O dia se tornara claro — alto demais. A luz atravessava as cortinas do quarto com uma insolência que eu não estava pronto para enfrentar. O sol, impassível em sua soberania, desafiava a escuridão da noite anterior, trazendo consigo o peso daquilo que tínhamos feito. Pisava sobre as sombras com uma crueza que me atingia como um golpe.Senti a dor primeiro — os hematomas ainda latejando, como se o meu corpo estivesse tentando me lembrar do que havia acontecido. Mas o que realmente me despertou não foi isso. Foi o vazio ao meu lado. A ausência dela, que preencheu o espaço do quarto de uma forma tão palpável que quase consegui tocá-la. E foi aí que a lembrança veio, arrastando comigo a intensidade da noite anterior.O rosto de Mavi, sob o meu. Os olhos dela semicerrados de prazer e de confusão. O corpo dela, arqueando-se contra o meu. Como se me pertencesse. Como se fosse só minha. Aquela noite, aquele momento, não tinham sido apenas um encontro. Não para mim. E, por mais que tentasse fug
Ainda esperava o desprezo. As palavras cortantes que ele pudesse disparar, me atravessando feito lâmina, completando de vez a minha ruína. O silêncio parecia prestes a explodir.Apoiada na porta recém-fechada, eu evitava encará-lo. Olhava a bancada da cozinha, o chão, qualquer coisa — menos ele. Alexandre. O homem que eu desejava com cada fibra do meu corpo, mas cuja presença me consumia de medo e contradição. Aquela paixão era um erro, uma loucura... mas era minha.E onde havíamos chegado já não existia limite algum.Ele se aproximou sem aviso. Senti sua mão tocar minha nuca, subir com precisão até se firmar em meu pescoço. Me obrigou a olhar. E quando encarei seus olhos castanhos, intensos, cravados nos meus, tudo pareceu calar.— Não poderia me dar esse direito de decidir?Engoli em seco. O nó na garganta era tão apertado quanto a mão que me segurava. Eu nem sabia se conseguiria falar. Seus olhos me despiam, sua presença me pressionava contra a porta. O calor do corpo dele no meu e
Após tê-la outra vez — depois de tudo o que dissemos que não faríamos — eu só queria calar a voz na minha cabeça que repetia um nome que não devia. Heitor.Sentei-me no colchão, ainda nu, recolhendo minhas roupas. Os músculos do corpo estavam cansados, mas satisfeitos. Ouvia os sons suaves dela se movimentando no banheiro. Vesti-me lentamente, sentindo dores em partes aleatórias do corpo, reflexos da confusão da noite anterior. A água cessou, e poucos minutos depois ela surgiu pela porta. Virei-me, deixando para trás a visão de outros prédios através da janela. Por um segundo, perdi o fôlego.Short jeans branco, folgado, quase escapando do quadril. Uma camiseta preta do Harry Potter, que parecia ainda mais escura sobre a pele úmida. O cabelo preso no alto da cabeça, com algumas mechas rebeldes caindo pelo pescoço. Havaianas brancas nos pés, como se nada nela gritasse perigo — e tudo nela gritava.Ela me viu observando-a, meus olhos fixos em cada curva, e soltou uma risada breve e tími
Entre lágrimas, dentro do abraço de Alexandre, eu adormeci. Não estava acostumada com estímulos — tampouco com emoções tão fortes dentro de mim. Nem saberia dizer exatamente quando desabei.Passei a mão pelo rosto, afastando os fios soltos. Olhei em volta e percebi que já era noite. A cama vazia me trouxe um medo súbito. Ele havia partido? Me abandonado?Sentei, fitando o vazio daquele quarto luxuoso. Mas o som das teclas sendo digitadas trouxe um alívio imediato. Meus olhos foram até ele, sentado na poltrona, ainda concentrado em seu trabalho. Alexandre digitava sem parar.O observei em silêncio. Tão calmo. Tão confiante. Havia uma força tranquila no seu jeito de existir. Uma culpa me invadiu.A vida dele era perfeita demais — ou parecia ser. E devia ter levado anos para construir. Quanto ele não precisou reprimir? Quantos desejos, sentimentos, desvios de rota ele não teve que engolir em seco para chegar onde está?Eu não podia simplesmente bagunçar tudo. A minha vida já era um caos,
Eu sequer sabia o que estava acontecendo comigo. Enquanto Maria Vitória adormecia em meus braços, percebi que havia mais do que desejo entre nós — havia um laço invisível e perigoso. Mas eu sabia: no dia seguinte, tudo aquilo precisaria chegar ao fim.Ela adormeceu apoiada em meu peito, o rosto sereno, e por um instante, eu quase me permiti esquecer do mundo. Mas então o telefone vibrou em algum canto do quarto. O silêncio era tão profundo que qualquer ruído parecia um grito.Ignorei as primeiras chamadas. As seguintes, insistentes, cortavam o ar e o pouco de paz que restava. Levantei devagar, encontrei o aparelho sobre a mesa. Hesitei antes de tocar a tela — se fosse Heitor, traria uma série de perguntas; qualquer outro nome seria apenas um detalhe.Mas o nome que apareceu em azul não era um detalhe. Era Marcelo.Além das chamadas, as mensagens começaram a chegar:"Você é minha.""Volta pra casa agora, ou vai se arrepender.""Vai me fazer sair por aí te procurando feito um cachorro?
