara:— Esse coração partido — George começa — é uma das lições dolorosas
Sexta-feira, 26 de janeiro de 2019Já amanheceu, mas eu ainda não dormi. As palavras que a psicóloga disse na consulta de ontem se repetiram na minha mente a noite inteira: "O corte é uma cerca de arame farpado que você constrói no próprio corpo para manter as pessoas do lado de fora, mas mesmo assim, você anseia em ser tocada. E agora?"Ela me pediu para fazer uma coisa que eu amasse. Fazer algo que me fizesse sentir prazer, alegria. Passo os dedos pelas cicatrizes nas pernas, passo a mão embaixo da blusa, nos cortes curados ou não. É tudo o que sou agora: cicatrizes e riscos.Harry saiu hoje de manhã para a sua primeira viagem à trabalho, no novo cargo que George deu a ele: responsável por todas as filiais da rede de hotéis da família. Então fico sozinha durante o dia, já que Rebecca também e
Domingo, 3 de fevereiro de 2019Hannah e Becca olham para a minha mala. Tudo está arrumado. Becca diz, baixinho:— Não consigo acreditar que você vai embora.— Mas eu vou voltar — respondo.— Acho bom que volte — Hannah diz. — E vai ser bom para você, Grace. Mas vou sentir saudades.— Eu também vou sentir saudades — seguro a mão dela.— Você vai falar comigo pelo Skype? Uma vez por semana? — Becca pede. Os olhos dela estão firmes, suplicantes.— Vou, claro.— Ligue para mim sempre que precisar, Grace. Você vai ligar para as meninas? Elas irão sentir a sua falta. — Hannah pede. Ela está sem fôlego. Os dedos dela apertam os meus.— Sim, Hannah.— Você vai procurar uma psicóloga enquanto estiver lá? — Becca p
Eu estava chorando antes mesmo de ele se aproximar de mim, quase me derrubando quando nos abraçamos. Com os braços apertados em volta de mim, tudo que eu conseguia pensar era em puxá-lo para mais perto, beijando o topo de sua cabeça enquanto eu suspirava meses de alívio.— Oi, bebê — sorrio, com lágrimas.— Por que está chorando? — Gabe se afasta e olha para mim.— Porque estou muito feliz em ver você.Eu não queria soltá-lo, assim como quando ele era um bebê. É a sua risada que senti falta de ouvir todos os dias e aquelas perguntas aleatórias, do nada, que ele fazia com tanta frequência. Ele é uma das únicas coisas no Brasil que eu sentia falta.— Você ainda tem a sua mãe, sabia?Olho para cima quando ouço a sua voz. Mamãe sorri para mim. Gabe se afasta quando ela m
— Eu também senti sua falta — sorrio. — Eu não tenho certeza de como vou lidar com isso quando você tiver que viajar novamente, serão meses.Harry assente, e deslizo meus braços em volta de sua cintura. Então ele diz:— Desta vez é diferente, sabe? Antes eu sentia falta da minha cama, mas nunca senti falta de outra pessoa antes. E agora, eu literalmente sinto sua falta o tempo todo.Sorrio e roubo outro beijo.— Acho que vai ficar mais fácil. Quero dizer, passamos todos esses meses juntos. Só temos que nos ajustar com a distância. Vai dar tudo certo.Ele ri, pega um frasco de xampu e diz:— Desde quando você é otimista?Dou de ombros, pego o frasco da mão dele e o faço trocar de lugar comigo, para ele ficar debaixo da água. Rindo, ensaboo um pouco de xampu nas mãos e passo pelo cabelo dele, m