Os intensos raios de sol atravessavam a leve cortina estampada da janela de Anarina, quando o ruidoso rádio de comunicação, também conhecido como walkie-talkie, a acordou. A voz de um menino ressoava em meio à estática:
– Ei! Ana! Você tá aí, câmbio? – Ainda sonolenta a garota reconheceu a voz de Filipe Valadares, seu melhor amigo. Sem se levantar da cama ergueu sonolenta o braço e apanhou o rádio, pressionando o botão e respondendo com certa rouquidão:
– Fil? Você não estava de castigo? Câmbio.
– Meu velho me deixou sair por bom comportamento. Choco tá comigo. Estamos aqui na praça e temos uma surpresa pra você! – Atiçou Filipe.
– Oi, Pimenta! Temos uma nova aventura, câmbio! - Mesmo que não reconhecesse a voz, Anarina sabia quem estava falando agora. Sempre apelidando a todos, era o único a chamar Anarina daquela forma. Por isso a garota logo percebeu que Choco havia pegado o rádio das mãos de Filipe.
– Oi, Choco. Perdeu seu rádio de novo? Câmbio.
– Tá sem pilha, pra variar. Mas chega de conversa, Pimentinha! Vem logo pra cá ou a gente vai sem você, câmbio final.
Enquanto se aprontava para sair Anarina riu imaginando Filipe discutindo mais uma vez com Choco para que o garoto usasse a expressão “câmbio desligo”.
***
Anarina sempre foi curiosa por natureza. Uma característica que, vez por outra, a arrebatava para grandes aventuras. Em pouco menos de trinta minutos, que para os dois garotos pareceu uma eternidade, a garota chegou montada em sua bicicleta branca e lilás, com uma cestinha pendurada na frente. A calça jeans desbotada era sujamente adornada com os respingos de lama, graças ao pedalar pelas ruas barrentas. A camiseta branca carregava ao peito a estampa da logo dos Rolling Stones, parcialmente coberto pela jaqueta vermelha de couro batido.
A praça do Embaixador situava-se no centro do lado oeste da cidade; A parte pobre da cidade que era dividida pela estrada principal. O lado leste era a área nobre, ocupada pelos mais influentes. Era onde passava o rio Iberê e onde situava-se a prefeitura, lar de Filipe Valadares e seu pai, o prefeito.
Repleta de brinquedos para as crianças, a praça estava sempre cheia, em especial nessas épocas de férias escolares. No centro da praça circular erguia-se o busto do embaixador da cidade. A praça era cercada de árvores e era justamente onde Filipe e Choco aguardavam a chegada da sua amiga. Ao se aproximar ela pôde ouvir a conversa dos dois e mal conseguiu acreditar que a discussão tenha durado tanto tempo.
– Eu sei que “câmbio, final” também é correto, Choco. Mas já perdi a conta de quantas vezes te expliquei que “câmbio, desligo” é uma diferenciação da nossa comunicação.
Como uma forma de encerrar aquele assunto e ao mesmo tempo anunciar sua chegada, Anarina tocou o sino de sua bicicleta, chamando a atenção dos dois.
– Caramba, Pimenta! Até que enfim! A gente tá te esperando há horas! – Ergueu-se Choco, com as duas mãos na cintura e sacudindo a cabeça numa negativa.
– Vinte e oito minutos, pra ser exato – contrariou Filipe, emendando em seguida: – O que não significa ter sido curta a espera.
– Tive uns problemas ontem e não acordei muito bem – desculpou-se Anarina. – Mas a “nova aventura” foi o suficiente pra me tirar da cama. Qual foi dessa vez?
– Você não vai acreditar! – bradou Choco com um largo sorriso, arrastando um suspense enquanto os próprios olhos brilhavam.
– Um circo chegou à cidade – cortou Filipe sem fazer cerimônias, para o desagrado de Choco que pretendia estender ainda mais o suspense.
– Mentira! Na nossa cidade? Um circo de verdade? Não acredito! – Os olhos de Anarina arregalaram-se, fazendo o azul celeste se tornar ainda mais vivo. Os lábios envergaram-se largamente num sorriso incontido.
– Eu disse que você não ia acreditar – comentou Choco ainda um tanto desanimado com a frustração de sua interrompida surpresa.
– Ouvi meu pai falando ao telefone hoje pela manhã. Ele confirmou a chegada do circo nesta madrugada – Filipe gesticulava de forma abrangente enquanto falava.
