Assim que chegou à mansão do governador, lugar também chamado por ele de lar, Filipe passou ante a porta do escritório do seu pai apenas para verificar se sua ausência levantara alguma suspeita. Encontrou a porta entreaberta, como de costume, onde em seu interior o homem que lá se encontrava, ocupava o cargo governamental no preenchimento e verificação de documentos ou qualquer outra atividade menos paternal. Sequer percebera que seu filho chegara duas horas atrasado do horário que deveria terminar suas aulas. De certa forma Filipe ansiava por uma bronca, um castigo ou qualquer atitude que evidenciasse que ele tinha um pai. Baixou a cabeça e seguiu seu caminho rumo ao próprio quarto. Sua mãe passava os dias reclusa, repousando em sua cama. Por meses não saía do quarto onde, indisposta, passava a maior parte do tempo dormindo. Restava-lhe a atenção da governanta, uma senhora simpática, porém sempre ocupada com os afazeres do lar. Foi ela quem apressou o menino para que se banhasse antes de sentar à mesa para almoçar. Uma mesa imensa com refeição de sobra, sempre ocupada solitariamente pelo garoto. E assim ele seguiu sua rotina.
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Do outro lado da cidade, Choco caminhou o mais silenciosamente possível, carregando sua bicicleta para a garagem e, em seguida, abrindo vagarosamente a porta de casa. Era difícil impedir os joelhos de se baterem e o coração de disparar, sempre que chegava. Quando viu o prato frio sobre a mesa da cozinha, acompanhado do outro prato já vazio, o coração bateu mais forte. E quase saltou pela boca quando o vulto de seu pai avolumou-se no canto dos seus olhos.
– Onde você estava? – A pergunta seca tornou o ar mais denso, tanto pelo medo quanto pelo forte cheiro de álcool que emanava daquele homem parado no corredor, encarando-o de modo assustador. Os olhos de Choco fitaram apreensivos o cinto que o homem segurava firme entre as fortes mãos.
– Desculpa, pai. Eu estava brincando e não vi a hora passar...
– Você acha que eu ganho o suficiente para jogar comida fora, garoto?!? – Interrompeu o Sr. Santos, esbravejando e gesticulando.
– Eu como, pai! Não tem problema estar...
– Você já conhece a rotina – interrompeu novamente, em tom mais controlado. – Vá agora pro quarto e me aguarde.
Infelizmente para Choco, aquele não seria um dia atípico. Repetindo uma triste rotina, diferenciada apenas pelos motivos dados, o garoto, deitado de bruços, ouviria o som do cinto assobiando pelo ar antes de estalar em seu corpo, deixando apenas as dores e as marcas até que seu pai se desse por satisfeito. Um momento em que Choco torcia apenas para que aquilo terminasse, enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto. E trancado no quarto, com seus olhos marejados, o garoto encarava a foto da mãe que nunca conheceu, em um porta retrato quebrado no criado mudo. Embalado pelo ronco alto do pai questionava-se o motivo de uma vida tão sofrida enquanto desejava, inutilmente, que a mulher que o encarava na foto retornasse, chegando a desejar em algumas ocasiões, se juntar a ela no seu “descanse em paz”, como garantia a lápide da amada mãe.
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Anarina já havia comido qualquer coisa e, acostumada a passar os dias sozinha enquanto sua irmã trabalhava no jornal da cidade, dedicava-se à leitura de um dos seus livros. Tentava se concentrar, mas aqueles olhos imensos não saiam da sua mente impressionada. Mais alguns parágrafos e o sono lhe fez um sutil convite.
Já era madrugada quando a garota despertou. Uma culpa enorme pesava em seu peito mais do que o livro que ali repousava. Culpa pelas palavras duras que disparou contra sua irmã. Ela precisava se desculpar, fazer as pazes e reafirmar o quanto a amava. O quanto apreciava os esforços dela para manter as duas. Esforços que tantas vezes faziam-na trabalhar até a madrugada a fim de lhes trazer o necessário para se manterem. E ao procurá-la em seu quarto percebeu que esta era mais uma de tais ocasiões. Por certo sua irmã estava na redação do jornal. Anarina sabia que não conseguiria mais dormir, especialmente após ter visto aquela assustadora figura mais cedo, no circo. E como toda criança, àquela hora da madrugada, as imagens em sua memória pareciam mais assustadoras do que nunca. Concluiu que pedalar até a redação seria uma alternativa menos assustadora do que aguardar em casa e, com este objetivo em mente, imbuiu-se de toda coragem que pôde acumular e correu o mais rápido que lhe foi possível rumo ao trabalho da irmã.
