"ABISMAR-SE: lufada de aniquilamento que atinge o sujeito apaixonado por desespero ou excesso de satisfação." (Roland Barthers)Patrícia não se lembrava da última vez em que tinha cavalgado por tanto tempo sem parar para descansar. O choque da revelação fez com que ela fosse da capela abandonada, ninho de amor de seu marido com Elsa, até o Palacete, o seu lar, em uma velocidade única – precisava alcançar a sua casa logo! E sua marcha não cessou nem mesmo quando uma tempestade a atingiu no meio do caminho. Não quis parar e nem podia. Com tudo desmoronando a sua volta, o que Patrícia precisava era de abrigo e aconchego. Assim, conseguiu chegar no Palacete, mas ao preço de estar com o rosto inchado do choro, e com o corpo molhado da chuva.Felipo, que conhecia todos os cavalos ao longe, correu ao encontro da Marquesa ao ver o primeiro rastro turvo de Gloriosa n
"Há palavras que requerem uma pausa e silêncio." (Herberto Helder)Martim despertou com o corpo dolorido e com a mente atordoada. Não tinha a certeza se tudo aquilo que vivera no dia anterior tinha sido real ou um grande sonho ruim, mas ao perceber que ainda trajava as mesmas vestes, e que elas ainda estavam úmidas, ele teve a certeza de que não tinha sido um sonho. Assim, o Marquês sentou e percebeu que não somente o corpo, mas também a cabeça doía, ela pesava como uma ressaca. Depois, o homem respirou fundo e, mesmo com todas as dores, começou a se recompor. Somente quando levantou foi que percebeu que a porta do quarto de Patrícia estava aberta, no entanto, ela não estava lá.De onde estava, percebeu que já era um novo dia, pois o sol já invadia a janela. Ele queria entrar no quarto, mas achou que não seria uma boa ideia, por isso, apesar de
"Não despertes o que não podes calar." (José Tolentino Mendonça)Elsa acordou junto com os primeiros raios do sol, o que não aconteceu por vontade própria, mas por conta de um sonho que teve, e que ainda reverberava sobre a sua alma. Tinha sonhado com Martim, com o bebê que carregava e com a Morte. Elsa soltou um longo suspiro, e percebeu que carregava no peito inúmeras superstições. Por isso, apertou com força o crucifixo que sempre decorava o seu pescoço. Se deu conta de que há tempos não sonhava da maneira que tinha sonhado naquela noite, e pensava que, talvez, aquele fosse um reflexo da certeza da gravidez – já não sangrava pelo terceiro mês seguido e a sua criada pessoal já tinha feito a avaliação, e disse que esse era o único resultado possível.Ainda arfando, a jovem ergueu o corpo na cama e tentou
"A tua extinção ainda é um fogo." (Vasco Gato)Pela milésima vez, Patrícia se encarou no espelho com certa tristeza, e ali enfrentou a mesma dificuldade das outras vezes: a de se reconhecer com os cabelos curtos. Estava acostumada com os seus longos cabelos pretos correndo pelo seu corpo, e os amava - amava cada fio dos seus cabelos! -, no entanto, tinha feito uma promessa pela vida de Martim e era seu dever honrar com ela.Desde que chegara ao Solar das Margaridas, o marido esteve com a vida por um fio em decorrência de uma pneumonia tinha o abatido por longos sete dias, por conta das chuvas que tomara. A visita do médico só lhe trouxera más notícias, no entanto, ela não aceitava perder mais uma pessoa dessa maneira! Por isso, com os joelhos no chão, pediu à Nossa Senhora da Anunciação que poupasse a vida do seu esposo e, em troca, ela cortaria os cabelos q
O badalar dos sinos era o indicativo de que mais um dia começava. No mesmo instante, Elsa levantou da cama e vestiu o seu hábito, apanhou o rosário em tom amarronzado e, após, enfileirada com as demais noviças, se ajoelhou frente ao altar e deu início à primeira oração do dia - a hora das Laudes. Aquele era o tempo em que estava vivendo a sua vida.Depois que matara Patrícia, a jovem entrou em um estado de choque: dias sem falar, dias sem dormir, dias sem comer, grávida e com o peso de um crime nas costas. Tudo o que conseguia se era se perguntar o que tinha acontecido - naquele momento, não sabia dizer, mas hoje, apesar de ainda não saber, compreendia. A juntada da vergonha da gravidez, com a sua tentativa de suicídio, com o crime que cometera e com o seu recente silêncio, foram argumentos suficientes para que Cortês - já ansioso para se livrar do estorvo que
Querido Martim,Passei a noite em claro e, em meio a todas as dúvidas e angústias que pairam sobre isso que acontece entre nós, me dei conta de como senti falta da doçura das suas palavras – que tanto me acalmam e inspiram. Por isso, em meio a todo esse sentimento, resolvi te escrever.Confesso que venho tentando, com veemência, estancar todas essas angústias, pois hoje percebo que há muita verdade naquilo que você me disse: “se for impossível a mudança, é preciso aceitar as coisas como são. Assim, o processo fica menos doloroso”. De fato, a aceitação faz com que dor seja menos pungente. No entanto, como aceitar as coisas como são quando, sempre que te vejo, a minha racionalidade é domada por uma legião de sentimentos furiosos? Eu juro que já tentei colocar esses sentimentos no lugar deles, mas, tudo me parece tão imposs&i
"meu amor inventado, ainda assim tanto demoras" (Valter Hugo Mãe)O Marquês das Flores entrou na sala principal do casarão da família Cortês acompanhado por um dos criados – o que ele considerava desnecessário, afinal já conhecia a casa dos Cortês como conhecia sua própria casa. Na verdade, se arriscava a dizer que conhecia a casa dos Cortês mais do que a sua própria casa.Ao alcançar o sofá verde musgo, o Marquês sorriu com simpatia para o homem que o conduzia em sinal de agradecimento, e sentou no móvel de uma forma desleixada sem quaisquer modos que remetesse ao título que possuía... Era assim que era desde sempre.No entanto, foi o seu característico jeito desleixado que - apesar da fama que o cercava desde a sua juventude - o fazia ser, em alguma medida, querido pelas pessoas. O seu carisma era tamanho q
"Desejo o teu incêndio queimando a minha alma" (Maria Teresa Horta)Já havia um tempo que Martim não era mais um garoto. Tinha crescido no físico, e, à força, tinha amadurecido em sua postura, mas, naquele momento, estava se sentindo como um garoto. Pensava isso, pois sabia que os sentimentos que nutria por Elsa eram sentimentos errados. Ele sabia bem disso... E era o fato de reconhecer o erro que fazia com que ele se sentisse mal diante de toda aquela situação.“A ignorância é, realmente, uma bênção”, foi o que ele pensou quando olhou para Elsa. A jovem era filha de um dos seus melhores amigos. Muito mais do que isso, Elsa era filha de um dos homens mais íntegros que conhecera. No entanto, nada de tudo isso fazia com que a vontade de querer estar ali, perto dela, ouvindo-a falar sobre o que quer que fosse diminuísse... Ele sorr