O abismo sombrio desenha formas vislumbradas apenas pela nossa inquieta imaginação. Quando não podemos enxergar o caminho que tomamos, questionamos nosso próprio caminhar. Deixar-se ir ou parar? O cair é mais doloroso do que o impacto da queda. O tatear pelo escuro pode ser uma incursão fatal. E apenas quando é tarde demais, descobrimos que não enxergávamos simplesmente porque tínhamos medo demais para abrir os olhos.
O manto noturno se estendia pela cidade, revelando em partes o que a espaçada luz artificial tocava. Dentre os tantos mistérios ocultos pela calada da noite, um em especial era o foco principal daquelas três crianças sorrateiras. A madrugada acabara de começar a arrastar seus ponteiros tardios. As ruas vazias eram um cenário fotográfico de marasmo e silêncio. E do outro lado da rua, um quarteirão inteiro sustentava uma pilha intermin
O carro parou em uma rua, beirando a calçada em frente a uma velha casa que destoava dos outros belos imóveis da vizinhança. A porta se abriu, permitindo que o agente Kron saísse do veículo e caminhasse rumo à porta daquela residência que permanecia apagada e silenciosa. Olhou pela janela cuja pequena brecha entre as cortinas nada permitia enxergar do seu interior escuro. Ele caminhou para a porta da frente e após subir os três degraus da pequena varanda. Deu três batidas fortes à porta. Um instante permitiu que ouvisse apenas o silêncio em resposta. A ação seguinte não foi tão comedida. Kron deu um passo para trás, sacou sua arma e com um único golpe arrombou a porta, entrando a seguir com sua arma em punho. Olhou atentamente o interior que permanecia em silêncio. Após se dar conta de que os cômodos estavam vazios, prosseguiu até o quar
Por que a consciência de um desastroso curso imutável não torna seu vislumbrar menos doloroso? O músculo da face que se contrai ao observar a queda de um objeto quando, mesmo reconhecendo sua impotência, o braço se estica involuntário na risível tentativa de evitá-lo. Por que tentar evitar o inevitável? Por que perseguir o inalcançável apenas para sentir a resultante dor da sensação de impotência? Pois o que é a morte se não a mera existência da vida? Uma folha seca a pender de uma árvore cuja queda é prevista. Eis o motivo do sofrimento sem sentido e a resposta para a lágrima que insiste em cair: o gosto amargo do veneno que o faz agonizar na proporção de seus grandes goles, se chama “esperança”.A madrugada já se fazia extensa em sua meia vida, embalando o sono da cidade em sua grande mai
A manhã do dia seguinte não trouxe qualquer novidade fora do cotidiano. Seus cidadãos seguiram suas rotinas dentre os mais diversos afazeres, cada qual com sua atividade e assim o dia foi seguindo seu compasso até que o brilho intenso do sol foi esmorecendo e cedendo lugar à alaranjada luz celeste, prenúncio da noite que se aproximava. E, ao menos para nossos três pequenos aventureiros, aquela noite guardava perigosas e desbravadoras expectativas.A noite havia acabado de começar quando os três se encontraram e, montados em suas bicicletas, partiram em direção ao circo. Desta vez não seria uma entrada clandestina pelas “portas dos fundos”. Graças aos ingressos obtidos por Filipe, tinham um passaporte para a estreia do Circo. E o espetáculo estava prestes a começar.Após alguns minutos de pedalada cruzando as ruas que levavam até o vale os gar