– E o que estamos esperando?!? Vamos lá! – Interrompeu Anarina, já subindo novamente em sua bicicleta. Os meninos fizeram o mesmo e Filipe tomou a frente, guiando o grupo.
Com sua pele clara, quase reluzente durante os dias de sol, Filipe tinha um ar “nerd”, reforçado por seu par de óculos de armação preta e arredondada que vivia a cair sobre a ponta do nariz e o cabelo escuro sempre perfeitamente penteado. Em conjunto com sua roupa extremamente arrumada e formal, sua aparência não negava suas origens oriundas do lado nobre. O que alguns não sabiam, e ele não fazia questão de evidenciar, era sua ascendência. Vindo de uma longa linhagem de governadores da cidade – onde o título ainda era passado entre as gerações – Filipe era o único filho do governador Juscelino Valadares. Seu pai sequer imaginava que o filho passava os dias explorando o outro lado da cidade enquanto deveria estar cursando aulas particulares de esgrima ou qualquer outra matéria aplicada para que o garoto ocupasse seus dias durante as férias. Mas ao invés disso lá estava ele, mais uma vez envolvido em alguma aventura com seus amigos pobres.
Choco era o apelido de Caio Santos Jr, o mais novo do grupo, também com seus quatorze anos de idade. Caio era filho do habilidoso fotógrafo do Jornal de Ouro, o Sr. Caio Santos. Piadista incorrigível, vivia aprontando peças ou caçoando de tudo e de todos. Pedalava avidamente sua bicicleta azul metálica para compensar a desvantagem que sua baixa estatura e seu corpo franzino lhe proporcionavam. De pele negra e cabelo batido, seu largo e constante sorriso era sua marca registrada.
Em alguns minutos os três chegaram às margens da cidade; um vale interrompido por um barranco. Uma descida íngreme onde o vale continuava depressão abaixo, até uma enorme clareira. De cima podiam ver à distância um cenário vislumbrado apenas em seus mais espetaculares sonhos infantis: em destaque um grandioso vagão de uma Maria Fumaça, uma locomotiva a vapor imensa com sua chaminé projetada que impressionou os garotos. Vermelha e amarela, a enorme máquina mantinha-se parada, como um gigante férreo adormecido em meio às diversas lonas listradas de um vermelho e branco, que começavam a ser estendidas, sibilando no ar. Completando aquele deslumbrante cenário, alguns homens batiam estacas que dariam suporte às lonas ainda aguardando serem armadas. Aquele circo era muito maior do que imaginaram.
– Vamos descer? – Perguntou Filipe a esmo, sem tirar os olhos do cenário em movimento abaixo deles.
– Tá maluco? – Respondeu Choco não menos hipnotizado com as listras dançantes daquelas lonas. – Se meu pai me pegar eu vou levar uma surra tão grande que vou ficar duas semanas sem conseguir sentar! É melhor a gente voltar, certo, Pimenta? Pimenta!?
Viram nesse momento apenas a bicicleta ao chão e a garota já se precipitando barranco abaixo, rumo ao espetáculo ainda por se erguer. Ela precisava ver aquilo tudo mais de perto. Anarina sempre imaginou uma vida além daquela cidade ridiculamente pequena e monótona. Passava horas lendo os tantos romances de Agatha Christie e Arthur Conan Doyle, sonhando com um mundo imenso, de mistérios e aventuras, fora daquela prisão sem muros. Aguardava ansiosa seus dezoito anos e a liberdade que teria para fugir. Fugir para o mais longe que pudesse e então viver suas próprias fantásticas histórias, muito além daquelas brincadeiras de criança de Ouro Fundo. E de repente, bem diante dela, estava algo tão grande quanto seu sonho: a possibilidade de tocar o desconhecido e descobrir uma parte do mundo até então apenas lido ou sonhado.
– Espera, Filipe. Você não tá pensando em...
Os protestos conservadores de Caio não foram suficientes para segurar o jovem que com um sorriso maroto e um breve aceno tinha deslizado em seguida atrás de sua amiga.
– Mas será que eu sou o único responsável aqui? Vocês vão se meter em encrenca, estão ouvindo?! E eu... – Gritou Choco enquanto os dois prosseguiam para em seguida menear a cabeça negativamente e segui-los barranco abaixo. – Eu vou me lascar.
