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HISTÓRIAS DA SÉTIMA ERA

                 

                   THIAHUANACO

O homem é um ser construtor. Contudo, quando pensa em paraíso, nele coloca o que não construiu, mas apenas o que organizou.

Thiahuanaco... Há diversas lendas contadas pelos seres que viviam nas montanhas a respeito daquela cidade, que ora surge como a cidade dos deuses e ora como a cidade dos demônios, ou dos anjos, ou das pessoas ou de humanos visionários. Mas nada havia, nada acharam que explicasse a cidade e sua porta imensa. Quando os atuais moradores a encontraram ela já estava vazia, silenciosa e carregada de mistérios. Ouvindo um nome, Thiahuanaco, a chamaram de sua e dela tomaram posse por direito como se tivessem sido eles a tirá-la do chão. E ao portal, que acharam numa praça central, chamaram de “a Porta do Sol”, ou simplesmente de “Portal”, e sentiram-se confortáveis e satisfeitos com isso.

Feiticeiros e sonhadores foram trazidos para dizer sobre a cidade. Em transe a viram, e com vozes distantes disseram que os anjos é que a haviam construído no início da sexta era, e que a deram aos homens e entes, que lá viveram felizes e prosperaram por vastos anos. Lá, os moradores desenvolveram suas ciências e chegaram a examinar os profundos céus e infernos. Porém, ao final daquela era incrível e mágica, os videntes contaram que houve uma terrível guerra, e que seus antigos moradores fugiram em pânico, dizendo que os demônios a haviam tomado e devorado os que haviam permanecido.

Por milhares de sóis ela ficou abandonada, nenhuma pessoa ou homem se aventurando por muito tempo em suas proximidades. Mas os homens se esqueceram, e se esquecendo foram se instalando cada vez mais perto da cidade. Porém, havia algo nela que os impedia de olhá-la, e ela foi mantida à distância. Foi assim até que um dia se ouviram sons estranhos no ar, como de um chamado lamentoso e insistente, que corrompia seus corações. O tempo que passa enfraquece a memória, mesmo a coletiva. Alguns foram mais temerários e curiosos, ou descrentes do que chamavam de lenda, e incitaram a outros dizendo que os demônios, se acaso um dia lá estiveram, já haviam ido embora e se espalhado sobre a terra ou se escondido no submundo, e que a cidade estava limpa e protegida pelos deuses honestos e amorosos. Como não viram nada que os alertasse sobre qualquer risco todos acreditaram neles e alguns poucos, em princípio, nela entraram. Os dias passaram, e quando vários deles voltaram e lhes disseram que a cidade era belíssima e perfumada, e que só o bem vagava por lá, as defesas se desfizeram e todos, maravilhados, entraram e a chamaram de sua, e deram-lhe o nome de Thiahuanaco, e a si, como donos da terra, se chamaram de Thiahus.

O certo é que não acharam Thiahuanaco, mas foram intencionalmente levados para lá, como também é certo que a cidade nunca estivera vazia. Dois seres terríveis viviam entre seus muros de pedra, desde recuados tempos - Trevas e Escuridão nunca tinham abdicado de sua alma.

Com o correr dos dias após a ocupação muitos paravam pensativos à frente da porta enquanto outros, arrepiados, se recusavam a se aproximar dela, dizendo que ela transmitia algo ruim.

A porta do sol é um dos tantos mistérios que se ocultam naquelas montanhas, tais como as muitas cidades perdidas escondidas nas florestas e montanhas geladas e figuras e linhas estranhas no chão, como um beija-flor no solo do deserto e tridentes e figuras de seres desconhecidos nas faces de algumas montanhas, somente vistos pelos seres alados ou sobre as costas de poderosos condores. Entretanto, de todos eles, os maiores mistérios eram, sem dúvida, a porta e a própria cidade, abandonados às margens do lago sagrado.

A porta do sol tem uma altura de 2,75 metros, com largura de 3,84 metros e espessura de 0,5 metro, toda esculpida em uma mesma massa de pedra de andesita. Um belo frontispício decora sua face voltada para a praça, bem acima do vão da porta, constituído por um friso de quatro faixas horizontais ao centro das quais se encontra a figura de um deus em destaque. Na altura mediana da porta, na face dianteira, dos dois lados foram esculpidos nichos retangulares, enquanto na sua face traseira tem entalhado seis nichos, dois grandes, da altura de um homem, de cada lado da porta, e quatro menores na parte superior, do tamanho de anões, dois encimando cada nicho maior, cujas finalidades e serventias os descobridores ignoravam.