No interior escuro da lona armada as três crianças olhavam abismadas tentando entender o que viam.– Não é possível – mencionou Anarina.– O que eles fizeram? – Questionou Choco.– O que quer que tenha sido – respondeu Filipe, e concluiu: - puseram longe dos nossos olhos.Anarina caminhou adiante e olhou ao redor, contemplando um incompreensível vazio. Não fazia sentido, uma lona armada exatamente como da última vez que estiveram lá, desta vez absolutamente vazia. Não havia tubos, objetos estranhos, seres bizarros. Nada do que eles estavam esperando. Havia sido um tiro no escuro e eles erraram o alvo.Após analisar todo o interior, estavam saindo quando Anarina observou uma movimentação estranho no exterior. Fez um sinal indicando silêncio e apontou para fora pela fresta da abertura. Os três se espremeram para ob
O som dos golpes e dos ossos se partindo puderam ser ouvido da entrada do beco. Totalmente dominado, Arthur mal se mantinha consciente. O monstro o ergueu, cobrindo todo o seu rosto com sua mão, e grunhiu pronto para encerrar a dor do garoto:– Agoraaaaa que cumpriu ssssua parte teráááá sua rápidaaaaa morteeeeee.O corpo do garoto já pendia entregue, como um boneco sem vida erguido pela enorme mão do monstro. Ele estava prestes a terminar sua tarefa quando um estampido seco ecoou pelo beco. Um tiro que atingiu em cheio o braço do monstro, fazendo-o soltar o garoto em reflexo. A criatura se virou, encarando o agente Kron que adentrava o beco com a arma em punho.– Vocêêêê! Sabe que eles deveeem morreeeeer. Somosss os culpadoooossss... É culpa nossaaaaaaa! – Reverberou a criatura.Ainda avançando o agente disparou outras três vezes at
Anarina recostou a cabeça junto ao peito de sua irmã, Bia. Os olhinhos atentos e os lábios selados, num silêncio absoluto. O ouvido colado permitiu que a menina ouvisse um som único que a encantou. Ela sentiu um calor preencher seu próprio peito enquanto um “Tum-dum” ecoava repetidamente. Aquela era a primeira vez que a pequena menina ouvia o som de um coração. Um som que continuou a ecoar durante anos em sua memória. Que criou um laço entre as duas irmãs. Mas isso foi há muitos anos. E permaneceu por anos esquecido, até que sua traiçoeira e impiedosa memória decidira desenterrar aquele nostálgico som enterrado no fundo obscuro do seu subconsciente. E inadvertidamente despejou lembranças de uma doce e alegre infância no pior momento possível.***A sala do necrotério ficava em anexo à delegacia. Um lugar frio, escu
Era quase madrugada quando o Rolls-Royce do governador Juscelino Valadares parou diante do Hospital Dr. Quaresma. Uma pequena multidão, contida por um cerco de policiais, ameaçava invadir o hospital em busca de respostas ante a destruição que deixou mortos e feridos. A interdição policial que impedia o acesso dos parentes das vítimas tornava a situação extremamente tensa, bastando uma fagulha para eclodir um confronto civil.Este foi o cenário que levou o delegado Pretórios a solicitar uma reunião de emergência com o governador e o chefe de imprensa do jornal de Ouro Preto. Eles sabiam que se esperasse até a manhã seguinte os efeitos das especulações e dos noticiários descontrolados seriam catastróficos. A breve reunião havia acabado de acontecer, onde a história fora planejada para, em seguida, o governador dirigir-se imediatamente
Após dirigirem por alguns minutos, Kron e Santos chegaram à Redação do Jornal de Ouro Fundo, uma antiga mansão reestruturada para comportar a pequena equipe e seu equipamento de produção. Tão logo entraram e cruzaram a sala da recepção, se dirigiram até um enorme salão onde alguns funcionários movimentavam os maquinários. Assim que percebeu a entrada de Santos, o editor chefe do jornal, Sr. Roberto Mendonça, dirigiu-se ao seu encontro.Enquanto andava pela sala parecia gingar com certa dificuldade, dada a sua obesidade. A camiseta de um xadrez em tons de azul estava amarrotada, como de costume. A calça jeans surrada era constantemente puxada para cima, pela ausência do cinto que ele sempre dizia ter esquecido.– Santos! Onde estão as fotos, homem? O jornal precisa ir pra prensa! – Retirou os óculos, permitindo que caísse