Durante milésimos, eu senti a “pasta” no meu rosto, mas depois tive a sensação de que estava caindo e de que não pararia tão cedo. Meu estômago estava embrulhado e estiquei os braços à procura de algo em que me segurar. A sensação era parecida de estar numa montanha-russa. Eu odiava montanhas-russas. Quando decidi abrir a boca e gritar por ajuda, a queda cessou e bati em algo.
Fiquei um tempo de olhos fechados, acreditando ser um truque daquela maluca. “Logo, logo essa dor de cabeça terrível vai sumir e aparecerei no meio da escuridão da sala de aula e zombaria de todos ali. Também vou esfregar na cara da Caroline que o mundo da seriezinha dela não existe!”, pensei.
Porém, a minha cabeça só latejava cada vez mais forte e, quando abri os olhos, uma luz branca avançou para os meus olhos e eles doeram como se distendessem. Uma buzina de carro rompeu os meus tímpanos. Abaixei minha cabeça e apertei os olhos para poupá-los, esticando uma das mãos numa tentativa de sinalizar para impedir o atropelamento. Os pneus deram um grito fino contra o asfalto e desviaram.
Aos poucos (bem pouco, deve-se ressaltar), eu fui me levantando. Mesmo com a visão turva, vi que o carro estava parado a poucos metros. “Minha cabeça vai explodir, tenho certeza”, pensei. Dois vultos saíram do carro e vieram na minha direção. Recuei alguns passos e, quando minha visão parecia melhorar, tudo ficou escuro de vez e me choquei contra o asfalto.
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Acordei com a cabeça doendo ainda, mas nem tanto quanto da última vez em que eu tive condições para sentir dor. Deparei-me com um abajur ao meu lado. Já não estava mais jogada na rua, pois a superfície era macia debaixo de mim. Olhando para cima, mais uma vez, uma luz forte feriu meus olhos. Tapei meu rosto com as mãos e, pouco depois disso, a luz se apagou. Eu me sentei imediatamente em resposta, averiguando onde estava. O local era um minúsculo quarto, com outra cama de solteiro, uma mesa de cabeceira de madeira arranhada, papel de parede descascado. E dois rapazes.
Eles me olhavam curiosos e eu fiquei desconfortável em pensar que podiam estar me vendo desacordada, vulnerável. Encolhi-me contra mim mesma.
— Quem é você? — um deles perguntou.
— Como foi parar na rua?
— Por que está vestida assim?
— É alguma prostituta?
— E esses arranhões?
Isso só me confundiu mais. Prostituta? À procura de uma explicação para isso, percebi que estava vestida com aquela saia. Que droga! Eu vestida assim e eles me encarando? Me espremi contra a cabeceira e os observei, o rosto rabugento do cara loiro, a expressão de dúvida no outro, que era muito alto e com cabelos compridos cor de chocolate. "Não! Não pode ser!", pensei. Eles eram idênticos aos protagonistas da tal série de TV. “Será que eles fazem cosplays?”.
— O que é você? — o loiro perguntou, se aproximando da cama com uma arma erguida. O metal cintilando em ameaça para a minha cabeça fez meu sangue ferver.
— Ei! Calma aí! — eu disse, apressando-me em levantar as mãos e esticá-las para me proteger. — Eu não fiz nada!
— Espera aí, Chris — O outro se aproximou dele e o afastou. — Pega leve. Ela pode ser só uma garota.
— E desde quando garotas caem do céu? — Chris perguntou.
Aquilo não podia ser real! Não dava para acreditar que eram eles! "Não, pode até ser, mas estão no meu sonho. É claro! Quando o infeliz me empurrou para o espelho, eu bati a cabeça e desmaiei. Eles são só o meu sonho! Sabia que aquela professora maluca estava errada! Certo, agora eu só preciso acordar". Contudo, belisquei meu braço e... apenas dor.
— Que merda! — eu disse e me levantei da cama para usar todos os truques que conhecia para sair de um sonho. Mergulhei minha cabeça debaixo da torneira do banheiro para a água molhar meu rosto, arranquei um fio de cabelo meu, deitei de cabeça para baixo até que o sangue enchesse minha cabeça...
— Viu, Henry? Ela é maluca! — o loiro disse, ainda com sua arma reluzente na mão, e isso me deu uma grande ideia.
— Atira em mim — pedi. Afinal, essa parecia ser a melhor forma de acordar!
— É um prazer — Ele mirou o pequeno buraco negro e redondo na minha cabeça.
— Não, não! — Henry se pôs na frente dele para impedi-lo. — Você não vai atirar nela!
