O FIM DE UM TEMPO

Há uma solidão presa no tempo, uma saudade indefinível. Os tempos se vão, se renovando, se recriando, recriando toda a vida, e nesse recriar se esquece do que construiu, num eterno repensar, recriando a solidão, aumentando a saudade, se refazendo em cada novo recomeço.

Como rebanho, sob a direção do sacerdote e a influência de cinco voadores, multidões foram levadas para a frente do portal, à frente do qual se sentaram, sorridentes e em paz.

O mundo que podiam ver lá dentro se movia lentamente, como carícia no ar. Uma neblina espessa escorria lá, e de vez em quando se revolvia mansamente ou se enrodilhava, constantemente mudando de forma. Apesar do aspecto triste havia mansidão ali. Não se ouvia qualquer som lá dentro, como se lá tivesse sido proibido de entrar.

Feliz, o sacerdote postou-se renovado e vibrante em frente a eles e passou a contar sobre as maravilhas que estavam por tomar aquelas terras, porque os deuses haviam chegado e escolhido aquele povo como o seu povo.

Assim que terminou de exortar o povo houve um ribombo seco.

O povo se assustou e olhou para o céu, mas viu que ele estava limpo e totalmente azul. Sussurros cresceram e eles ficaram se perguntando uns aos outros o que poderia ter sido aquilo.

Então um novo ribombo ainda mais forte se fez ouvir.

Alguns da multidão gritaram e apontaram para frente, para o portal, mostrando que era de lá que vinha aquela explosão seca e oca. Ficaram atentos, as respirações suspensas. Então, do meio da espessa neblina que existia lá dentro soou um outro, poderoso e próximo, inchando rapidamente a neblina, que logo voltou ao normal.

A atenção de todos estava presa na névoa que existia dentro do portal, penumbrosa e abafada, onde o som estava morto, procurando ver o que poderia estar lá dentro. Havia um sorriso neles, pois acreditavam que o que quer que lá estivesse só poderia ser algo bom, porque era lá que vivia o poder que os adotara como filhos.

Todos se quedaram maravilhados, atentos, absortos, os corações ignorantes batendo descompassados no peito.

Os olhos brilharam assim que, dentro da névoa escura e pesada, começaram a ver, ainda que indistintamente, uma paisagem penumbrosa emoldurada por uma cadeia de montanhas gigantescas, espigadas e escarpadas e por um céu pálido e uniforme.

No ralear da névoa, naquele céu morto logo viram vários grupos de seres voando ao longe como lenços presos num varal em meio a uma ventania, ignorantes de que eram observados. Os grupos iam em várias direções, pequenas manchas se deslocando contra o fundo das cordilheiras.

Mas então um dos grupos parou, como foram parando muitos outros que vagavam pelos céus mortos daquele mundo. Nitidamente eles haviam percebido que eram alvo de atenção.

Foi então que tomaram consciência do portal, que por eras incontáveis estivera silencioso.

Agora eram todos os grupos que estavam parados, atentos, pequeninos na distância.

Subitamente, como se acionados por molas, todos ao mesmo tempo começaram a se mover cada vez mais velozmente em direção ao portal, como se ele estivesse exercendo um poder inimaginável sobre aqueles seres. Porém, a uma certa distância do portal eles foram parando e se ajuntando, se adensando nervosos como trapos escuros abanados por uma imensa tempestade contra um céu sem cor, procurando confirmar se o portal estava realmente acionado.

Sob os olhares extasiados do povo alguns deles se aproximaram com cautela do portal enquanto os outros permaneciam fixos no espaço, avaliando o que acontecia. O tempo clareava, a neblina se dissipava definitivamente.

De repente o som renasceu, e o mundo do outro lado admitiu estar vivo. Havia zunidos e sons guturais e assobio de um vento raivoso e centenas e centenas de respirações apressadas.

O vento assobiou mais forte, balançando os corpos de mantas dos seres fixados no espaço, as bordas ondulando suavemente, pensativas.

Ao perceberem que a porta não estava mais inerte, mas que havia uma energia pulsando nela, os que haviam ficado para trás avançaram para junto dos outros, parados próximos à porta.

Subitamente os movimentos dos estranhos seres se tornaram frenéticos, o que tirou dos espectadores muitos gritos e imprecações sussurradas por causa do enorme susto. Como se alguém os estivesse coordenando eles foram se adensando mais, se compactando mais. Como um imenso cardume a massa compacta começou a girar no espaço em frente ao portal.

Atraídos pelas pressões ou movimentos do ar, ou até mesmo por sons inaudíveis, mais daqueles seres foram surgindo e se juntando aos que giravam. Com a chegada de cada vez mais daqueles seres, não demorou e logo havia como que uma montanha escura e viva, compacta, flutuando no ar, se revolvendo, girando pesadamente em torno de um eixo imaginário.

Os espectadores estavam hipnotizados pela nuvem que girava do outro lado. Crianças foram levantadas sobre os ombros dos pais para verem as terras dos deuses, que apontavam e riam e davam gritinhos, para alegria de todos, dando ainda mais poder àquela atmosfera festiva.

