Eu sequer sabia o que estava acontecendo comigo. Enquanto Maria Vitória adormecia em meus braços, percebi que havia mais do que desejo entre nós — havia um laço invisível e perigoso. Mas eu sabia: no dia seguinte, tudo aquilo precisaria chegar ao fim.Ela adormeceu apoiada em meu peito, o rosto sereno, e por um instante, eu quase me permiti esquecer do mundo. Mas então o telefone vibrou em algum canto do quarto. O silêncio era tão profundo que qualquer ruído parecia um grito.Ignorei as primeiras chamadas. As seguintes, insistentes, cortavam o ar e o pouco de paz que restava. Levantei devagar, encontrei o aparelho sobre a mesa. Hesitei antes de tocar a tela — se fosse Heitor, traria uma série de perguntas; qualquer outro nome seria apenas um detalhe.Mas o nome que apareceu em azul não era um detalhe. Era Marcelo.Além das chamadas, as mensagens começaram a chegar:"Você é minha.""Volta pra casa agora, ou vai se arrepender.""Vai me fazer sair por aí te procurando feito um cachorro?
Saí daquele quarto de hotel intrigada. Esperava que Alexandre desse um basta nos nossos encontros, mas aquele fim… foi mais do que um adeus. Foi um corte seco, profundo, deixado no ar como uma ferida exposta. Eu não sabia se ele se sentia envolvido o bastante pra me cobrar uma atitude, ou se aquela era só a maneira dele fugir — com a máscara da razão cobrindo o desejo que ainda queimava em nós.Cheguei ao meu prédio sem surpresas. O carro prata de Marcelo estava do outro lado da rua. Estacionado como sempre. Mas ele não estava à vista. E, curiosamente, aquilo não me causou medo. Era só mais um capítulo repetido do mesmo pesadelo.Desci do ônibus e caminhei devagar até a portaria. Mas antes que pudesse entrar, ele surgiu do nada, como uma sombra que sabe onde cortar.— Ora, finalmente! — Marcelo veio na minha direção, a voz alta, arrastada pela bebida. A blusa social azul aberta, o peito suado, o cabelo desgrenhado. — Resolveu aparecer, margarida!O cheiro de álcool era insuportável. E
Era mais uma dessas noites em que o silêncio falava mais do que qualquer frase bonita. O tipo de noite em que a cidade parece continuar viva do lado de fora, mas tudo aqui dentro se arrasta — como um corpo sem alma. Heitor estava largado na cadeira da varanda como um homem à beira do colapso. Gravatinha pendurada no bolso da calça, camisa cinza meio amarrotada, cara de quem não dormia bem fazia semanas.Servi dois copos de uísque e entreguei um a ele. Os olhos fundos, distantes. Aquela expressão de quem carrega algo entre os dentes e não sabe se cospe ou engole.— Ana Liz viajou? — perguntei, só pra quebrar o peso no ar.Ele assentiu devagar, sem nem olhar pra mim.— Pro interior. Disse que precisava de ar. Eu só deixei. Nem discuti.A voz saiu seca, sem a mínima defesa. Quase senti pena. Quase.— Tá nessa fase, é? — comentei, como quem não quer se envolver demais. Mas a verdade é que eu sabia exatamente o que ele estava sentindo. Talvez até demais.Heitor soltou um riso amargo. Desse
Em poucas semanas de aula, um feriadão se estendia pela cidade. Vi nele a oportunidade perfeita para visitar meu pai. Enquanto isso, Ana Liz não parava de me enviar mensagens dizendo que estava com saudade. Eu, por minha vez, queria fugir da tensão que havia marcado o início das aulas.— Peguei uma supervisora exigente — pensei, lembrando da mulher que parecia sentir prazer em competir com os estagiários — além de ter sido designada para um estágio no “Complexo do Alemão”, uma comunidade violenta que ninguém queria encarar.Decidi que quatro dias seriam tempo suficiente para ficar longe de tudo. Arrumei minha bagagem com pressa, sem dar nenhuma satisfação a Ana Liz. Queria surpreendê-la, mas, ao mesmo tempo, sentia-me acolhida e amada. Havia dentro de mim um desejo insaciável de saber sobre ele — meu pai —, mesmo sem poder perguntar diretamente, nem a ele, nem à minha madrasta, ainda que mal o visse.Entrei no ônibus, os pensamentos fervilhando, tentando disfarçar a incerteza. Durante
