Me fizeram pedra. Quando eu queria. ser feita de amor (Hilda Hist)
Muito antes de selar a sua união com o Marquês das Flores, Patrícia já tinha percebido que o mundo - em especial, o mundo conjugal - não funcionava da forma sua tia lhe ensinara. Quando tinha recém completado seis anos de idade, ela foi encaminhada aos Condes de Casanova, pois tinha perdido o pai em um acidente de cavalo, tornando-se uma órfã de fato.
Bernadete, a Condessa, era a irmã mais velha do seu pai, o antigo Barão das Fortalezas, que abrira mão do título e do status para poder se casar com a mãe de Patrícia, que nada tinha a oferecer ao Barão, além do mais puro e verdadeiro amor. Amor esse que não se acabou quando a mãe da jovem faleceu, acometida por uma misteriosa pneumonia, e que o pai insistia em demonstrar todos
"Uma mulher como você e um homem como eu não se esbarram muitas vezes na face da terra." (Joseph Conrad) Para selar aquela noite, Patrícia seguiu o conselho das criadas e escolheu um dos mais belos trajes de dormir que recebera como parte do enxoval do seu casamento e que nunca tinha usado. Era uma roupa bonita, mas não bonita o suficiente para impedir que ela se sentisse desconfortável, afinal não costumava vestir aquilo para na hora dormir. Na verdade, ela não costumava vestir nada para dormir, pois, apesar de toda a sua criação regrada e de sua considerável habilidade em seguir regras, Patrícia mantinha preso em seu corpo um espírito que aspirava por liberdade. No entanto, ela tinha bom senso para saber que não poderia caminhar sem qualquer veste por todo o corredor até alcançar o quarto de Martim. Primeiro, porque poderia ser avistada por algum criado - o que seria constrangedor; segundo, porque, mesmo sendo o marido adepto a práticas de f
"Alguem desaparece lentamente. Não sei qual de nós dois." (Alberto de Lacerda)Elsa já tinha se cansado de contar as horas que passava longe de Martim. No entanto, pior do que a distância que os mantinham separados, era o silêncio que vinha dele. Segundo sua contas, já completavam mais de dois meses que Martim não aparecia no casarão Cortês, e também, já se completavam mais de dois meses que o Marquês ignorava as cartas apaixonadas que ela enviara. “No começo era tão diferente...”, ela pensou lembrando que, pelos corredores da casa, ela ouvira um ou outro boato entre os criados de que o Marquês e a Marquesa das Flores estavam acertando os pontos soltos no casamento. Ela não sabia se tais boatos eram verdadeiros, mas, mesmo com o silêncio de Martim, ela esperava que não fossem. “Não é justo&rdqu
"ABISMAR-SE: lufada de aniquilamento que atinge o sujeito apaixonado por desespero ou excesso de satisfação." (Roland Barthers)Patrícia não se lembrava da última vez em que tinha cavalgado por tanto tempo sem parar para descansar. O choque da revelação fez com que ela fosse da capela abandonada, ninho de amor de seu marido com Elsa, até o Palacete, o seu lar, em uma velocidade única – precisava alcançar a sua casa logo! E sua marcha não cessou nem mesmo quando uma tempestade a atingiu no meio do caminho. Não quis parar e nem podia. Com tudo desmoronando a sua volta, o que Patrícia precisava era de abrigo e aconchego. Assim, conseguiu chegar no Palacete, mas ao preço de estar com o rosto inchado do choro, e com o corpo molhado da chuva.Felipo, que conhecia todos os cavalos ao longe, correu ao encontro da Marquesa ao ver o primeiro rastro turvo de Gloriosa n