Saí daquele quarto de hotel intrigada. Esperava que Alexandre desse um basta nos nossos encontros, mas aquele fim… foi mais do que um adeus. Foi um corte seco, profundo, deixado no ar como uma ferida exposta. Eu não sabia se ele se sentia envolvido o bastante pra me cobrar uma atitude, ou se aquela era só a maneira dele fugir — com a máscara da razão cobrindo o desejo que ainda queimava em nós.Cheguei ao meu prédio sem surpresas. O carro prata de Marcelo estava do outro lado da rua. Estacionado como sempre. Mas ele não estava à vista. E, curiosamente, aquilo não me causou medo. Era só mais um capítulo repetido do mesmo pesadelo.Desci do ônibus e caminhei devagar até a portaria. Mas antes que pudesse entrar, ele surgiu do nada, como uma sombra que sabe onde cortar.— Ora, finalmente! — Marcelo veio na minha direção, a voz alta, arrastada pela bebida. A blusa social azul aberta, o peito suado, o cabelo desgrenhado. — Resolveu aparecer, margarida!O cheiro de álcool era insuportável. E
Era mais uma dessas noites em que o silêncio falava mais do que qualquer frase bonita. O tipo de noite em que a cidade parece continuar viva do lado de fora, mas tudo aqui dentro se arrasta — como um corpo sem alma. Heitor estava largado na cadeira da varanda como um homem à beira do colapso. Gravatinha pendurada no bolso da calça, camisa cinza meio amarrotada, cara de quem não dormia bem fazia semanas.Servi dois copos de uísque e entreguei um a ele. Os olhos fundos, distantes. Aquela expressão de quem carrega algo entre os dentes e não sabe se cospe ou engole.— Ana Liz viajou? — perguntei, só pra quebrar o peso no ar.Ele assentiu devagar, sem nem olhar pra mim.— Pro interior. Disse que precisava de ar. Eu só deixei. Nem discuti.A voz saiu seca, sem a mínima defesa. Quase senti pena. Quase.— Tá nessa fase, é? — comentei, como quem não quer se envolver demais. Mas a verdade é que eu sabia exatamente o que ele estava sentindo. Talvez até demais.Heitor soltou um riso amargo. Desse
Em poucas semanas de aula, um feriadão se estendia pela cidade. Vi nele a oportunidade perfeita para visitar meu pai. Enquanto isso, Ana Liz não parava de me enviar mensagens dizendo que estava com saudade. Eu, por minha vez, queria fugir da tensão que havia marcado o início das aulas.— Peguei uma supervisora exigente — pensei, lembrando da mulher que parecia sentir prazer em competir com os estagiários — além de ter sido designada para um estágio no “Complexo do Alemão”, uma comunidade violenta que ninguém queria encarar.Decidi que quatro dias seriam tempo suficiente para ficar longe de tudo. Arrumei minha bagagem com pressa, sem dar nenhuma satisfação a Ana Liz. Queria surpreendê-la, mas, ao mesmo tempo, sentia-me acolhida e amada. Havia dentro de mim um desejo insaciável de saber sobre ele — meu pai —, mesmo sem poder perguntar diretamente, nem a ele, nem à minha madrasta, ainda que mal o visse.Entrei no ônibus, os pensamentos fervilhando, tentando disfarçar a incerteza. Durante