O que foi que você libertou, demônio?
Os anjos, bem mais que as pessoas e os outros seres, haviam sentido a concussão, que denunciava que o portal fora reaberto. Mas não era surpresa que os demônios finalmente conseguissem isso, como não era surpresa que uma nova e perigosa guerra estava em formação. Na verdade, ela era esperada e, até mesmo, ansiada por muitos, porque havia uma tensão no mundo que não cessava de crescer, como acontece com os assuntos mal resolvidos, como mal resolvidas foram as guerras anteriores. As condições para a deflagração dessa guerra já se mostravam, e o tempo se mostrava propício para a expulsão definitiva dos demônios, era opinião geral entre os anjos, como também de que grande sofrimento inundaria todo o mundo.
Na planície abaixo Denatiel via a verdade em toda sua crueza. Era ali que a alma dos seres se sujeitavam.
O anjo estava atento ao que ocorria na praça, não conseguindo deixar de se culpar por ter vindo sozinho. Se tivesse uma legião ao seu dispor desceria até a cidade e a salgaria e aprisionaria os dois demônios no fundo do lago novamente.
Sorriu ante a inutilidade de suas esperanças: acontecia o que estava determinado na mente de alguém com a força para tal.
Então, era de se esperar que deveria estar ali, mas sem as forças necessárias para alterar o destino. Além disso, duvidava que poderia trazer alguma força considerável, isso porque, se as terras baixas eram proibidas aos demônios, grandes porções das terras altas estavam proibidas aos anjos, proibição que ele, e poucos avançados como ele, somente conseguiam romper à custa de muito sacrifício de força e energia. Denatiel conferiu que, apesar de sua energia estar baixando rapidamente, drenada por estar naquelas terras, a energia que lhe restava era mais que suficiente para fazer o que tinha que fazer. Além do mais, depois de tantos séculos perambulando por aqueles altos era natural o controle que tinha sobre o tempo e sobre a energia, sendo isso quase intuitivo.
Sua atenção voltou-se novamente para a praça, onde várias pessoas aguardavam em frente ao portal. Algo importante estava para acontecer. Trevas e Escuridão, ocultos sob um manto de indiferença, que os mantinha quase invisíveis aos seres, estavam debruçados sobre o portal, o corpo dobrado em direção ao povo. A tensão dos dois era nítida. Enquanto não tivessem o poder completo estariam à mercê do portal, que não admitiria que ninguém desse mundo o atravessasse que não fosse por vontade própria. Por isso precisavam ficar quietos, atentos à armadilha até que eles atravessassem, momento em que os voadores do outro lado, usando as energias deles, poderiam romper a barreira do portal e atravessá-lo. Seria assim, até que houvessem acumulado poder suficiente para dobrar a vontade do portal.
Denatiel a custo se conteve, pois sabia que, mesmo que conseguisse espantar aqueles seres para longe, o mal já estava causado, e logo cada vez mais seres iriam sucumbir à vontade dos demônios. Aquele mundo havia sido corrompido, e não tinham mais como contê-los.
Por milênios haviam conseguido manter Trevas e Escuridão sozinhos na cidade, ilhados, presos ali. Milhares de anos, cismou Denatiel. Mas por um pequeno erro, um deslize do qual se aproveitaram os demônios, habitantes entraram na cidade e quebraram o anel de proteção, deixando tudo exposto a eles, até seus corações.
Como eram poucos os anjos responsáveis pelo isolamento da cidade não tiveram como impedir, como refazer o lacre. Tudo se precipitou a partir de então, até colocá-lo ali sobre o monte, observando impotente os eventos se desenrolarem.
De repente sentiu o momento exato em que tudo iria se precipitar.
Vinte seres, entre pessoas e homens e nefelins, estavam postados à frente do portal, a aura demonstrando que estavam em transe, em profundo estado de adoração.
Denatiel sentiu todos seus músculos se contraírem.
Sabiam que isso iria acontecer, sabiam que não tinham mais como impedir que isso acontecesse, mas estar ali, ver isso se desenvolvendo, era outra coisa. Olhou para os lados e não viu nada que pudesse usar para impedir os eventos que se precipitavam. Então, ciente da fatalidade, se postou como frio observador. Tinha que guardar cada mínimo detalhe, que poderia se mostrar determinante mais tarde.