— Mas foi ela que pediu!
Henry revirou os olhos para ele em resposta e então me olhou.
— Quem é você? — ele disse.
— Uma garota que tropeçou e bateu a cabeça e agora está sonhando que está numa série de TV! — respondi.
— Série de TV? — Chris repetiu.
— É! Vocês são personagens idiotas que participam de uma série idiota que fala sobre monstros idiotas!
— Olha, a única idiota aqui é você! E também é insana! O que é que você quer dizer com sonho?
— Ah, então, você não sabe o que é um sonho e eu sou a idiota?
Chris fez a mesma cara que um animal faria se fosse dar um rosnado raivoso. Ele mexeu no cão da arma, aquele pequeno pedaço de metal que era puxado e fazia um som ameaçador. "Fala sério! Eu é que tenho que ficar com raiva! Estou num pesadelo do qual não consigo acordar!".
— Como se chama? — Henry perguntou. Ele parecia ser o único que não estava tenso com a situação. Enquanto o rosto de Chris se franzia, o dele era relaxado e paciente.
— Julie — respondi, acreditando que isso bastava, mas eles me olharam como se pedissem mais. — Julie McCoy.
— Nunca ouvi falar... — Chris murmurou.
— Bem, por que não nos explica isso de sonho? — Henry disse.
— Olha, eu estava no colégio tendo aula de Religião com uma maluca e ela disse que podia abrir portas para outros universos. Eu não acreditava e ainda não acredito em droga nenhuma do que ela fala e falei isso na frente de todo mundo. Para provar que ela estava errada, eu disse para ela abrir um portal que levaria uma pessoa para uma série de TV. Quando ela o abriu, teve a ideia de me fazer pular nele. Então eu acordei no meio de uma estrada...
— Ou seja, o portal funcionou — Henry concluiu.
— Não! É claro que eu estou sonhando! Eu tropecei e devo ter batido a cabeça com força. Que, aliás, ainda está doendo — Eu massageei a testa.
— Você não quer chamar o Rufus? — Henry perguntou ao loiro.
— Quem é esse?
— Você deve saber quem é! Não somos uma série de TV, afinal? — Chris ironizou com um sorriso frio.
— Eu não vejo essa série! É ridícula!
— Então, não sabe quem somos? — Henry disse.
— Vocês são os Heisenberg, não são? Os dois irmãos que viajam por aí procurando contos de fadas.
Os dois se entreolharam e Henry deu de ombros para o irmão.
— Comparado ao que já ouvimos, acho que isso é um elogio — Henry disse. — Ligue para o Rufus.
Esperei até que Chris saísse do quarto para me sentar na cama e respirar fundo. Peguei de cima da mesa de cabeceira um jornal. O cabeçalho me informava que eu continuava em Rockford, mas a data era diferente.
Eu troquei de roupa para enfrentar o frio com as minhas roupas compridas e, quando saí do banheiro, Chris acabava de voltar.
— E aí? — perguntei, cruzando os braços. — Falou com o tal cara?
Ele abriu a boca para responder, mas então franziu a testa para mim de um jeito indignado.
— O que você acha que nós somos? — ele perguntou.
— Nada de mais — eu respondi, dando de ombros. — Só dois caras que vão me ajudar a acordar de tudo isso. Sendo assim, não preciso saber muita coisa.
— Quer saber? — Chris disse, marchando para mais perto de mim. — Você está sendo muito mal-educada com a gente. Ninguém aqui disse que te ajudaria a voltar! Só vamos deixar algumas coisas claras aqui: Não oferecemos ajuda, não somos uma série de TV e você não está sonhando.
— Ok! Então, vou arranjar um jeito de acordar sozinha! — Agarrei a alça da minha mochila e fui rapidamente até a saída. — Obrigada por nada! — Sem olhá-los, bati a porta atrás de mim.
Do lado de fora do quarto, uma sensação ruim me atormentou. Estava de noite. Mas a minha aula era de manhã. O que quer que tivesse acontecido naquela sala de aula, tinha me deixado atordoada demais para conseguir pensar com clareza. Nada daquilo fazia sentido. Eu fiquei desacordada por tempo demais ao bater a cabeça? O jornal no quarto dos idiotas era falso e eu continuava no mesmo dia em que acordei?
