Dois

Não corre pela casa Marina.  Estrela pede correndo atrás de mim. Ela acabou de me dar o banho muito divertido. Ela sempre faz isso, com patinhos de borracha dentro da banheira, muita espuma perfumada e ainda conta a minha estorinha preferida, imitando as vozes dos personagens. Eu adoro isso! Mas logo que o banho acabou, já quis pôr o meu pijama e disse, "hora de ir para cama mocinha". Só que eu ainda não estou com sono. Eu quero brincar um pouco mais.  ― Marina em nome de Deus! ― Ela grita e eu solto um boa gargalhada infantil. Mas a risada gostosa, acaba justamente quando eu chego no final da escadaria e esbarro bem forte em um corpo muito, muito alto e caio de bunda no chão. Isso doeu muito, mas se quer tive tempo de chorar, por que fui erguida com firmeza pelos meus braços e um par de olhos verdes furiosos me encararam imediatamente.

― O que essa menina faz fora cama a uma hora dessas, Ester? ― Minha mãe esbravejou com a mulher que vinha bem atrás de mim.

― Desculpe senhora, eu já estava... 

― Tire esse monstrinho barulhento de perto de mim. Estou com dor de cabeça! ― Fazia dias que não os via em casa, eles estavam viajando e se que ouvi uma palavra de carinho, nem um presentinho e também nem ouviram o que a babá tinha a dizer. Então ela me soltou de qualquer jeito e me deu as costas como se eu fosse apenas um objeto que se pode largar em qualquer canto da casa. Logo senti as mãos suaves da Estrela abraçando o meu corpo pequeno. Eu deitei a minha cabeça em seu ombro e fiquei olhando a minha mãe se aproximar do meu pai com um sorriso feliz nos lábios, enquanto ela recebia uma taça de vinho tinto das mãos dele e logo depois eles sorriram e se beijaram.

  ― Por que eles não me amam, Estrela? 

― Perguntei desanimada, ainda olhando o casal feliz na sala.

 ― Não diga bobagens Ma, seus pais a amam muito. Eles só não sabem demostrar esse sentimento pra você. Quem sabe quando você crescer um pouco mais.  Suspiro assim que entramos no corredor e eu os perco de vista...

   Acordo puta da vida com o alarme gritando ao pé do meu ouvido e solto um palavrão, me sentando no meio da minha cama, esfregando o meu rosto para despertar melhor. Eis o lado ruim de deixar a vida de patricinha para trás. Agora eu preciso acordar cedo, fazer o meu próprio café da manhã e não tenho mais a Estrela para separar as minhas roupas, como sempre fizera para mim. O lado bom disso tudo, é que eu não preciso ver a arrogância nos olhos dos meus pais assim que entrava na sala para tomar o café da manhã. Lembrar deles parece um fascínio meu pela dor. Eu não sei porque ainda sonho com eles. Prometi a mim mesma que não traria lembrança alguma comigo, mas aí eles me perseguem nos meus sonhos.                       Olhar para o meu apartamento pequeno, vazio, calado e quieto é a pior parte dessa mudança. Eu gosto do barulho, da agitação, da alegria. Isso me faz esquecer quem eu sou de verdade, uma casca triste e vazia. Então quando eu chego a minha sala, ligo o som alto e um rock bem agitado começa a tocar e bem no meio da sala mesmo eu pego uma pequena estátua, faço-a de microfone e começo a cantar mais alto do que o aparelho de som, jogando os cabelo feito uma louca e fingindo tocar uma guitarra e é exatamente assim que vou para a minha cozinha, fazer os ovos com bacon. A música agitada me faz sorri outra vez e enquanto danço, ponho uma frigideira em cima do fogão, ligo o fogo, ponho uma porção de manteiga nela e espero que derreta um pouco, para em fim colocar algumas tirinhas de bacon para dourar. Diante do fogão, dou  uma viradinha e jogo o meu quadril para o lado, depois para o outro, quebro dois ovos e giro novamente, jogando os braços para cima e... Porra!!! Algum vizinho chato bateu a minha porta. Mas não é uma batinha leve e completamente matinal, do tipo " vizinha, pode me dá um pouquinho de açúcar?" Há não, é mais aquele tipo de batida, " abre a porra da porta ou eu mesmo vou derrubar". Tipo isso aí. Calmamente eu baixo o fogo, limpo as minhas mãos em um pano de prato que estava largado em cima do balcão e vou até a porta. Eu a abro e encontro um bonitão alto, com boa parte do corpo tatuado, de cabelos cheios e desgrenhados, usando um alargadores nas orelhas e apenas um short largo de elástico na cintura. Ele faz uma cara de menino mal, se inclina em minha direção, ficando ainda mais gigante e eu encaro os olhos cor de mel.