Indiferente viu quando um gigante adiantou um passo e lentamente sumiu dentro do portal. Ouviu os murmúrios de admiração dos outros que, um a um, foram sumindo nos poucos centímetros de pedra do perfil do portal.
Aguardou, mas não muito.
Seus piores receios se mostraram verdadeiros quando sentiu um baque, uma concussão, uma elevação contínua de energia no portal. Seu sangue gelou, porque o portal havia sido aberto.
Então eles foram surgindo, um a um, usando essa energia. Viu um ser monstruoso assomar a cara bisonha. Viu a cabeçorra assomar, os malévolos olhos vermelhos perscrutando, indeciso e desconfiado, o novo mundo. Ao perceber que nada havia ali que pudesse colocá-lo em risco abriu a bocarra e deu um sorriso terrível, as garras nojentas se fechando com força nas beiradas do portal. Primeiro, dois grandes sombras atravessaram a película, logo seguidos por três mantas, cada um diminuindo um tanto a energia que o portal acumulara, até que o sistema ficou novamente com pouca energia e nenhum demônio mais conseguiu passar.
Indiferente viu quando Trevas e Escuridão surgiram sobre o portal, e como se alimentaram dos ajudantes de seu sacerdote.
Definitivamente o mundo tomara uma direção, viu sem emoção. Era apenas um fato.
Viu quando o sacerdote quase despertara, e viu como Trevas manteve seu domínio sobre a alma perturbada.
Mentalmente o seguiu, tendo o cuidado de se ligar a ele de forma extremamente sutil, para não se denunciar.
Numa esquina de pedras o viu se agachar, as mãos apertadas na cabeça, que abanava de um lado para outro, parecendo desconsolado e confuso.
O anjo desceu sorrateiro, esgueirando-se, ocultando sua presença e sua energia. A mente do ser estava confusa,... exposta.
Com muita gentileza examinou um pouco mais o ser, a consciência que exalava.
Escondeu toda sua energia e deixou a mente vaga, sem saliências, tranquila, procurando.
Então a viu, agarrada na alma do ser. O pequeno demônio parecia estar se lambuzando na dor do ser.
Se antigamente as proles dos demônios eram usadas para parasitar um ser, dominando-o completamente, isso não seria possível por algum tempo ainda, visto que ainda não havia nenhum desses deste lado do portal. Então Trevas e Escuridão haviam instalado uma pequeníssima partícula de seu próprio ser que agia com individualidade, tornando os seres que infectavam como zumbis, sem que os hospedeiros nem ao menos desconfiassem da condição em que se encontravam.
Denatiel examinou novamente a mente do ser com muito cuidado, porque sabia que quase não haveria tempo de intervalo entre o momento em que atacasse a partícula parasita e o momento em que um dos dois demônios acusasse o ataque. Teria que ser extremamente rápido e certeiro.
Ainda oculto examinou com mais atenção o ser.
O sacerdote e a partícula do demônio ainda não o haviam pressentido, e estavam tranquilos. Com atenção ficou observando, esperando uma brecha segura.
Num movimento súbito se lançou e, antes que percebessem, dominava o parasita e o hospedeiro. Lançando sua atenção para os arredores viu que um dos sombras recém-chegados examinava com curiosidade um dos seres que dominava porque, ao diminuir a obsessão da partícula do demônio, a alma se sentiu livre e se ascendeu por uns breves segundos, tempo que teria sido suficiente para decretar o fracasso ou o sucesso da sua missão, não fosse a distração dos novos sombras com esse novo mundo.
Tão rápido e natural quanto colocara a atenção sobre o sacerdote o sombra a tirou dele ao perder o interesse.
Assumindo completamente o controle sobre o ser e a partícula demoníaca, Denatiel o comandou para ir um pouco mais longe, fora das vistas e da atenção dos mantas e sombras e dos outros seres.
Quando atingiu um local que julgou ideal, mais para dentro de uma curva escondida atrás de grandes blocos de granito, o anjo ligou-se definitivamente aos dois e exerceu com extrema firmeza o controle sobre eles. Devagar foi tomando suas memórias, estudando com rapidez suas emoções e seus sentimentos, tentando ver planos e desdobramentos.