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Foi o Sr. Santos, pai de Choco, quem recebeu a menina na porta do trabalho. Fotógrafo do jornal, ele trabalhava no turno da noite ou a qualquer momento que as notícias precisassem das suas habilidades.
– O que faz aqui uma hora dessas, menina? – Questionou alarmado com algum possível problema em que a garota pudesse ter se metido.
– Boa noite, seu Santos. Preciso falar com minha irmã – respondeu Anarina enquanto descia de sua bicicleta e recostava-a na parede ao lado.
– Ela não está aqui. Foi cobrir uma matéria na escola. É melhor você voltar para casa e esperar ela chegar.
– Eu prefiro esperar ela chegar aqui.
– Essa é uma péssima ideia. Vá para casa e...
Antes que a discussão pudesse continuar um enorme clarão reteve a atenção dos dois. Viraram-se a tempo de ver, bem ao longe na direção da escola, uma labareda de fogo subir ao céu noturno enquanto o som da enorme explosão fez tremer o chão sob seus pés. Com o fôlego suspenso, permaneceram paralisados por um instante enquanto contemplavam aquele espetáculo de horror.
– Por Deus, é a escola! – Proferiu incrédulo, Sr. Santos.
– Minha irmã!!! – Gritou Anarina, enquanto o sangue gelava em suas veias.
De onde tirar forças para se manter de pé quando seu próprio mundo desmorona bem à sua frente? Quando a vida te arremessa pedras, o maior desafio é fazer delas seu pavimento. É arriscar-se a prosseguir seu caminhar. É desafiar-se a continuar a viver.O chão ainda tremia sob os pés de Anarina, ou eram suas próprias pernas que bambeavam ante o quadro formado distante, ainda que ao alcance dos seus olhos. As ruas planas permitiam ver, a poucos quilômetros, a escola (ou o que tinha sobrado dela) mergulhada num mar de fumaça e ruínas. Uma cortina densa soprada ao ar como uma pesada nuvem negra fez a garota imaginar o pior.– Anda, garota! Entra no carro! – Gritou o Sr. Santos já em seu velho Opala ferrugem com uma listra preta que ia do capô até o para-choque traseiro. Sem hesitar a garota saltou para dentro e mal teve t
– Gritar com a autoridade sempre ajuda né, Pimentinha? – O tom de voz de Choco era sarcástico, mas desanimado. De cabeça baixa, aguardava a bronca que apenas antecederia sua tardia sentença mais severa.Os três garotos estavam sentados, lado a lado, em três cadeiras dispostas diante de uma grande mesa sobre a qual, virada para eles, uma placa de identificação portava logo abaixo do nome “Pretório de Lima”, o título “delegado”, conferindo a devida autoridade ao homem que os encarava.Pretórios de Lima era um pequeno homem caucasiano de meia idade, com uma calvície avançada cujos últimos fios sobreviventes estavam sempre molhados atravessando o topo da cabeça redonda de um lado ao outro. Um par de óculos grande e arredondado parecia se equilibrar na ponta do nariz achatado enquanto suas mãos concordemente pequenas agitav
O delegado Lima já estava retirando o telefone do gancho quando foi interrompido por Bárbara, sua bela assistente que tocou-lhe o ombro e disse algo em seu ouvido.– Ah! Peça-o para entrar! – Respondeu Pretórios, erguendo-se o quanto pôde na cadeira e fitando a porta, aberta pela mulher para permitir a entrada anunciada.Uma figura grande e imponente se avolumou, pondo-se a adentrar a sala como uma montanha a cruzar o caminho até a mesa do delegado. O homem afro descendente escondia um corpo robusto sob o terno escuro enquanto revelava, sob uma barba aparada, uma expressão rígida quase esculpida em sua face bruta. Caminhou a passos firmes e, assim que terminou seu trajeto, estendeu a mão para cumprimentar Pretórios.– Eu sou o agente Kron, nos falamos mais cedo. Vim estabelecer a jurisdição sobre a investigação da explosão do complexo educaci
