Capítulo 3

Assim que chegou à mansão do governador, lugar também chamado por ele de lar, Filipe passou ante a porta do escritório do seu pai apenas para verificar se sua ausência levantara alguma suspeita. Encontrou a porta entreaberta, como de costume, onde em seu interior o homem que lá se encontrava, ocupava o cargo governamental no preenchimento e verificação de documentos ou qualquer outra atividade menos paternal. Sequer percebera que seu filho chegara duas horas atrasado do horário que deveria terminar suas aulas. De certa forma Filipe ansiava por uma bronca, um castigo ou qualquer atitude que evidenciasse que ele tinha um pai. Baixou a cabeça e seguiu seu caminho rumo ao próprio quarto. Sua mãe passava os dias reclusa, repousando em sua cama. Por meses não saía do quarto onde, indisposta, passava a maior parte do tempo dormindo. Restava-lhe a atenção da governanta, uma senhora simpática, porém sempre ocupada com os afazeres do lar. Foi ela quem apressou o menino para que se banhasse antes de sentar à mesa para almoçar. Uma mesa imensa com refeição de sobra, sempre ocupada solitariamente pelo garoto. E assim ele seguiu sua rotina.

***

Do outro lado da cidade, Choco caminhou o mais silenciosamente possível, carregando sua bicicleta para a garagem e, em seguida, abrindo vagarosamente a porta de casa. Era difícil impedir os joelhos de se baterem e o coração de disparar, sempre que chegava. Quando viu o prato frio sobre a mesa da cozinha, acompanhado do outro prato já vazio, o coração bateu mais forte. E quase saltou pela boca quando o vulto de seu pai avolumou-se no canto dos seus olhos.

– Onde você estava? – A pergunta seca tornou o ar mais denso, tanto pelo medo quanto pelo forte cheiro de álcool que emanava daquele homem parado no corredor, encarando-o de modo assustador. Os olhos de Choco fitaram apreensivos o cinto que o homem segurava firme entre as fortes mãos.

– Desculpa, pai. Eu estava brincando e não vi a hora passar...

– Você acha que eu ganho o suficiente para jogar comida fora, garoto?!? – Interrompeu o Sr. Santos, esbravejando e gesticulando.

– Eu como, pai! Não tem problema estar...

– Você já conhece a rotina – interrompeu novamente, em tom mais controlado. – Vá agora pro quarto e me aguarde.

Infelizmente para Choco, aquele não seria um dia atípico. Repetindo uma triste rotina, diferenciada apenas pelos motivos dados, o garoto, deitado de bruços, ouviria o som do cinto assobiando pelo ar antes de estalar em seu corpo, deixando apenas as dores e as marcas até que seu pai se desse por satisfeito. Um momento em que Choco torcia apenas para que aquilo terminasse, enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto. E trancado no quarto, com seus olhos marejados, o garoto encarava a foto da mãe que nunca conheceu, em um porta retrato quebrado no criado mudo. Embalado pelo ronco alto do pai questionava-se o motivo de uma vida tão sofrida enquanto desejava, inutilmente, que a mulher que o encarava na foto retornasse, chegando a desejar em algumas ocasiões, se juntar a ela no seu “descanse em paz”, como garantia a lápide da amada mãe.

***

Anarina já havia comido qualquer coisa e, acostumada a passar os dias sozinha enquanto sua irmã trabalhava no jornal da cidade, dedicava-se à leitura de um dos seus livros. Tentava se concentrar, mas aqueles olhos imensos não saiam da sua mente impressionada. Mais alguns parágrafos e o sono lhe fez um sutil convite.

Já era madrugada quando a garota despertou. Uma culpa enorme pesava em seu peito mais do que o livro que ali repousava. Culpa pelas palavras duras que disparou contra sua irmã. Ela precisava se desculpar, fazer as pazes e reafirmar o quanto a amava. O quanto apreciava os esforços dela para manter as duas. Esforços que tantas vezes faziam-na trabalhar até a madrugada a fim de lhes trazer o necessário para se manterem. E ao procurá-la em seu quarto percebeu que esta era mais uma de tais ocasiões. Por certo sua irmã estava na redação do jornal. Anarina sabia que não conseguiria mais dormir, especialmente após ter visto aquela assustadora figura mais cedo, no circo. E como toda criança, àquela hora da madrugada, as imagens em sua memória pareciam mais assustadoras do que nunca. Concluiu que pedalar até a redação seria uma alternativa menos assustadora do que aguardar em casa e, com este objetivo em mente, imbuiu-se de toda coragem que pôde acumular e correu o mais rápido que lhe foi possível rumo ao trabalho da irmã.

***

Foi o Sr. Santos, pai de Choco, quem recebeu a menina na porta do trabalho. Fotógrafo do jornal, ele trabalhava no turno da noite ou a qualquer momento que as notícias precisassem das suas habilidades.

– O que faz aqui uma hora dessas, menina? – Questionou alarmado com algum possível problema em que a garota pudesse ter se metido.

– Boa noite, seu Santos. Preciso falar com minha irmã – respondeu Anarina enquanto descia de sua bicicleta e recostava-a na parede ao lado.

– Ela não está aqui. Foi cobrir uma matéria na escola. É melhor você voltar para casa e esperar ela chegar.

– Eu prefiro esperar ela chegar aqui.

– Essa é uma péssima ideia. Vá para casa e...

Antes que a discussão pudesse continuar um enorme clarão reteve a atenção dos dois. Viraram-se a tempo de ver, bem ao longe na direção da escola, uma labareda de fogo subir ao céu noturno enquanto o som da enorme explosão fez tremer o chão sob seus pés. Com o fôlego suspenso, permaneceram paralisados por um instante enquanto contemplavam aquele espetáculo de horror.

– Por Deus, é a escola! – Proferiu incrédulo, Sr. Santos.

– Minha irmã!!! – Gritou Anarina, enquanto o sangue gelava em suas veias.

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