De repente seus sentidos se ascenderam. Outro ser se aproximava, ainda ignorante de sua presença. Voltou os olhos para a esquina de pedra no exato momento em que ele surgiu, provavelmente enviado à procura daquele que capturara.
O ser levou um imenso susto e ficou imóvel ao pressentir, através de sua partícula, o que estava acontecendo. Sem perda de tempo o anjo o atingiu com um fluxo de energia que o fez se dobrar em agonia.
Sobre as pedras o ser que atingira deu seu último tremor enquanto a partícula demoníaca se desfazia sob o olhar frio e azul do anjo que, discretamente, num arranque se perdeu no céu em direção aos baixios, libertando de vez o sacerdote, não sem antes destruir a partícula que o dominava.
Na praça da cidade Trevas alçou voo bem alto, procurando, examinando por longa distância. Ele sentira o exato momento em que o anjo atingira fatalmente duas de suas partículas. A dor era pequena, porque as partículas eram uma mínima energia sua, mas saber que um anjo estivera tão perto e que conseguira escapar o deixava transtornado.
Num olhar encontrou o sacerdote, confuso e parecendo sonambulo.
Controlando seu ódio voltou sua atenção para as distancias.
Então o viu, longe, fora de seu alcance.
Soltou uma lufada irritada de ar, enquanto pousava em sua mão uma partícula que tirara de si como uma exteriorização de um desejo.
Com um gesto indiferente a lançou sobre o sacerdote que, no ato, foi novamente dominado.
Com olhar frio o viu, a passos cambaleantes, tomar o caminho da cidade.
Perdendo o interesse no sofrimento do ser se voltou novamente para um pequeno ponto escuro que se perdia na direção do horizonte.
- Um dia, um dia não haverá para onde correr, pobre ser – falou para a figura angélica que desaparecia ao longe.
Há uma solidão presa no tempo, uma saudade indefinível. Os tempos se vão, se renovando, se recriando, recriando toda a vida, e nesse recriar se esquece do que construiu, num eterno repensar, recriando a solidão, aumentando a saudade, se refazendo em cada novo recomeço.Como rebanho, sob a direção do sacerdote e a influência de cinco voadores, multidões foram levadas para a frente do portal, à frente do qual se sentaram, sorridentes e em paz.O mundo que podiam ver lá dentro se movia lentamente, como carícia no ar. Uma neblina espessa escorria lá, e de vez em quando se revolvia mansamente ou se enrodilhava, constantemente mudando de forma. Apesar do aspecto triste havia mansidão ali. Não se ouvia qualquer som lá dentro, como se lá tivesse sido proibido de entrar.Feliz, o sacerdote postou-se renovado e vibrante em fre
Quando deixamos de acreditar nos sonhos prometidos, eles se transformam em pesadelos.Os grandes seres se moveram lentamente, se aproximando com grande majestade da massa que girava lentamente, parecendo hipnotizada e imperturbável nos giros contínuos. Lentamente os gigantes de sombras foram se posicionando num anel em torno da massa, magnânimos, em profunda concentração como monges em transe, exercendo sobre a massa um poder tal que a mantinha tranquila e pacífica.Tudo o que se via era idílico, parecendo destinado a durar para sempre. Mas era tudo uma ilusão, uma perigosa ilusão que vivia dentro de um turbilhão disfarçado. Subitamente, quando os corações estavam calmos e satisfeitos, tudo se perdeu assim que o último gigante se posicionou.Num passe de mágica as caudas desapareceram enquanto o cinza daqueles corpos adensava-se. Repenti
Por que a vida procura se servir da vida, sacrificando-a para que possa dela se beneficiar ainda mais? Por que a vida não reconhece a divindade da outra vida e passa a cuidar dela?Um sacerdote mais velho avançou e se postou de costas para Escuridão, os olhos vidrados e loucos para a multidão, seus movimentos lembrando um boneco de cordas.- Os deuses chegaram e vão cuidar de nós - anunciou numa voz poderosa e sem vida. - Cabe a nós conseguirmos mais seres para eles, porque nossa submis