Estava prestes a anoitecer quando, num esforço em conjunto, a equipe de busca conseguiu abrir caminho até o centro do complexo. Um bombeiro e um paramédico estavam prestes a entrar, sem saber o que esperar do local que havia se tornado um grande mistério. O que teria acontecido com o primeiro bombeiro a adentra? Que ameaças eles poderiam esperar? Uma série de dúvidas pairava enquanto um silêncio tácito e um ar de pesada tensão se formava ao que restava apenas uma leve barreira de terra a separar os homens do temeroso complexo à frente. Olharam-se, fizeram um sinal positivo e deram os últimos golpes na parede que cedeu, abrindo caminho e finalmente revelando o enorme salão relativamente preservado da explosão. Apesar do estado de alerta e da respiração ofegante, bem como das talhadeiras em punho prontas para qualquer ataque, o lugar parecia completamente calmo e vazio. Foi e
O antagonismo entre a luz e as trevas remonta a história humana. Por vezes a escuridão, rotulada como eterna vilã, fora rechaçada enquanto tateando pelas densas trevas, o homem buscava qualquer foco de luz para que repousasse em segurança. Mas existem formas reveladas pela luz que nos fazem almejar a ignorância da escuridão.Iluminada pela opaca luz noturna que adentrava a janela de seu quarto, Anarina acabara de ouvir de seu amigo a notícia de que alguém havia sido encontrado entre os escombros da escola. Antes que pudesse digerir aquela notícia, porém, percebeu a maçaneta da porta girar lentamente, fazendo o coração da garota saltar dentro do peito. Seus olhos passearam rapidamente pelo quarto, em busca de algo que pudesse protegê-la. Repousaram sobre uma ripa do armário jogada no canto, que rapidamente foi apanhada e posicionada entre suas mãos como um rebat
Choco olhou novamente com receio e encontrou seu pai dormindo, agora virado para o encosto do sofá, com a chave para o alto, enfiada em seu bolso. Com todo o cuidado, ajoelhado no carpete, o garoto pinçou o chaveiro com os dedos e puxou lentamente até que o objeto inteiro pudesse ser agarrado. Assim que se apoderou do chaveiro ergueu-se, caminhando na ponta dos pés até a porta do quarto escuro, que ficava no corredor bem de frente para a sala. Enfiou a chave com cuidado e girou o tambor, fazendo o quarto destrancar. Porém, antes mesmo de abrir a maçaneta, ouviu as fortes e ininterruptas batidas na porta da sala. Novamente o coração disparou e o sangue gelou, principalmente quando viu seu pai erguer-se do sofá e olhar para a porta, de costas para onde Choco estava. O garoto tinha então duas alternativas: entrar para o quarto escuro e certamente ser pego, ou correr para o próprio quarto, escapand
Do outro lado da pequena cidade, Anarina estava parada na calçada, em frente à bela casa de Barbara Delfim. A casa de dois andares era feita de madeira e, bem à frente, um lindo jardim florido adornava a vista. A garota abriu a portinhola e, atravessando o corredor de pedras margeado pela grama, subiu os três degraus até ficar bem de frente para a porta. Respirou fundo e bateu três vezes, até que ouviu-a ser destrancada e aberta. Bárbara a encarou cerrando os olhos, com uma expressão de desaprovação. A mulher na flor de seus quarenta anos ostentava uma boa forma física. Poucas rugas se evidenciavam no canto dos seus olhos castanhos e graúdos. Os cabelos longos de franjas compridas que quase ocultavam suas sobrancelhas oblíquas, eram negros e lisos. Fechou o roupão branco e fez um gesto para que a menina entrasse:– A senhorita me deixou preocupada! – Tentou for&c
– Ai, meu Deus! São eles! Os alienígenas chegaram! – A voz de Choco ressoava alto enquanto o garoto gritava, segurando e sacudindo com força o primeiro braço que encontrou a tatear.– Se acalma Choco! – Reclamou Filipe tentando, sem sucesso, se soltar do garoto.– Calma gente! Foi só um apagão – Anarina manteve a voz serena, por mais que seu coração estivesse acelerado. – Com certeza a luz vai...Ela terminava a frase quando, bem diante deles, uma fresta de luz surgiu, iluminando um rosto enrugado e pálido.– AAAAHHHHHHH!!! É uma alien! – O grito fino de Choco foi acompanhado pelo dos garotos, que não contiveram o enorme susto, fazendo a bibliotecária também se assustar e apagar acidentalmente a lanterna em sua mão, que quase deixou cair.– O que é isso, meu deus do céu! –