Havia uma corda de dúvidas espremendo meu cérebro e me dando dor de cabeça. Tive que dar uma risada nervosa diante do cenário na minha frente. Os imbecis tinham me arrastado para um hotel de beira de estrada. Os quartos e a recepção se apertavam num único bloco de concreto cinza, iluminado de maneira nojenta por uma luz amarela. O estacionamento era um deserto. O único carro ali era o famoso Jeep castanho que os irmãos dirigiam. O cheiro que me cercava era de poeira. Em algum quarto, dois hóspedes faziam bastante barulho batendo a cama contra a parede.
Tudo parecia real. No entanto, se fosse, aqueles caras eram bem esquisitos por levarem cosplays de uma série de TV tão a sério. O melhor a se fazer parecia ir para o mais longe possível deles.
Pedi informações ao recepcionista do hotel sobre como chegar ao endereço da minha casa a partir daquele fim de mundo. Ele tentou me convencer a passar a noite ali, sorrindo para mim com dentes amarelos e aproximando-se tanto do meu rosto que tive ânsia, com o cheiro de morte que vinha de sua boca. Era uma ideia péssima caminhar pela estrada àquela hora da noite, mas nenhuma das pessoas naquele lugar me transmitia segurança, então preferi arriscar. “Com sorte, vou estar deitada na minha querida cama, rindo de Tristen, em pouco tempo, e vou tirar sarro da cara da Caroline pelo resto das nossas vidas”.
Eu permiti me divertir com a minha imaginação enquanto caminhava. Conhecia Rockford como a palma da minha mão e sabia que estava na entrada da cidade, a alguns quilômetros de casa. Pela lógica, depois que eu virasse a esquina da sorveteria falida, que tinha um grande letreiro amarronzado em formato de casquinha de sorvete, lá estaria a minha casa. Eu devia encontrar as grades baixas do portão de pintura verde descascada, as flores murchas que minha mãe tentava plantar no jardim.
Mas me enganei. Onde estava o jardim? Onde estava a minha casa?! Tudo que havia na minha frente era um terreno baldio, metros quadrados de mato verde e alto. Era um verdadeiro matagal que me mandava ir embora, porque aquele não era o meu lugar.
Por um instante, considerei ter andado pelo caminho errado, mas era besteira pensar nisso. Tirando a minha casa, toda a rua continuava a mesma.
Eu me sentei na calçada para acalmar meu coração idiota, que começava a bater rápido demais para o meu gosto. “Tristen fodeu de vez com a minha cabeça”. Era possível que aquela mulher fosse tão covarde, ao ponto de me enlouquecer, só por eu ter discutido com ela na frente de todo mundo?
Tive uma ideia de como encontrar respostas para essas perguntas. No entanto, quando me levantei, as folhas do matagal atrás de mim rasparam umas nas outras. Eu me virei, na esperança de ver Caroline ou meus pais zombando da minha cara. Mas minhas esperanças foram destroçadas quando uma coisa fria e molenga segurou minhas pernas e me puxou para dentro da aspereza do mato.
Eu daria qualquer coisa para trocar de lugar com a Caroline. Aquela pirralha provavelmente estava há horas em frente à sua penteadeira, tirando a maquiagem que usava no dia e passando cremes para dormir. Era uma grande idiotice, mas era melhor do que a minha situação. Meus pulsos estavam esticados para o alto e amarrados um ao outro há tanto tempo, que eu tentava mover meus dedos e não tinha certeza se estavam ali. O sangue já tinha descido demais. Olhando para cima, havia apenas breu. O único feixe de luz que entrava sequer me alcançava. Eu já estava tonta de fúria com o incessante ploc, ploc da água pingando em algum lugar daquela mina. Pelos meus pés, passava um par de trilhos, abandonados há muito tempo. A coisa que me sequestrara tinha me deixado sozinha ali há horas.
