Planos em planos, vidas em vidas, entrelaçados todos, como teias que capturam as frágeis gotas de água em frágeis tramas. Vidas frágeis em frágeis tramas, todas as nossas vidas, todas as nossas tramas.
O sacerdote viu o exato momento em que o paraíso foi destruído.
Num momento os deuses brancos aguardavam os seres em meio à luz e ao mundo verdejante coroado de gelo, e no momento seguinte, logo após o último thiahu transpor o portal, viu tudo explodir em cinza pesado; deuses em monstros escuros; mundo luminoso e colorido em penumbras de variados tons de cinza, e as imensas e coloridas cordilheiras em cordilheiras serrilhadas e mortas.
Os gritos de espanto e horror escaparam das gargantas dos seres assim que viram, em frente à horrível e deformada plataforma que avançava sobre o impensável vazio sobre a qual precariamente se equilibravam, três mantas e dois grandes sombras postados, os mantos pesados de escuridão, os olhos vermelhos e malévolos deixando transparecer a fome que os acometia. O que estava mais à frente, mais perto dos demônios, lentamente foi baixando os olhos para as bordas. O medo tomou todo seu ser ao ver que as bordas se moviam muito lentamente.
Ao perceberem o perigo os seres gritaram e tentaram recuar, mas bateram de encontro a algo transparente que fechava o portal. Em vão esmurraram e empurraram a placa invisível e intransponível atrás da qual os religiosos os observavam, os olhos esbugalhados e assustados, olhando para trás deles. Quando se viraram perceberam que morreriam longe de seu mundo.
Em completo desespero se espremeram ainda mais contra a parede invisível. Esmurrando e gritando lutaram contra ela.
Um deles foi empurrado para fora da ponte.
Sob o olhar assustado de todos os que assistiam, dos dois lados do portal, ele flutuava, os braços e pernas se remexendo freneticamente, enquanto tentava girar o tronco e a cabeça para ver o que vinha para si. Os gritos emudeceram e todos ficaram estáticos, vendo a criatura gigantesca envolver lentamente o homem, que devagar foi se imobilizando.
O pânico se tornou insano quando a criatura se abriu e apenas ossos e pó deixou cair para o abismo, enquanto os mantinha sob aqueles perversos olhos vermelhos.
Foi muito rápido. Como se inebriados pelas ondas de medo eles desceram sobre as pessoas na ponte.
Toda a energia lhes foi tomada, até mesmo a de seus corpos, que foi sugada até o último resquício. Do portal, incrustado na face de uma imensa montanha, ossos recobertos de couro seco, solitária e silenciosamente buscaram o distante chão.
Renovados, os sombras e os mantas se aproximaram devagar da face do portal.
Os religiosos recuaram um passo. Tomados de medo se curvaram apressadamente quando o primeiro ser ultrapassou o portal e entrou na terra alta, o cinza tornando-se ainda mais pesado. Sobre o portal Trevas e Escuridão aguardavam com ares vitoriosos a passagem dos últimos que conseguiram usar a passagem com a energia fornecida pelos fiéis.
- Está feito! – o sacerdote ouviu a maravilhosa voz ir tornando-se dura e gutural. Olhou para o alto do portal e viu Escuridão, enorme, agarrado com força à sua borda, a capa suja de que era feita curvada para baixo.
- Tudo agora será diferente – disse Trevas surgindo ao lado de Escuridão, as bordas fremindo de satisfação por sentir que finalmente estavam livres, pois agora tinham força suficiente para submeter grande número de seres, o que lhes daria a possibilidade de, após tantos e tantos séculos, abrir novamente o portal e trazer cada vez mais dos seus para este mundo cheio de possibilidades.
Sob o olhar estupefato do sacerdote os sombras e os mantas se viraram para o portal e reconheceram Trevas e Escuridão.
Sem qualquer aviso Trevas e Escuridão desceram com extrema velocidade sobre os acólitos, três para cada um. O sacerdote, possuído de imenso horror e medo, se curvou ainda mais, seu corpo todo tomado de tremores violentos.
- Eles não eram puros, como você – ouviu a voz de Escuridão.
- Vamos, irmãos – chamou Trevas se elevando alguns centímetros acima dos ossos que abandonara ao lado do portal. - Temos um mundo novo nos esperando.
Juntos, os sete voadores se elevaram no ar, sumindo na escuridão da noite.
O sacerdote, abandonado pelos demônios, olhou para o portal. Tremendo de medo avançou a mão, como sempre fizera antes. Assim que sua palma tocou na barreira invisível recuou assustado. Não fora como das outras vezes, em que não havia nada que não fosse apenas ar. Agora sentia uma força fria, antiga, inóspita e agressiva, que correu ao longo do seu braço.
Agora havia uma intenção no portal, percebeu.
Sua mente resvalou e o horror do que desencadeara tomou sua alma de assalto assim que, de dentro da tarde que morria, passou a ouvir gritos distantes. Como se desperto lembrou-se do velho e das pessoas caminhando sobre o passadiço. Um frio estranho e miserável tomou todo seu corpo, e em profunda tristeza começou a tremer. O sacerdote, cheio de pavor, caiu de joelhos em frente ao portal, os rostos felizes que enviara para a destruição fixos dentro de seus olhos. Em vão, enquanto ouvia sua alma gritar de dor, aos prantos chamou pelo velho sacerdote que assassinara.
- Por que chora, pequenino?
Assim que olhou para trás seu sangue gelou: Trevas estava às suas costas, os olhos vermelhos faiscando como brasas, o perfil iluminado por um sol vermelho assustado que se apressava em morrer.
Apavorado levantou-se de súbito, o corpo tomado de tremores.
Os olhos malignos se estreitaram perigosamente e a força da luz diminuiu. O medo o ameaçou, mas logo desapareceu ao ouvir em sua mente a voz que tanto o cativava.
- Não deixe que o que não compreende te tire do caminho, criança – admoestou a voz flutuando dentro de sua cabeça.
> Eles deram suas vidas de bom grado – ouviu Trevas falando enquanto flutuava à sua frente, gigantesco, poderoso, dominador e, ao mesmo tempo, gentil. Suas últimas reservas de desconfiança e revolta foram arrefecendo, e sentiu uma grande e maravilhosa paz aproximar-se.
> No último instante entenderam – continuou ele, - e se juntaram a nós com toda essência e se tornaram deuses menores. Às vezes, pequenino, o que não se entende pode desviar o justo do caminho traçado. Não permita que isso aconteça. Os ímpios devem ser destruídos, e iremos fazer isso. Quanto aos justos, estes viverão em paz, e os que forem merecedores serão por nós conduzidos para uma terra bendita. Consegue entender isso, pequenino?
- Sim, consigo. Mas,... eu vi o terror deles... Eu...
- Não cabe a você, pequenino, duvidar de nossos desígnios – Trevas cresceu perigosamente, medindo, avaliando o pobre ser. O sacerdote se encolheu, sentindo na voz uma clara ameaça, - nem de nossas ordens e desejos. Afaste isso do seu coração, porque você está sob prova.
O sacerdote sentiu sua alma gelar de medo e pânico.
> Fé, é isso que pedimos, é isso que exigimos – continuou Trevas suavizando-se novamente, parecendo até mesmo paternal. O sacerdote se agarrou desesperado nessa faceta, mostrando ao demônio o quanto estava feliz para que ele tivesse piedade. - Isso porque não entenderia o que está por vir, mesmo se tentássemos te explicar. Mas entenda que a partir de você iremos construir um reino, e seus filhos e filhas, e os filhos e filhas deles é que irão conduzir todos os seres desta e de outras terras. Mantenha-se reto, mantenha-se pronto, e obedeça sem questionar o que lhe ditarmos.
O sacerdote, tomado de profundo medo e adoração, caiu de joelhos no chão duro e encostou a testa no chão.
- Farei o que me mandarem, sem questionar – sussurrou com o coração totalmente entregue.
- Retire-se agora, pequenino. E descanse! A alvorada que se aproxima descortinará uma nova ordem, na qual você é peça fundamental. Prepare-se para ser condutor de seres. Amanhã enviará a nós, bem cedo, seis seres que iniciarei; esses serão os novos sacerdotes. Mais tarde, com você no comando deles, trará quantos puder para adoração ao mundo dos deuses, que aguarda dentro do portal.
O sacerdote, com a cabeça baixa recuou de costas, se virando e afastando rapidamente ao sentir que já se distanciara o bastante. Trevas olhava com desprezo o miserável caminhando para sua vida medíocre quando sentiu um impacto vibrando por todo seu ser. Um incômodo, mais que uma dor.
Virou-se rápido para a esquerda, os sentidos em alerta. Todo seu ser lhe gritava que somente uma coisa poderia atingi-lo daquela forma.
Num impulso súbito elevou-se muito alto, toda a atenção vasculhando, procurando.
Ao longe o avistou.
O que foi que você libertou, demônio?Os anjos, bem mais que as pessoas e os outros seres, haviam sentido a concussão, que denunciava que o portal fora reaberto. Mas não era surpresa que os demônios finalmente conseguissem isso, como não era surpresa que uma nova e perigosa guerra estava em formação. Na verdade, ela era esperada e, até mesmo, ansiada por muitos, porque havia uma tensão no mundo que não cessava de crescer, como acontece com os assuntos mal resolvidos, como mal resolvidas foram as guerras anteriores. As condições para a deflagração dessa guerra já se mostravam, e o tempo se mostrava propício para a expulsão definitiva dos demônios, era opinião geral entre os anjos, como também de que grande sofrimento inundaria todo o mundo.Na planície abaixo Denatiel via a verdade em toda sua crueza
Há uma solidão presa no tempo, uma saudade indefinível. Os tempos se vão, se renovando, se recriando, recriando toda a vida, e nesse recriar se esquece do que construiu, num eterno repensar, recriando a solidão, aumentando a saudade, se refazendo em cada novo recomeço.Como rebanho, sob a direção do sacerdote e a influência de cinco voadores, multidões foram levadas para a frente do portal, à frente do qual se sentaram, sorridentes e em paz.O mundo que podiam ver lá dentro se movia lentamente, como carícia no ar. Uma neblina espessa escorria lá, e de vez em quando se revolvia mansamente ou se enrodilhava, constantemente mudando de forma. Apesar do aspecto triste havia mansidão ali. Não se ouvia qualquer som lá dentro, como se lá tivesse sido proibido de entrar.Feliz, o sacerdote postou-se renovado e vibrante em fre
Quando deixamos de acreditar nos sonhos prometidos, eles se transformam em pesadelos.Os grandes seres se moveram lentamente, se aproximando com grande majestade da massa que girava lentamente, parecendo hipnotizada e imperturbável nos giros contínuos. Lentamente os gigantes de sombras foram se posicionando num anel em torno da massa, magnânimos, em profunda concentração como monges em transe, exercendo sobre a massa um poder tal que a mantinha tranquila e pacífica.Tudo o que se via era idílico, parecendo destinado a durar para sempre. Mas era tudo uma ilusão, uma perigosa ilusão que vivia dentro de um turbilhão disfarçado. Subitamente, quando os corações estavam calmos e satisfeitos, tudo se perdeu assim que o último gigante se posicionou.Num passe de mágica as caudas desapareceram enquanto o cinza daqueles corpos adensava-se. Repenti
Por que a vida procura se servir da vida, sacrificando-a para que possa dela se beneficiar ainda mais? Por que a vida não reconhece a divindade da outra vida e passa a cuidar dela?Um sacerdote mais velho avançou e se postou de costas para Escuridão, os olhos vidrados e loucos para a multidão, seus movimentos lembrando um boneco de cordas.- Os deuses chegaram e vão cuidar de nós - anunciou numa voz poderosa e sem vida. - Cabe a nós conseguirmos mais seres para eles, porque nossa submis
O que se procura, quando se tenta dominar a alma do outro? O que se procura capturar, aprisionar? Por que causar dor e profunda tristeza? O que se procura na outra alma, que tanta falta sentimos na nossa?Apontando para as majestosas florestas aos pés das montanhas os grandes sombras ordenaram aos seus exércitos que as tomassem, e a todos os seres que nelas vivessem.Determinados e confiantes urdiram planos e tramaram contra os povos das florestas. Seguindo pelo norte os contornos de uma grande e monstruosa serpente, que despencava para as florestas para se tornar o maior rio da terra, eles desceram em cascatas ameaçadoras.Porém, os seres das florestas já sabiam que algo ignominioso acontecia sobre as montanhas desde a abertura do portal e que, em silêncio, tramava sua destruição.Desejosos de saber exatamente o que teciam contra seus povos enviaram espiões
Olhei nos olhos do demônio, depois que todos se foram. Com o coração apertado chorei, porque tive pena dele.Os dois poderosos exércitos se chocaram num impacto formidável, tanto na terra quanto no ar. A terra parecia movediça tão grande era o número de guerreiros, e o céu parecia tomado de fumaça de algum imenso incêndio nalgum lugar do sol.Com muito custo o exército dos danatuás foi prevalecendo, apesar da luta desesperada dos thianahus que, sem forças para suportarem a fúria indignada, acabaram se dispersando dentro da cidade, com o maior contingente se aglomerando em torno da porta do sol. No céu, batidos pelas harpias e pelas flechas, os condores e uns poucos mantas iam diminuindo em quantidade.De casa em casa, de ruela em ruela a luta foi penosamente se desenvolvendo, com a batalha mais encarniçada sendo travada em v
Nunca, realmente, se perde algo. Coisas o tempo destrói, como os corpos e o que foi construído. É a alma, que deveria ser nossa fonte de atenção.- Depressa – gritou Emaliel singrando o ar, - tome-a e proteja-a. Ela é mais importante do que pensa – gritou ainda, esquivando-se de um golpe extremamente poderoso de Trevas.Otempele mais que depressa a tomou do chão e a escondeu em suas roupas. Espantado observou que os inimigos se jogavam na batalha com fúria redobrada, buscando recuperar o que haviam perdido, tudo convergindo diretamente sobre si. A batalha tornara-se ainda mais dura e violenta.Trevas e Escuridão, desesperados pelo que acontecera, lançavam terra e céu sobre Otempele e seu exército. O pequeno anjo foi atirado longe, mas logo voltou à carga, impedindo Trevas de jogar-se sobre Otempele. A batalha estava desesperada e parecia ter ating
Desde que tive consciência de que fui criado sinto saudades. Uma saudade imensa e imperiosa, que me impulsiona, como se destinado a grandes coisas estivesse. Que venha o tempo então, por mais longo que seja.Otempele olhou para o céu e ficou se perguntando se as harpias e coris-caririn sabiam o que estava acontecendo. Elas faziam uma grande proteção sobre si e seu exército, impedindo que os mantas e condores os atacassem.- Vamos, vamos, estamos próximos agora – gritou enquanto rasgava os inimigos à esquerda e direita, abrindo caminho para o exército principal. – Não podemos parar agora – urrou bem alto, procurando ver onde estavam Trevas e Escuridão, que haviam desaparecido.Como um rolo os dois exércitos se impulsionaram um na direção do outro, esmagando os que estavam entre eles.Num impulso final e desesperado os ex