  ―  Pois não vizinho.  ― Falo descaradamente.

  ―  Pode desligar a porra do som? Eu estou tentando dormir, caralho! ― Pede com uma voz baixa, porém grossa e quase apavorante. Arqueio as minhas sobrancelhas de uma forma bem petulante mesmo e pergunto.

  ― Dormir uma hora dessas?  ― Faço não com a cabeça e um som estralado com a língua pra ele.  ― Não dormiu bem a noite?  ― Um sorriso debochado se insinua em meus lábios.

  ―  Eu andei bem ocupado garota. Agora, vai desligar o som ou quer que eu o desligue pra você? ― A pergunta ameaçadora me fez ficar nas pontas dos meus pés para poder encará-lo de frente e no ato eu juntei as sobrancelhas mostrando-lhe o quanto estava irritada e berrei pra ele.

  ― É, eu vi o quanto estava ocupado na noite passada, comendo a síndica do prédio. Aliás, deu pra ouvir cada uivo seu e cada miado dela e adivinha, você me roubou metade de uma  noite do meu sono. Então não vai se importar se eu roubar metade da sua manhã, não é?

Minha nossa! O homem parece que vai soltar fumaça pelo nariz! Ele da um passo ameaçador em minha direção, mas eu cruzo os braços e não saio do meu lugar.

    ― Se você não desligar essa porra agora, quem vai desligar sou eu!  ― Ele grita enraivecido.

Calmamente eu desço do meu salto, digo das pontas dos meus pés e aponto um dedo em riste pra ele como aviso. No instante seguinte, eu saio com passos largos da porta e vou até a minha cozinha, para atrás do meu balcão e pego a minha única arma... Um taco de basebol.

"Aprendam uma coisa comigo meninas. Se você mora sozinha, longe das pessoas que mais ama nesse mundo como eu,  precisa saber se defender, ou o mundo inteiro vai te engolir."

Voltei para a sala batendo de leve com o taco na palma da minha mão e encarei o grandão em pé no meio cômodo.

  ― Se tocar no botão do meu som,  te garanto que acerto a sua cabeça com uma tacada só.  ―  O homem me olha com espanto.

  ― Ficou maluca?  ― Ele indaga olhando o pedaço de madeira roliço, envernizado na minha mão. Faço um não com a cabeça para ele.

  ―  Eu não fiquei maluca. Eu sou maluca. Sou doida, pirada, digna de internação. ― Enquanto esbravejo as últimas palavras, parto para cima homenzarrão e ele corre para a saída do apartamento, batendo a porta com força e eu gargalho alto, caindo no sofá e só quando respiro fundo sinto o cheiro no ar.  

    ― Merda, meus ovos não!

   As mudanças da minha vida não pararam ali naquela cozinha minúscula. Eu já não tenho mais aquela mordomia de ter um carro luxuoso me esperando na porta da minha casa, para me levar aonde eu quisesse. Adeus vida de menina rica! Olá vida de garota sensata e responsável! Essa sou eu agora.