— Será que dá para pular a parte de tentar me matar? — perguntei, indicando a lâmina afiada. Minha inquietação deve ter ficado evidente no meu rosto, porque Henry se apressou a explicar o motivo da faca. Os dois suspeitavam que eu não fosse humana. Havia alguns tipos de criaturas sobrenaturais com motivos para entrar na vida deles de modo suspeito, como eu fiz, e eles queriam verificar que eu não era um deles. Para isso, precisavam me benzer com água benta e me cortar com a faca de prata idiota. Demônios queimavam quando entravam em contato com a água santa. Outras criaturas, como lobisomens e a tal Shtriga que Caroline tinha mencionado antes, eram vulneráveis ao metal sagrado, a prata. Henry me entregou um copo com água e sal, para garantir também que eu não estava possuída por nenhum fantasma. Enquanto eu apertava o algodão no meu braço por cima do corte da
A casa de Rufus nos obrigou a subir uma enorme colina para alcançá-la. Tinha chovido em Hudson e a entrada da fazenda que o homem administrava era uma grande poça de lama. Chris não quis submeter seu Jeep idiota à sujeira. Eu, por outro lado, estava muito disposta a submeter sua cara a socos. Rufus era dono de cabelos e barba grisalhos que alcançavam apenas a altura do meu ombro. Os olhos dele se espremiam para me analisar, como se eu fosse muito audaciosa por olhá-lo de volta, tendo que abaixar a cabeça e lembrá-lo que era muito miúdo. — Você a adotaram ou algo parecido? — ele perguntou com o rosto franzido em descrença. — Eu tentei ficar no orfanato, mas... — Cruzei os braços, emburrando a cara. Rufus arregalou os olhos em assombro para os rapazes e Henry fez um si
O Hospício St. Bonnevenue não era nem um pouco como o do meu mundo. Ele também era bem sinistro, mas o que eu conhecia não estava parcialmente chamuscado, nem meio desabado. A recepção estava demolida, pichações manchavam as paredes, pedaços de concreto empoeiravam o chão com a cor branca.Por sorte, era de dia. Caso contrário, eu me borraria de medo naquele lugar. Uma corrente de ar frio mantinha os pelos dos meus braços todos de pé. Não me confortava que o Jeep estivesse parado do lado de fora, reafirmando-me que eu não estava sozinha ali dentro. Eu caminhava pelos corredores desertos, à procura dos dois, esperando pegá-los no flagra. Fazendo o quê? Eu não tinha certeza. Eu me sentia sozinha.Após a recepção,
Como era quase o fim da tarde, eles decidiram que Chris poderia finalizar o caso dos espíritos sozinho e Henry ficaria na fazenda, ajudando Rufus e eu a entendermos melhor viagens para outras dimensões. Eu peguei o livro que escondera na gaveta e me esforcei para lê-lo, ouvindo minha playlist nos fones de ouvido, encolhida no sofá. Rufus ficava atrás de sua mesa, Henry usava uma mesa de estudos perto da janela. Quando Chris voltou, se juntou ao irmão, virando goles de cerveja enquanto lia. Passamos aproximadamente cinco dias assim. Contei a eles sobre minha conversa com Caroline, sobre Tristen e ela ser uma Shtriga. Contei também que roubara dinheiro de Henry, quando ele começou a achar que o culpado por isso era Chris. O caçula reforçou que, caso eu precisasse de algo, bastava pedir a eles, então ele me acompanhou para fazer compras de todo o básico que ficara no meu mundo: roupas, produtos de higiene, u
Henry e eu estávamos saindo do estúdio de tatuagem. Na minha clavícula, havia um desenho de cor negra num formato engraçado de sol, coberto por papel filme. Eu estava prestes a perguntar porque uma coisa daquelas me protegeria contra possessões demoníacas, mas ele estava numa ligação tensa com Chris no celular e me deu a seguinte notícia ao desligar:— Ela morreu. A filha dos LeBlanc que fez aniversário hoje morreu.— Mas Chris não destruiu o colar?! — perguntei.— É, mas ele reapareceu com a menina. Não era para isso ter acontecido…Henry ficou sombriamente pensativo enquanto entrava no carro roubado e me esperava entrar. Seus dedos esmagavam o volan
Em seguida, a água veio inundar minha garganta, adoçando todos os meus sentidos e me sufocando. Era como ser acertada no peito de novo e de novo por uma mão de aço. Quis agarrá-la e pará-la, mas a água vinha de dentro de mim e me distraía. Em meio às ondas doces que escorriam da minha boca, senti lábios tocarem os meus e consegui encontrar-me com o oxigênio.— Respire, Julie… — Henry disse. Por um segundo, a onda que senti foi de segurança, expulsando todas as minhas inquietações.Minha visão estava enegrecida, até que comecei a ver o céu e os olhos verdes de Henry preocupados acima de mim.— Oi… — eu grasnei. Minha garganta parecia ter sido lixada por horas.
A maneira como Henry precisou se entreolhar com Chris antes de me responder foi muito suspeita.— Não sei — ele disse.— Mentira — repliquei.— Eu juro que não sei, Julie. Olha, isso tem acontecido há alguns meses, mas eu não achei que teria qualquer coisa a ver com você, até ela entrar em contato com você na casa do Rufus. Por alguma razão, eu consigo sentir quando ela faz isso.— Então, ela provavelmente está tentando de novo agora mesmo, né?Eu não esperei pela resposta, peguei a bebida esquisita de ervas e me deitei para falar com a minha irmã. Eles tentaram dizer algo, mas não dei aten