"Há palavras que requerem uma pausa e silêncio." (Herberto Helder)Martim despertou com o corpo dolorido e com a mente atordoada. Não tinha a certeza se tudo aquilo que vivera no dia anterior tinha sido real ou um grande sonho ruim, mas ao perceber que ainda trajava as mesmas vestes, e que elas ainda estavam úmidas, ele teve a certeza de que não tinha sido um sonho. Assim, o Marquês sentou e percebeu que não somente o corpo, mas também a cabeça doía, ela pesava como uma ressaca. Depois, o homem respirou fundo e, mesmo com todas as dores, começou a se recompor. Somente quando levantou foi que percebeu que a porta do quarto de Patrícia estava aberta, no entanto, ela não estava lá.De onde estava, percebeu que já era um novo dia, pois o sol já invadia a janela. Ele queria entrar no quarto, mas achou que não seria uma boa ideia, por isso, apesar de
"Não despertes o que não podes calar." (José Tolentino Mendonça)Elsa acordou junto com os primeiros raios do sol, o que não aconteceu por vontade própria, mas por conta de um sonho que teve, e que ainda reverberava sobre a sua alma. Tinha sonhado com Martim, com o bebê que carregava e com a Morte. Elsa soltou um longo suspiro, e percebeu que carregava no peito inúmeras superstições. Por isso, apertou com força o crucifixo que sempre decorava o seu pescoço. Se deu conta de que há tempos não sonhava da maneira que tinha sonhado naquela noite, e pensava que, talvez, aquele fosse um reflexo da certeza da gravidez – já não sangrava pelo terceiro mês seguido e a sua criada pessoal já tinha feito a avaliação, e disse que esse era o único resultado possível.Ainda arfando, a jovem ergueu o corpo na cama e tentou
"A tua extinção ainda é um fogo." (Vasco Gato)Pela milésima vez, Patrícia se encarou no espelho com certa tristeza, e ali enfrentou a mesma dificuldade das outras vezes: a de se reconhecer com os cabelos curtos. Estava acostumada com os seus longos cabelos pretos correndo pelo seu corpo, e os amava - amava cada fio dos seus cabelos! -, no entanto, tinha feito uma promessa pela vida de Martim e era seu dever honrar com ela.Desde que chegara ao Solar das Margaridas, o marido esteve com a vida por um fio em decorrência de uma pneumonia tinha o abatido por longos sete dias, por conta das chuvas que tomara. A visita do médico só lhe trouxera más notícias, no entanto, ela não aceitava perder mais uma pessoa dessa maneira! Por isso, com os joelhos no chão, pediu à Nossa Senhora da Anunciação que poupasse a vida do seu esposo e, em troca, ela cortaria os cabelos q
O badalar dos sinos era o indicativo de que mais um dia começava. No mesmo instante, Elsa levantou da cama e vestiu o seu hábito, apanhou o rosário em tom amarronzado e, após, enfileirada com as demais noviças, se ajoelhou frente ao altar e deu início à primeira oração do dia - a hora das Laudes. Aquele era o tempo em que estava vivendo a sua vida.Depois que matara Patrícia, a jovem entrou em um estado de choque: dias sem falar, dias sem dormir, dias sem comer, grávida e com o peso de um crime nas costas. Tudo o que conseguia se era se perguntar o que tinha acontecido - naquele momento, não sabia dizer, mas hoje, apesar de ainda não saber, compreendia. A juntada da vergonha da gravidez, com a sua tentativa de suicídio, com o crime que cometera e com o seu recente silêncio, foram argumentos suficientes para que Cortês - já ansioso para se livrar do estorvo que
Querido Martim,Passei a noite em claro e, em meio a todas as dúvidas e angústias que pairam sobre isso que acontece entre nós, me dei conta de como senti falta da doçura das suas palavras – que tanto me acalmam e inspiram. Por isso, em meio a todo esse sentimento, resolvi te escrever.Confesso que venho tentando, com veemência, estancar todas essas angústias, pois hoje percebo que há muita verdade naquilo que você me disse: “se for impossível a mudança, é preciso aceitar as coisas como são. Assim, o processo fica menos doloroso”. De fato, a aceitação faz com que dor seja menos pungente. No entanto, como aceitar as coisas como são quando, sempre que te vejo, a minha racionalidade é domada por uma legião de sentimentos furiosos? Eu juro que já tentei colocar esses sentimentos no lugar deles, mas, tudo me parece tão imposs&i