Querido Martim,
Passei a noite em claro e, em meio a todas as dúvidas e angústias que pairam sobre isso que acontece entre nós, me dei conta de como senti falta da doçura das suas palavras – que tanto me acalmam e inspiram. Por isso, em meio a todo esse sentimento, resolvi te escrever.
Confesso que venho tentando, com veemência, estancar todas essas angústias, pois hoje percebo que há muita verdade naquilo que você me disse: “se for impossível a mudança, é preciso aceitar as coisas como são. Assim, o processo fica menos doloroso”. De fato, a aceitação faz com que dor seja menos pungente. No entanto, como aceitar as coisas como são quando, sempre que te vejo, a minha racionalidade é domada por uma legião de sentimentos furiosos? Eu juro que já tentei colocar esses sentimentos no lugar deles, mas, tudo me parece tão impossível.
Na noite que perdi pensei sobre isso, que posso chamar de fraqueza, e conclui que assim como dizem que uma mente, ao tocar qualquer fragmento de conhecimento, jamais volta a ser a mesma, também os nossos olhos, depois de contemplarem a perfeição do corpo do ser amado, jamais o vê da mesma forma.
E é ai onde reside a raiz da minha fraqueza, Martim: é impossível, pra mim, não te desejar.
Por favor, te peço que não pense que estou sendo libertina ou algo do tipo... Longe de mim! Mas, é que meus olhos não te veem mais com a pureza de antes, nem o meu corpo responde da mesma forma ao teu toque, ou mesmo ao som da sua voz.
Não me culpo por isso. Sei que a culpa vem de Adão, de Eva, da serpente e da maldita maçã – fonte de todo o pecado. Um pecado que, por você, cometo sem medo do inferno que me
aguarda.Sofrerei, no espírito, o que sofro na carne quando estou longe de ti; poderia até ser uma mártir por sofrer de amor - seria isso uma blasfêmia? Pouco me importo! Só quero que você acabe com esse inferno humano que estou vivendo .Volte logo para os meus braços famintos, Martim.
Eu amo você!
Ansiosamente,
Elsa.
"meu amor inventado, ainda assim tanto demoras" (Valter Hugo Mãe)O Marquês das Flores entrou na sala principal do casarão da família Cortês acompanhado por um dos criados – o que ele considerava desnecessário, afinal já conhecia a casa dos Cortês como conhecia sua própria casa. Na verdade, se arriscava a dizer que conhecia a casa dos Cortês mais do que a sua própria casa.Ao alcançar o sofá verde musgo, o Marquês sorriu com simpatia para o homem que o conduzia em sinal de agradecimento, e sentou no móvel de uma forma desleixada sem quaisquer modos que remetesse ao título que possuía... Era assim que era desde sempre.No entanto, foi o seu característico jeito desleixado que - apesar da fama que o cercava desde a sua juventude - o fazia ser, em alguma medida, querido pelas pessoas. O seu carisma era tamanho q
"Desejo o teu incêndio queimando a minha alma" (Maria Teresa Horta)Já havia um tempo que Martim não era mais um garoto. Tinha crescido no físico, e, à força, tinha amadurecido em sua postura, mas, naquele momento, estava se sentindo como um garoto. Pensava isso, pois sabia que os sentimentos que nutria por Elsa eram sentimentos errados. Ele sabia bem disso... E era o fato de reconhecer o erro que fazia com que ele se sentisse mal diante de toda aquela situação.“A ignorância é, realmente, uma bênção”, foi o que ele pensou quando olhou para Elsa. A jovem era filha de um dos seus melhores amigos. Muito mais do que isso, Elsa era filha de um dos homens mais íntegros que conhecera. No entanto, nada de tudo isso fazia com que a vontade de querer estar ali, perto dela, ouvindo-a falar sobre o que quer que fosse diminuísse... Ele sorr
"O isolamento em companhia de uma pessoa era mais opressivo que a solidão completa." (Graciliano Ramos)Apesar de carregar o título de Marquês das Flores, Martim não se considerava um homem nobre, e tal constatação fazia com que ele se sentisse péssimo. A verdade é que ele sabia que, se fosse um homem realmente bom e digno da nobreza da qual fazia parte, teria pedido a anulação do casamento com Patrícia no momento em que viu que as coisas entre os dois não teriam andamento da maneira que um casamento deveria acontecer. No entanto, sempre se sentia impedido de fazer isso, pois, sabia que o fim do casamento significaria que a sua esposa perderia o prestígio social e caísse em desgraça.A verdade é que, mesmo ausente de qualquer sentimento de afeto por Patrícia, vê-la cair no ostracismo social era a última coisa qu