Já no sopé do morro eles se viam há poucos metros do acampamento circense.
– Meu pai vai me matar – sussurrou Choco ao alcançar os dois.
– Você é um medroso, sabia? – Rebateu Filipe, também sussurrando.
– Não é o seu bumbum branco que vai ser espalmado essa noite!
Logo os homens que antes armavam as lonas deixaram seu trabalho e caminharam para dentro do trem. Ao ver o local vazio Anarina, que estava um pouco à frente, virou-se para os dois com um sorriso matreiro.
– Que sorriso foi esse? – Questionou Choco, puxando a blusa de Filipe e apontando para a amiga. – Desfaz esse sorriso agora! Ele nunca é um bom sinal!
Ele ainda falava quando Anarina precipitou-se numa carreira, cruzando o longo caminho até entrar na única lona montada.
– Ai, meu Deus! Eu falei! Eu falei do sorriso, não falei?! Eu já posso até sentir as palmadas! – Resmungava choroso Choco, amassando a blusa de Filipe entre as mãos.
– Relaxa, Choco – Libertou-se do garoto em chilique e o segurou pelos ombros, sacudindo-o. – O que é uma ferida para um leproso? Agora que já estamos aqui, vamos cair de cabeça! – E correu arrastando o amigo pelo mesmo trajeto feito por Anarina.
– Vocês podem fazer silêncio?! – Repreendeu Anarina assim que os dois chegaram.
– É o Choco que tá se borrando todo, pra variar – desculpou-se, Filipe.
Antes que Choco pudesse se desculpar Anarina fez um gesto de silêncio levando o indicador aos próprios lábios. – Eu acho que vi algo...
Os garotos começaram a se esgueirar para dentro da lona, observando seu interior que aos poucos se revelava. Diferente do lado de fora, a parte interna era escura, proporcionando uma visão limitada de diversas ferramentas e caixas espalhadas por todo o lugar. Mas o que lhes chamou a atenção foram os enormes cilindros ao centro. Três tubos de vidro com algum líquido borbulhante em seu interior. Um deles, porém, parecia conter algo a mais. Os garotos se aproximaram lentamente, quase tateando em meio ao breu. Colados um ao outro caminharam passo a passo, como que atraídos por aqueles estranhos cilindros. À medida que se aproximaram foi se desenhando cada vez mais evidente uma forma humana no interior do tubo, mergulhada num líquido esverdeado e viscoso. Seus pequenos olhos estavam arregalados e a respiração ofegante, enquanto apenas o som dos seus corações era ouvido. Eles circundaram o tubo com o olhar fixo, procurando o rosto daquela forma humana que mal podia ser vista diante da penumbra cujo único feixe de luz cruzava uma pequena fenda na lona, bem acima deles.
– Que raios é isso? – Sussurrou Filipe.
– Parece... uma criança – respondeu em tom baixo Anarina, assim que pode vislumbrar o rosto da forma imóvel diante deles. De fato, apesar da escuridão, podiam ver a forma do corpo pequeno, com seus braços e pernas, o tronco aparentemente nu e a cabeça baixa com cabelos esvoaçados boiando pelo líquido. Os olhos fechados, mais parecia um manequim sem vida.
– Eu acho que é um boneco – raciocinou Filipe olhando fixamente para o rosto imóvel.
– Eu já vi o rosto dele em algum lugar... – Sussurrou Choco, sem muito se aproximar.
Anarina, que estava mais próxima, estendeu a mão tocando no vidro e então, repentinamente, o ser teve um brusco espasmo, erguendo a cabeça e abrindo os olhos arregalados, encarando diretamente a garota. Um arrepio percorreu a espinha da jovem, fazendo seu corpo tremer. Um grito agudo se desprendeu dos pulmões de Choco, sendo acompanhado pelo grito dos outros, que correram o mais rápido que puderam para o caminho do qual vieram. Enquanto subia Anarina olhou para trás e pôde ver alguns dos homens saindo do trem e olhando para os garotos que a esta altura já estavam perto de suas bicicletas. Tão rapidamente quanto subiram, os três pedalaram por todo o trajeto de volta, chegando à cidade ofegantes e trêmulos. Pararam diante do mesmo parque onde haviam se encontrado.
– Vocês viram aquilo?! – Berrou Choco. – Viram aquilo?! Caramba! Era um alienígena! Com certeza era um alien!