O que se procura, quando se tenta dominar a alma do outro? O que se procura capturar, aprisionar? Por que causar dor e profunda tristeza? O que se procura na outra alma, que tanta falta sentimos na nossa?Apontando para as majestosas florestas aos pés das montanhas os grandes sombras ordenaram aos seus exércitos que as tomassem, e a todos os seres que nelas vivessem.Determinados e confiantes urdiram planos e tramaram contra os povos das florestas. Seguindo pelo norte os contornos de uma grande e monstruosa serpente, que despencava para as florestas para se tornar o maior rio da terra, eles desceram em cascatas ameaçadoras.Porém, os seres das florestas já sabiam que algo ignominioso acontecia sobre as montanhas desde a abertura do portal e que, em silêncio, tramava sua destruição.Desejosos de saber exatamente o que teciam contra seus povos enviaram espiões
Olhei nos olhos do demônio, depois que todos se foram. Com o coração apertado chorei, porque tive pena dele.Os dois poderosos exércitos se chocaram num impacto formidável, tanto na terra quanto no ar. A terra parecia movediça tão grande era o número de guerreiros, e o céu parecia tomado de fumaça de algum imenso incêndio nalgum lugar do sol.Com muito custo o exército dos danatuás foi prevalecendo, apesar da luta desesperada dos thianahus que, sem forças para suportarem a fúria indignada, acabaram se dispersando dentro da cidade, com o maior contingente se aglomerando em torno da porta do sol. No céu, batidos pelas harpias e pelas flechas, os condores e uns poucos mantas iam diminuindo em quantidade.De casa em casa, de ruela em ruela a luta foi penosamente se desenvolvendo, com a batalha mais encarniçada sendo travada em v
Nunca, realmente, se perde algo. Coisas o tempo destrói, como os corpos e o que foi construído. É a alma, que deveria ser nossa fonte de atenção.- Depressa – gritou Emaliel singrando o ar, - tome-a e proteja-a. Ela é mais importante do que pensa – gritou ainda, esquivando-se de um golpe extremamente poderoso de Trevas.Otempele mais que depressa a tomou do chão e a escondeu em suas roupas. Espantado observou que os inimigos se jogavam na batalha com fúria redobrada, buscando recuperar o que haviam perdido, tudo convergindo diretamente sobre si. A batalha tornara-se ainda mais dura e violenta.Trevas e Escuridão, desesperados pelo que acontecera, lançavam terra e céu sobre Otempele e seu exército. O pequeno anjo foi atirado longe, mas logo voltou à carga, impedindo Trevas de jogar-se sobre Otempele. A batalha estava desesperada e parecia ter ating
Desde que tive consciência de que fui criado sinto saudades. Uma saudade imensa e imperiosa, que me impulsiona, como se destinado a grandes coisas estivesse. Que venha o tempo então, por mais longo que seja.Otempele olhou para o céu e ficou se perguntando se as harpias e coris-caririn sabiam o que estava acontecendo. Elas faziam uma grande proteção sobre si e seu exército, impedindo que os mantas e condores os atacassem.- Vamos, vamos, estamos próximos agora – gritou enquanto rasgava os inimigos à esquerda e direita, abrindo caminho para o exército principal. – Não podemos parar agora – urrou bem alto, procurando ver onde estavam Trevas e Escuridão, que haviam desaparecido.Como um rolo os dois exércitos se impulsionaram um na direção do outro, esmagando os que estavam entre eles.Num impulso final e desesperado os ex
Anjo, anjo, guarda meu sono, meus sonhos, minha alma. Anjo, anjo, guarde também meus amigos e meus inimigos, professores que são.- Emaliel está morto – avisou. – Suas ideias perigosas morrem com ele.- Que absurdo é esse? É certo que ele morreu, mas não foi em vão – gritou o anjo. – Ele se sacrificou para conseguir algo que vínhamos tentando há muito tempo: ele tomou a caveira de Trevas, ele tomou a DosVivos, a terceira mais poderosa. Foi acreditando na união das quatro que possuem que eles empreenderam essa guerra, porque através delas iriam dominar todos os vivos. A sua perda acaba com a armadilha que prepararam para tomar a alma dos guerreiros dos baixios. Temos que ajudá-los. Se não fizermos isso eles conseguirão retomar a caveira e descerão as montanhas e tomarão todas as terras conhecidas. Já pensar