Porém, indiferente às doces expectativas, vagarosamente tudo começou a ficar pesado, opressivo, para estranheza das pessoas. Murmúrios foram escoando pela praça, sussurros se dissipando no ar, o receio se imiscuindo nos seres presentes como ondas. Algo estava para acontecer, todos pressentiam. Atentos ficaram aguardando, sentindo a pressão que subia. Por fim até as crianças e toda a vida ficaram suspensas no giro da massa dos seres. Havia um poder lá ao longe, brutal e imenso.

Um grito de surpresa ecoou da multidão quando o primeiro manta bateu de encontro à porta, num impacto violento que a todos assustou. Após o espanto inicial os sussurros cresceram e houve muito choro das crianças enquanto um som oco e poderoso reverberava pelos lados do portal, amplificado e fortalecido pelas peles e entranhas das montanhas. O silêncio se impôs novamente assim que um urro surdo, feito de sons que nunca tinham ouvido, explodiu dos voadores, no momento em que a criatura ricocheteou em algo invisível que parecia proteger o vão do portal. Como se desencadeada uma raivosa e alucinada loucura, mais e mais voadores começaram a arremeter com inaudita violência contra o portal, procurando forçar a passagem. As pessoas e os humanos, com exceção dos sacerdotes, levantaram-se de súbito e deram assustados passos para trás, se entreolhando confusas e apavoradas. Houve gritos de pânico das crianças e das mulheres, e muitos choros agarraram-se ao ar.

Como se em resposta a todo o medo, os sons das batidas aumentaram de violência, tornando-se cada vez mais fortes em intervalos cada vez menores, como se tivesse irrompido uma devastadora e ensurdecedora tempestade.

As pessoas se entreolharam confusas e apavoradas, porque o que viam em nada se parecia com os deuses imaginados. Assustadas nada disseram, apenas seus olhos perguntavam aos gritos, tentando entender o que estava acontecendo. 

As mulheres e as crianças se foram, como muitos que haviam percebido que estavam sendo enganados. Mas muitos ainda permaneceram. Esses, acreditando que estavam protegidos pelo portal, acabaram vencidos pela curiosidade e permaneceram ao alcance da porta, a mente vaga e abandonada presa às evoluções frenéticas dos voadores.

Ante os olhos da multidão a massa de voadores se espremeu contra o portal, que escureceu completamente. Dezenas de faces ficaram prensadas contra o vão, e os thiahus temeram que pudessem atravessá-lo. No entanto se tranquilizaram, ao se certificarem de que permaneciam impedidos de avançar através da lâmina do portal.

Então o espaço dentro do portal pareceu inchar, se abaular, e dezenas de faces começaram a avançar pela força que a massa fazia do outro lado. As caras terríveis e loucas de olhos em brasa sorriram de satisfação ao avançarem alguns poucos centímetros para dentro daquele outro mundo. De repente os rostos começaram a se contorcer e a mostrar intensa dor. Gritos e urros se ouviram quando esses rostos mais próximos começaram a se desfazer. A massa de voadores, aos urros e prantos, recuou, levando consigo muitos mantas que, feridos quando foram empurrados contra o portal, iam se desfazendo no ar cinza.

O ódio cresceu entre os mantas que, em movimentos frenéticos passaram a se jogar como uma onda contra o portal. E mais uma vez, e outra e outras mais. A frustração aumentava na mesma medida da fúria desesperada em vencer o portal, mas em vão, porque o portal se mostrava indiferente aos ataques.

Vendo a inutilidade de forçar uma passagem pelo portal, aos urros a massa se afastou e se pôs a girar lentamente à sua frente, procurando, avaliando, esperando.

Os sacerdotes, agora tão assustados quanto o povo, em seus semblantes lívidos se perguntavam o que poderia estar enfurecendo tanto os deuses, que de tão transtornados lembravam demônios do submundo.

Repentinamente, como se uma onda atingisse toda aquela massa revoluteante, a atitude deles mudou. Ela agora parecia mais acomodada no giro que se tornara mais lento e calmo. Havia algo que os controlava, todos sentiram. Os rostos e troncos penderam para o lado, tentando ver o que poderia estar escondido atrás dos ângulos do portal. Alguns poucos, que estavam num ângulo melhor, conseguiram ver o que havia e gritaram alegres, dizendo aos outros que eram os deuses que estavam pacificando os anjos.

De repente, esses que foram vistos como deuses surgiram junto às bordas da massa que girava. Esses eram bem mais escuros, maiores e aparentavam serem bem mais poderosos e majestosos, com suas impressionantes caudas de névoa escura. Eles estavam plácidos, apenas observando a massa girando, magnânimos, impassíveis.

Os sacerdotes rapidamente viram que se tratava de seres da mesma raça que Trevas e Escuridão.

Os sorrisos maravilhados se multiplicaram e a paz tocou o coração dos que observavam o mundo cinza.

Mas isso durou pouco.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo