Lembrar do que se teve e se deixou escapar, é o que mais dói. É o que marca o coração, corrói a vida.
O rei, o velho Sapa inca Pachakuteq Yupanki, que muitos chamavam de BraçoSeco por causa do seu braço direito, morto e ressequido como um pau velho, espreguiçou-se demorado, experimentando como criança cada sensação, cada toque do mundo em seu corpo e em sua consciência. Até o não sentir nada com seu braço ressequido lhe deu prazer. Na verdade sentia algo, um roçar e uma pressão acolchoada, almofadada, como quando se toca a pele através de um grosso pano. Com cuidado e sem pressa, como gostava de fazer ao acordar, relembrou os pormenores do dia anterior, procurando pistas e sinais de perigos e oportunidades que pudesse ter deixado escapar ou que avaliara erradamente. Após algum tempo nesse cismar, e satisfeito com o d
Estive em muitos locais, incendiei muitos sóis, amei muitas luas, destruí muitas vidas, criei muitas mais. Ah, todo esse poder, tudo o que fiz, e ao final, bem ao final da minha vida, é na solidão que irei morrer.Onde está o valor de tudo o que fiz?O lago sagrado brilhava sob o sol, iridescente, magnífico e imponente, como uma joia deixada por um deus distraído. Havia vida no ar, havia vida na água e na terra, todas febris. A grande e bela cidade de Thiahuanaco era o centro de todo o universo naquele dia, quando começavam os festejos para pedir as bênçãos dos deuses para o início dos plantios.A custo o rei retornou sua atenção para a cidade, para as pedras e gentes, e deu um longo suspiro, se esforçando a sorrir novamente. Afinal, aquele era o dia de festividade, do solstício de verão, da renovaç&ati
Se houver algo raro que sobrepuje qualquer riqueza, então esse algo será objeto dos maiores desejos dos homens.O thianahu levantou-se pesadamente e beijou a esposa.Ela apenas se remexeu, um sorriso sonolento escoou num ronronar que morreu assim que o sono a venceu novamente.O rei levantou os olhos para o aposento e pensou sobre o que sentia. Havia um nervosismo, uma agitação no ar, que sabia ser dele mesmo e que, sabia, precisava manter controlado. Rememorando o dia anterior, relembrando cada decisão, cada passo, viu que tudo estava se encaminhando como fora traçado, como deveria ser. O dia ia ser decisivo demais, e as decisões e ações tomadas iriam repercutir sobre a própria alma do império. Lentamente saiu do quarto para o aposento contíguo, onde o serviçal já o aguardava. Após vestir a pesada e colorida roupa se dirigiu para
Das minhas entranhas te tirei, e ao céu penumbroso te mostrei. Mas, eu sempre soube: não vingará nesse mundo, porque vou te caçar.- Deitem-na na pedra – ordenou o sacerdote após ter avaliado com cuidado a prisioneira.Assim que a deitaram abriram suas pernas e as amarraram em cravos de madeira previamente fincados aos pés da pedra. Deram a volta e também prenderam cordas em seus pulsos, que puxaram com força para baixo, arcando o seu corpo sobre a pedra rotunda. Novamente a rodearam, e um deles se postou ao lado de seu quadril. Cerimoniosamente levantou sua saia. O sacerdote, postado entre suas pernas, levantou então suas vestes e, entoando um cântico, se posicionou solene. O cântico se encorpou quando se introduziu na mulher, que gemeu e passou a língua nos lábios secos. Por algum tempo ficou enlevado no movimento cadenciado. Então deitou seu c
Para que haja alguém que mande, há necessidade de pessoas desejosas de se submeterem.Tupaq se mostrou paciente ao ver que seu pai ainda permanecia decidido a não descer a montanha. Apesar da dor de vê-lo definhando sabia que todos, um dia, partiriam na longa e inevitável caminhada. Balançou a cabeça disfarçadamente, pensando que logo teria o poder para decidir. Por hora atenderia o pai, que lhe dizia que o importante não era apenas conquistar as terras, mas sim o coração dos inimigos. Aprenderia isso, em homenagem ao seu pai.Pachakuteq e Tupaq levaram muitos anos para sedimentar o poder sobre o litoral. Tupaq, a conselho do pai, se esmerou nesse fazer, guardando os sonhos das terras baixas para algum momento à frente. Tupaq sonhava com o dia que seria imperador, livre para que todos pudessem se juntar para transformar seu sonho e desejo em realidade.O tem
O que pertence a alguém? Somos responsáveis, cuidadores, e do que cuidamos nos beneficiamos para crescer, para nos aprimorarmos. Por que nos enganamos tanto sobre o destino das coisas?Desta vez fora por pouco, cismou, entendendo que os deuses lhe diziam que estava na hora de ir embora. Afinal sua missão estava mais do que cumprida, ainda mais considerando que fora descoberto.Olhou pelo canto dos olhos para o companheiro que o seguia o mais dissimuladamente possível, acreditando que ainda não fora descoberto.Ganani pousou no chão a pequena cesta feita de cipós finos e ajeitou-os melhor no capim com que havia forrado o fundo. Sorriu orgulhoso, ainda mais antevendo tudo o que aquele seu ato tinha o poder de desencadear. Olhou para o lado, para FacaPontuda, que o observava escondido atrás de um grosso tronco de uma árvore magnífica, e cismou por algum tempo se deveria liq
Os mortos já estiveram vivos, e talvez um dia retornem e temam os que agora os temem. Um ciclo de poder e medo; um jogo de crescer, jogado num longo caminho.Minas Dhan pousou suave na beira da clareira. Na outra borda, bem rente ao mato, observou uma série de pedras roídas, gastas, jogadas a esmo.A grande harpia piou baixinho em sinal de respeito e avançou bem lentamente em direção ao centro. Acima no céu as outras harpias acompanhavam de longe a grande rainha, alertas e receosas. O que ela procurava, indo diretamente à fonte, era muito perigoso, todas as harpias sabiam. Afinal, não eram estórias vazias o que se contava sobre aquelas terras, e em especial sobre aquela clareira.Ali realmente viviam harpias, mas não harpias comuns. As que viviam ali eram harpias guerreiras que desconheciam amigos ou inimigos. Aqueles eram seus domínios, as florestas fechad
Por que se guerreia, por que se tenta destruir a vida, se a vida não pode ser destruída e se o tempo torna vão tudo o que tanto esforço consumiu? Só há uma coisa que perdoa o tempo, que é a própria vida infinita.Tupaq espreguiçou-se em seu leito, os olhos perdendo-se além do quadrado da janela, tentando se lembrar de um sonho estranho que acabara de ter. Do sonho ficara um incomodo e confuso gosto de sangue e tristeza. Confuso disse a si mesmo que aquela sensação vinha das gentes das terras baixas.Como não se lembrasse com clareza deu de ombros. Espreguiçou-se mais fortemente e levantou-se.Havia sol lá fora, e nuvens inchadas e imaculadas correndo pelo azul.- Quem sabe talvez seja hoje o dia de colocar em andamento o que pretendo deixar como meu império – disse para o sol que brilhava lá fora.Mas,
Há certos passos que não permitem desculpas, que não trazem de volta antigas possibilidades, os velhos caminhos. Há passos que reagem ao mundo e mudam tudo, principalmente a alma do caminhante. Cuidado com seus sonhos.O conselho de anciãos, que olhava por todas as terras em tempos de paz, observava com calma os dois jovens. O conselho formado pelo velho e experiente curupira Adanu, pelo sábio tutu marambá Dene-dene, pelo Anaquera Otenv, pelo martelador Imegui, pela silenciosa mãe-da-mata MassaFúria e pela austera mãe-d’água Danara, dava instruções pormenorizadas aos dois entes sobre o que devia ser visto e feito.O saci-pererê Ybytu e o jovem caipora DenteDeAlho, que sempre prestavam alguns serviços para o conselho de anciãos, principalmente de espionagem, ouviam com atenção as orientações sobre a miss&