– Não viaja, Choco – retrucou Filipe, ajeitando os óculos e ainda recuperando o fôlego. – Provavelmente era um boneco com algum sistema de controle tátil para o espetáculo. Algo assim.
– Boneco, que nada! Aquilo era um alien, com certeza! Ou um monstro meio homem, meio peixe. Um experimento científico.
– Ah! Você precisa parar de ler gibis, Choco – riu Filipe, já recuperado. Voltou-se então para Anarina que permanecia com o olhar distante, repensando sobre o que acabaram de presenciar – O que você acha, Ana?
Ainda pensativa, a garota virou-se para eles: – Hum... Você disse que achou o rosto dele familiar, não foi Choco? Consegue se lembrar de quem ele parecia?
Choco cerrou os olhos e tentando forçar a memória: – Não... Eu não me lembro.
– Seja o que for é algo muito estranho – concluiu Anarina. – Parece que temos um caso para investigar, meus amigos!
– Eu vou ter é um cinto pra enfrentar se não chegar em casa para o almoço – retribuiu Choco montando novamente em sua bicicleta.
– Eu também preciso ir – Filipe preparou-se para pedalar. – A aula de piano, em que eu teoricamente estou matriculado, tá prestes a terminar.
– Tudo bem – respondeu Anarina. – Mas fiquem perto dos seus rádios. Parece que finalmente um grande mistério está batendo às nossas portas. E eu estou doida pra abrir!
Assim que chegou à mansão do governador, lugar também chamado por ele de lar, Filipe passou ante a porta do escritório do seu pai apenas para verificar se sua ausência levantara alguma suspeita. Encontrou a porta entreaberta, como de costume, onde em seu interior o homem que lá se encontrava, ocupava o cargo governamental no preenchimento e verificação de documentos ou qualquer outra atividade menos paternal. Sequer percebera que seu filho chegara duas horas atrasado do horário que deveria terminar suas aulas. De certa forma Filipe ansiava por uma bronca, um castigo ou qualquer atitude que evidenciasse que ele tinha um pai. Baixou a cabeça e seguiu seu caminho rumo ao próprio quarto. Sua mãe passava os dias reclusa, repousando em sua cama. Por meses não saía do quarto onde, indisposta, passava a maior parte do tempo dormindo. Restava-lhe a atenção da governanta, uma senhora
De onde tirar forças para se manter de pé quando seu próprio mundo desmorona bem à sua frente? Quando a vida te arremessa pedras, o maior desafio é fazer delas seu pavimento. É arriscar-se a prosseguir seu caminhar. É desafiar-se a continuar a viver.O chão ainda tremia sob os pés de Anarina, ou eram suas próprias pernas que bambeavam ante o quadro formado distante, ainda que ao alcance dos seus olhos. As ruas planas permitiam ver, a poucos quilômetros, a escola (ou o que tinha sobrado dela) mergulhada num mar de fumaça e ruínas. Uma cortina densa soprada ao ar como uma pesada nuvem negra fez a garota imaginar o pior.– Anda, garota! Entra no carro! – Gritou o Sr. Santos já em seu velho Opala ferrugem com uma listra preta que ia do capô até o para-choque traseiro. Sem hesitar a garota saltou para dentro e mal teve t
– Gritar com a autoridade sempre ajuda né, Pimentinha? – O tom de voz de Choco era sarcástico, mas desanimado. De cabeça baixa, aguardava a bronca que apenas antecederia sua tardia sentença mais severa.Os três garotos estavam sentados, lado a lado, em três cadeiras dispostas diante de uma grande mesa sobre a qual, virada para eles, uma placa de identificação portava logo abaixo do nome “Pretório de Lima”, o título “delegado”, conferindo a devida autoridade ao homem que os encarava.Pretórios de Lima era um pequeno homem caucasiano de meia idade, com uma calvície avançada cujos últimos fios sobreviventes estavam sempre molhados atravessando o topo da cabeça redonda de um lado ao outro. Um par de óculos grande e arredondado parecia se equilibrar na ponta do nariz achatado enquanto suas mãos concordemente pequenas agitav