Depois de comer apenas um pão fresquinho com manteiga e uma boa e fumegante xícara de café  ― sim, porque o ovo não prestou pra nada além do meu balde de lixo, eu entrei  no meu Chevrolet anos oitenta que comprei assim que cheguei aqui, para me locomover. A final, o meu apartamento não fica perto do meu trabalho. E falando em trabalho, olho a simples, porém linda fachada do meu pet shop assim que paro o meu carro no acostamento e me deslumbro com algo que eu mesma fiz. Não os meus pais e não a Estrela. Fui eu, sozinha que escolhi as cores e o formato de cada objeto colocado lá dentro e acredite, isso para mim é uma satisfação imensa e antes de sair do meu carro, preparo o meu espírito, ponho a minha máscara de garota feliz e extrovertida, abro o melhor sorriso de Marina e segurando a minha bolsa pessoal e uma minha bolsa de sexy shop, eu saio do carro e vou para dentro da minha loja.

Com eu havia dito antes, eu tenho apenas quatro funcionários; uma recepcionista, a  Luana que eu tomei a liberdade de chamá-la de Lua,  dois higienizadores;  o Ricardo  ― que eu chamo carinhosamente de Rick e a Débora, nossa querida Debby e agora o doutorzinho, Heitor Cavanage. Sorrio amplamente por dentro e por fora também. Ainda não sei que apelido darei pra ele, por enquanto ficarei com o doutorzinho mesmo. E falando nele, o homem é uma tentação. Uma mistura de homem das cavernas com uma inocência que me deixa piradinha, que dá aquele frisson no corpo todo, sabe? E que me inquieta de um jeito inexplicável.

  ― Bom dia Marina! ― É isso aí. Aqui ninguém me chama de Maah. Não ainda, é muito cedo para dizer qual deles será a minha melhor amiga ou o meu melhor amigo. Lembrando que ninguém, nunca, jamais tomará o lugar da Kell nessa categoria.                                                          Pensar nela me deixa um pouco nostálgica, então durante todo o enredo dessa história evitarei falar em Kelly Ferraço Lambertini, combinado?

  ― Bom dia dona Lua! ― Falo com um sorriso gigante, libidinoso e cheio de insinuações, louca para saber sobre o desfecho do novo brinquedinho dela, na cama com o seu marido. Ela viu as insinuações em meu olhar com certeza, porque a mulher empalideceu e baixou os olhos, mordendo os lábios imediatamente. No mesmo instante, eu soltei uma risada gostosa e adentrei a sala de higienização, encontrando a dupla dinâmica arrumando os seus acessórios estrategicamente sobre uma mesa a parte e do outro lado da sala, havia um cãozinho poodle que parecia apavorado. Fui até ele e o acariciei, dando alguns beijinhos em seus pelos brancos caracolados.

  ― Olá dupla dinâmica!  ― Falei  para os meus funcionários com a mesma alegria contagiante de sempre, mas sem olhá-los.

  ― Olá Marina!  ― Eles respondem juntos.

  ― Ei bichinho, tá com medo, hum? Fica não. Olha só, você vai ficar um arraso de lindo, todo cheirosinho e ainda vai ganhar uma gravatinha sexy. O que achou, hã?  ― Pergunto afagando os seus pelos de maneira desordenada e o bichinho abana o seu rabinho, demostrando a sua felicidade. Isso me faz abrir um sorriso espontâneo. ― Gostou né? Então põe um sorriso lindo nesse focinho fino, que eu prometo, que a água vai está uma delícia, não é Rick? 

 ― Uma delícia!  ― Meu funcionário repete as minhas palavras e eu me afasto soltando um beijo no ar para os dois e saio da sala em seguida, indo direto para o consultório de vocês sabem quem. Encontro a sala quase vazia, se não fossem pelos móveis brancos de design moderno e algumas prateleiras com alguns livros, pequenos quadros na parede e um arranjo no canto da sala. Bufo desanimada e saio, fechando a porta e encaro a Lua atrás do balcão de recepção.

  ― O doutorzinho ainda não chegou?  ― Ela faz um não com a cabeça e eu faço um sim com a minha.  ― Tá bom. ― Dou alguns passos para a porta ao lado do consultório e sem olhar para trás passo uma ordem.

    ― Quando chegar, diga que vá até a minha sala.

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