Talvez até tenham mesmo sido os deuses que a levantaram do chão: havia uma atmosfera sagrada naquele lugar, havia uma aura de poder, de mistério impregnando tudo por lá, sentiam.

E lá estava o portal, e algumas pessoas e homens foram escolhidos por ele.

Foi naqueles tempos que algumas pessoas e alguns humanos, conduzidas pelos dois velhos demônios, aprenderam a ouvir o portal. Não demorou muito para que eles o declarassem divino e criassem uma nova ordem de sacerdotes, quando muitos mais foram corrompidos pelo portal.

Os sacerdotes, que se intitularam sacerdotes do sol, envenenados e atraídos pela energia que emanava do portal, passaram a desejar desesperadamente o poder que o portal lhes sussurrava, motivo pelo qual restringiram seu acesso, permitido apenas àqueles que o portal indicava.

De um sentimento de reverenciada sacralidade para com o portal logo se passou a um sentimento de espanto e horror, quando o mais velho dos sacerdotes, num dia estranho e escuro, postou-se sob o portal. Ele apenas deu um grito e começou a pular e a bater as mãos freneticamente, excitado até o fundo de sua alma. Apressado, com a face tomada de medo e horror, procurou se afastar da porta, gritando coisas incompreensíveis sobre mundos terríveis e sobre demônios. Assustados, todos se afastaram do velho e do portal, com exceção de um jovem sacerdote de dentes serrilhados que a tudo assistia. Atiçado em sua curiosidade, durante muitos dias solitários ficou pensando sob ela. Num dia levantou-se vigoroso e imponente, como que possuído por alguma divindade. Em voz potente, bem diferente da que possuía, conclamou o povo, pessoas e humanos, dizendo que realmente havia um chamado do outro lado da porta do sol, mas que aqueles que chamavam não eram demônios, mas deuses. Aos gritos explicou que, se estavam assustados e medrosos demais, não era sem razão, e isso simplesmente porque a energia divina dos deuses era muito poderosa para os que viviam desse lado.

Os que haviam se juntado para ouvir o jovem recuaram amedrontados e indecisos, e ficaram silenciosos. Por fim, muitos deles se aproximaram e se ajoelharam, entoando cantigas antigas que o vento sussurrava. Enlevados, os enganados entregaram suas almas.

Avisado do que acontecia sob o portal o velho sábio, desesperado pelo que desencadeara e temendo a influência dos demônios sobre o povo e sobre aquele que julgava ser um religioso inocente, se apressou em sua direção. De longe, enquanto se aproximava depressa, começou a contestar o jovem sacerdote aos brados, tentando fazê-lo ver o erro que cometia e sobre o perigo que corriam todos, enquanto chamava o povo à razão. Com um sorriso estranho o jovem usou o medo e a ignorância do povo contra o velho, que foi brutalmente imobilizado e arrastado para baixo do pórtico, onde foi deitado no chão duro. A passos largos o jovem sacou sua adaga de pedra e ajoelhou-se ao lado do velho, a cabeça e os braços voltados para o alto.

“Innamarh, innamarh”, gritou pedindo renovação da proteção enquanto erguia o coração ainda latente e gotejante para o povo alucinado. 

Foi nesse dia, tomado de um furor estranho, que o sacerdote sentiu abertamente como que uma força se insinuando junto ao portal, sugando suavemente sua energia e, mais ainda, a energia do coração que lentamente ia silenciando e secando em suas mãos.

Uma sensação de poder e euforia o envolveu. Com os olhos injetados se levantou e gritou que os deuses estavam felizes e apaziguados. Alguns, mais dominados, sussurraram seu nome e o chamaram de “a ponte”.

No entanto, como se libertos da perigosa dominação, muitos abandonaram a cidade, restando apenas uns poucos dentro de seus muros, sobre os quais Trevas e Escuridão tinham mais poder. Os demônios, satisfeitos com o poder que amealhavam, aferraram-se mais à alma do sacerdote e testaram o portal, tocando-o de leve.

O dia ficou especialmente tenebroso quando nuvens negras e pesadas tocaram as montanhas e as silenciaram assim que o portal emitiu um pulso oco, como se parte da atmosfera que havia dentro do portal a este tivesse contaminado.

O jovem sacerdote, agora cumulado de poder, descobriu que o portal era, na verdade, uma porta que, sem querer, entreabrira. E também sentira algo diferente, que vinha sentindo desde algum tempo, desde o sacrifício do velho inimigo. Havia uma força do outro lado do portal, e sabia agora que era uma força consciente.

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