Me fizeram pedra. Quandoeu queria.ser feita de amor (Hilda Hist)Muito antes de selar a sua união com o Marquês das Flores, Patrícia já tinha percebido que o mundo - em especial, o mundo conjugal - não funcionava da forma sua tia lhe ensinara. Quando tinha recém completado seis anos de idade, ela foi encaminhada aos Condes de Casanova, pois tinha perdido o pai em um acidente de cavalo, tornando-se uma órfã de fato.Bernadete, a Condessa, era a irmã mais velha do seu pai, o antigo Barão das Fortalezas, que abrira mão do título e do status para poder se casar com a mãe de Patrícia, que nada tinha a oferecer ao Barão, além do mais puro e verdadeiro amor. Amor esse que não se acabou quando a mãe da jovem faleceu, acometida por uma misteriosa pneumonia, e que o pai insistia em demonstrar todos
"Uma mulher como você e um homem como eu não se esbarram muitas vezes na face da terra." (Joseph Conrad) Para selar aquela noite, Patrícia seguiu o conselho das criadas e escolheu um dos mais belos trajes de dormir que recebera como parte do enxoval do seu casamento e que nunca tinha usado. Era uma roupa bonita, mas não bonita o suficiente para impedir que ela se sentisse desconfortável, afinal não costumava vestir aquilo para na hora dormir. Na verdade, ela não costumava vestir nada para dormir, pois, apesar de toda a sua criação regrada e de sua considerável habilidade em seguir regras, Patrícia mantinha preso em seu corpo um espírito que aspirava por liberdade. No entanto, ela tinha bom senso para saber que não poderia caminhar sem qualquer veste por todo o corredor até alcançar o quarto de Martim. Primeiro, porque poderia ser avistada por algum criado - o que seria constrangedor; segundo, porque, mesmo sendo o marido adepto a práticas de f
"Alguem desaparece lentamente. Não sei qual de nós dois." (Alberto de Lacerda)Elsa já tinha se cansado de contar as horas que passava longe de Martim. No entanto, pior do que a distância que os mantinham separados, era o silêncio que vinha dele. Segundo sua contas, já completavam mais de dois meses que Martim não aparecia no casarão Cortês, e também, já se completavam mais de dois meses que o Marquês ignorava as cartas apaixonadas que ela enviara. “No começo era tão diferente...”, ela pensou lembrando que, pelos corredores da casa, ela ouvira um ou outro boato entre os criados de que o Marquês e a Marquesa das Flores estavam acertando os pontos soltos no casamento. Ela não sabia se tais boatos eram verdadeiros, mas, mesmo com o silêncio de Martim, ela esperava que não fossem. “Não é justo&rdqu
"ABISMAR-SE: lufada de aniquilamento que atinge o sujeito apaixonado por desespero ou excesso de satisfação." (Roland Barthers)Patrícia não se lembrava da última vez em que tinha cavalgado por tanto tempo sem parar para descansar. O choque da revelação fez com que ela fosse da capela abandonada, ninho de amor de seu marido com Elsa, até o Palacete, o seu lar, em uma velocidade única – precisava alcançar a sua casa logo! E sua marcha não cessou nem mesmo quando uma tempestade a atingiu no meio do caminho. Não quis parar e nem podia. Com tudo desmoronando a sua volta, o que Patrícia precisava era de abrigo e aconchego. Assim, conseguiu chegar no Palacete, mas ao preço de estar com o rosto inchado do choro, e com o corpo molhado da chuva.Felipo, que conhecia todos os cavalos ao longe, correu ao encontro da Marquesa ao ver o primeiro rastro turvo de Gloriosa n
"Há palavras que requerem uma pausa e silêncio." (Herberto Helder)Martim despertou com o corpo dolorido e com a mente atordoada. Não tinha a certeza se tudo aquilo que vivera no dia anterior tinha sido real ou um grande sonho ruim, mas ao perceber que ainda trajava as mesmas vestes, e que elas ainda estavam úmidas, ele teve a certeza de que não tinha sido um sonho. Assim, o Marquês sentou e percebeu que não somente o corpo, mas também a cabeça doía, ela pesava como uma ressaca. Depois, o homem respirou fundo e, mesmo com todas as dores, começou a se recompor. Somente quando levantou foi que percebeu que a porta do quarto de Patrícia estava aberta, no entanto, ela não estava lá.De onde estava, percebeu que já era um novo dia, pois o sol já invadia a janela. Ele queria entrar no quarto, mas achou que não seria uma boa ideia, por isso, apesar de