O delegado Lima já estava retirando o telefone do gancho quando foi interrompido por Bárbara, sua bela assistente que tocou-lhe o ombro e disse algo em seu ouvido.– Ah! Peça-o para entrar! – Respondeu Pretórios, erguendo-se o quanto pôde na cadeira e fitando a porta, aberta pela mulher para permitir a entrada anunciada.Uma figura grande e imponente se avolumou, pondo-se a adentrar a sala como uma montanha a cruzar o caminho até a mesa do delegado. O homem afro descendente escondia um corpo robusto sob o terno escuro enquanto revelava, sob uma barba aparada, uma expressão rígida quase esculpida em sua face bruta. Caminhou a passos firmes e, assim que terminou seu trajeto, estendeu a mão para cumprimentar Pretórios.– Eu sou o agente Kron, nos falamos mais cedo. Vim estabelecer a jurisdição sobre a investigação da explosão do complexo educaci
Estava prestes a anoitecer quando, num esforço em conjunto, a equipe de busca conseguiu abrir caminho até o centro do complexo. Um bombeiro e um paramédico estavam prestes a entrar, sem saber o que esperar do local que havia se tornado um grande mistério. O que teria acontecido com o primeiro bombeiro a adentra? Que ameaças eles poderiam esperar? Uma série de dúvidas pairava enquanto um silêncio tácito e um ar de pesada tensão se formava ao que restava apenas uma leve barreira de terra a separar os homens do temeroso complexo à frente. Olharam-se, fizeram um sinal positivo e deram os últimos golpes na parede que cedeu, abrindo caminho e finalmente revelando o enorme salão relativamente preservado da explosão. Apesar do estado de alerta e da respiração ofegante, bem como das talhadeiras em punho prontas para qualquer ataque, o lugar parecia completamente calmo e vazio. Foi e
O antagonismo entre a luz e as trevas remonta a história humana. Por vezes a escuridão, rotulada como eterna vilã, fora rechaçada enquanto tateando pelas densas trevas, o homem buscava qualquer foco de luz para que repousasse em segurança. Mas existem formas reveladas pela luz que nos fazem almejar a ignorância da escuridão.Iluminada pela opaca luz noturna que adentrava a janela de seu quarto, Anarina acabara de ouvir de seu amigo a notícia de que alguém havia sido encontrado entre os escombros da escola. Antes que pudesse digerir aquela notícia, porém, percebeu a maçaneta da porta girar lentamente, fazendo o coração da garota saltar dentro do peito. Seus olhos passearam rapidamente pelo quarto, em busca de algo que pudesse protegê-la. Repousaram sobre uma ripa do armário jogada no canto, que rapidamente foi apanhada e posicionada entre suas mãos como um rebat
Choco olhou novamente com receio e encontrou seu pai dormindo, agora virado para o encosto do sofá, com a chave para o alto, enfiada em seu bolso. Com todo o cuidado, ajoelhado no carpete, o garoto pinçou o chaveiro com os dedos e puxou lentamente até que o objeto inteiro pudesse ser agarrado. Assim que se apoderou do chaveiro ergueu-se, caminhando na ponta dos pés até a porta do quarto escuro, que ficava no corredor bem de frente para a sala. Enfiou a chave com cuidado e girou o tambor, fazendo o quarto destrancar. Porém, antes mesmo de abrir a maçaneta, ouviu as fortes e ininterruptas batidas na porta da sala. Novamente o coração disparou e o sangue gelou, principalmente quando viu seu pai erguer-se do sofá e olhar para a porta, de costas para onde Choco estava. O garoto tinha então duas alternativas: entrar para o quarto escuro e certamente ser pego, ou correr para o próprio quarto, escapand
Do outro lado da pequena cidade, Anarina estava parada na calçada, em frente à bela casa de Barbara Delfim. A casa de dois andares era feita de madeira e, bem à frente, um lindo jardim florido adornava a vista. A garota abriu a portinhola e, atravessando o corredor de pedras margeado pela grama, subiu os três degraus até ficar bem de frente para a porta. Respirou fundo e bateu três vezes, até que ouviu-a ser destrancada e aberta. Bárbara a encarou cerrando os olhos, com uma expressão de desaprovação. A mulher na flor de seus quarenta anos ostentava uma boa forma física. Poucas rugas se evidenciavam no canto dos seus olhos castanhos e graúdos. Os cabelos longos de franjas compridas que quase ocultavam suas sobrancelhas oblíquas, eram negros e lisos. Fechou o roupão branco e fez um gesto para que a menina entrasse:– A senhorita me deixou preocupada! – Tentou for&c