Eu me tornava o amigo perfeito que Heitor parecia desejar: noites em bares, festas, mulheres, companhias desconhecidas. Mas, no fundo, eu sabia exatamente o que buscava — recuperar anos de atraso, desejos reprimidos, a omissão disfarçada de racionalidade. E, naquela sexta-feira à noite, não era diferente.Terminei a última cirurgia exausto. O cansaço me consumia, mas mal finalizei as anotações no prontuário — medicamentos, orientações de repouso, agendamentos — quando Heitor surgiu na porta. Segurava o terno em uma das mãos e digitava freneticamente no celular com a outra. Eu estava longe dali, mentalmente esgotado, o corpo implorando por descanso. Começar a musculação tinha me deixado dolorido de um jeito que eu ainda não sabia lidar.Eu queria recusar mais uma noitada. Precisava. Mas, no fundo, sabia que não conseguiria escapar daquela rotina que, de algum modo perverso, me preenchia. Ainda assim, naquela noite, o esgotamento — físico, emocional — me fazia desejar algo diferente, me
Eu queria mais do que apenas sair. Mais do que ver novos rostos ou dançar até esquecer.Eu queria viver.Talvez até me reinventar por algumas horas.Mas as amizades na cidade onde nasci e cresci sempre foram limitadas.Não sabia se podia confiar em Ana Liz pra cuidar de mim naquela noite.Mas, até então, eu tinha conseguido cuidar de mim sozinha.E isso bastava.Fomos em direção aos quartos.Ana Liz abriu o guarda-roupa com empolgação, como se aquilo fosse um ritual secreto.Ela me mostrou vestidos que, sinceramente, mal cobriam algumas partes do corpo.Não era o que eu queria.Nunca foi meu desejo chamar atenção — só precisava existir em paz.Escolhi o mais discreto: um vestido preto coberto por paetês sutis, com decote em V entre os seios.Minha sandália preta de salto ainda servia.Fiz uma maquiagem leve, só o suficiente pra me sentir menos apagada no espelho.Quando saí do quarto, Ana Liz já estava pronta.Ela não usava apenas um vestido — usava uma armadura de brilho e provocaçã
Era como negar pra mim mesmo.Como fugir de algo que, no fundo, eu já sabia que estava ali.Em todas aquelas noites vazias, nas mulheres que eu tocava sem vontade, sem conexão — era ela que eu procurava.Maria Vitória.Estava sexy.Deliciosamente provocante naquela peça íntima preta, mínima, que mal cobria suas curvas.E por mais que eu fosse um cirurgião acostumado a corpos moldados à perfeição, nenhum deles me atraía como o dela.Natural.Instintivo.Brutalmente lindo.— Alexandre, por favor, pare — ela pediu, com a voz firme, ainda que a respiração denunciasse o efeito que eu causava.Acariciei o tecido fino, sentindo o calor da sua pele por baixo.Mas eu não teria coragem de prosseguir.Não sem seu consentimento.Não com ela me pedindo pra parar.— Te fiz... — pigarreei, com o nó na garganta me sufocando.O que eu estava fazendo?No quarto de Maria Vitória.Na casa de Heitor.Ela se afastou, fria.Olhar duro, braços cruzados.— Eu não te devo explicação alguma, Alexandre. E, aliás
Eu não sabia o porquê de Ana Liz ter dito ao meu pai que íamos a uma festa. Durante a tarde na piscina, meu corpo já implorava por cama, silêncio, talvez uma sopa quente e o aconchego de um edredom. Mas, para agradar minha madrasta, vesti o branco. Um vestido de tecido leve, costas nuas, que parecia feito para ser arrancado.Salto preto, acessórios dourados, maquiagem marcada. Passear pela cidade até parecia inofensivo, talvez um cinema, um balde de pipoca e pouca conversa. O que eu realmente não queria era lidar com os olhos de Alexandre. Não naquela noite. Não de novo. Ele era demais para mim.Mas pensar nele, molhado, encostado na borda da piscina, fez minha mão escolher o batom vermelho. Aquela cor tinha gosto de perigo. Ao sair do quarto, fui em direção ao de Ana Liz — ela ainda lutava com o delineado. De algum modo, eu sabia o que ela fazia: talvez tentar convencer o meu pai de que não estava disponível. Mas por quanto tempo esse papel ia durar?E eu… eu não fazia diferente com