O que restou da festa foi um verdadeiro caos. Eu sequer consegui dormir. Enquanto as pessoas responsáveis pela limpeza tentavam colocar tudo em ordem na manhã de domingo, Ana Liz, Raquel e meu pai demoravam a acordar. Um a um, os convidados do quarto começaram a despertar, ainda sem graça, e encontravam a saída como podiam.Uma sentença pesada parecia cair sobre os meus ombros: eles não se importavam com nada. Essa era a verdade. E talvez todo o investimento e prestígio daquele hospital ruísse quando percebessem quem realmente é Heitor Montenegro.Raquel foi a primeira a acordar. Trancou-se no quarto de hóspedes por horas, sem dar sinal de vida. Depois, foi a vez de Ana Liz. Ela veio me procurar, curiosa, fazendo perguntas sobre a festa. Respondi poucas coisas, sem esconder como tudo terminou: com a polícia chegando, Alexandre tentando conter a situação.Mas perceber que, para ela, aquilo era normal... foi o fim.Passava das quinze horas quando Heitor finalmente acordou. Passou por mi
ão havia opções.Após ele sair, tomei coragem. Peguei minha mala do chão. O zíper ainda arranhava o piso de madeira, e aquilo soava como um grito — uma denúncia do que estava prestes a acontecer.Olhei em volta.Ana Liz e Raquel estavam na escada, me observando. As duas pareciam congeladas, incapazes de se mover. Eu sabia que nenhuma delas iria — e, honestamente, não poderiam fazer nada a meu respeito.— Vihh, por favor... — Ana Liz disse chorando.Mas eu neguei com a cabeça.— Foi bom te conhecer.Sai andando com minha mala, sabendo que ela ficaria surpresa. Eu conseguiria chegar à cidade facilmente; estava acostumada a andar, embora a distância fosse bem maior do que o habitual.Caminhei em direção à saída sem me importar. Eu tinha tentado, afinal. O que mais deveria fazer? Além de amante do padrasto... o que mais eu seria agora?Andei até o portão, notando que o caminho da casa até a saída do condomínio era longo. Mas aquilo não me abalava — no fundo, eu sabia que o percurso verdad
Me segurar enquanto ouvia Heitor afirmar que Maria Vitória havia se entregado ao padrasto foi angustiante.Fechei as mãos em punhos, tentando me controlar.No fim, me senti um covarde. Nada mais.Eram mais de trinta anos de amizade.Heitor é extremamente importante para mim.Eu não queria perdê-lo.Talvez fosse o único que, de fato, se importava comigo.O único que me salvava diariamente — indo até minha sala, falando besteiras, me fazendo rir, me aturando como sou.Naquele hospital, ele era meu alívio.Mas quando cheguei à rodoviária e vi Maria Vitória sentada num banco...O coração falhou.Ela estava ali — triste, o olhar perdido, encolhida em si mesma.E ainda assim, linda.Os olhos inchados, tentando conter os soluços.A mala jogada ao lado, como se tivesse abandonado a si mesma junto com aquela bagagem.Eu precisava vê-la com respeito.Talvez não como sobrinha — nunca fomos.Mas também não podia desejar a sua boca enquanto acariciava o seu queixo.Aquilo parecia ser o meu fim.Me
Dei passos em direção à sala do meu pai bastante temerosa. Ele ainda me olhava, talvez magoado.— Tem razão... Eu... eu não tenho direito algum de me meter na sua vida — falei entre falhas, a voz trêmula. Reconhecer o meu erro, e a necessidade dele manter a mesada, me dilacerava por dentro.— Você é minha filha — ele disse com a voz um pouco embargada. — É tudo que eu tenho, é tudo que eu posso ter. — Uma lágrima escorreu pelo seu rosto.Dei mais um passo, sem saber se me aproximava para consolá-lo ou para cair em prantos ali mesmo.— Eu... — tentei dizer algo, mas engasguei com as próprias palavras.Heitor passou a mão pelo rosto rapidamente, tentando disfarçar a lágrima, como se aquilo diminuísse sua autoridade — ou sua dor.— Eu não quero te perder — disse ele, baixando o olhar. — Você é teimosa, orgulhosa, difícil... igual a mim.Mordi o lábio, os olhos já ardendo. O peito pesava.— Me desculpa — sussurrei. — É que eu... eu não sei como fazer parte disso aqui.— Eu também não — el
O resto da tarde se tornou uma tragédia. Eu não conseguia assimilar, entender o que havia acontecido com Maria Clara — e o pior: a certeza de que tudo era culpa minha.A técnica veio até meu consultório me informar que o paciente já estava pronto. Assenti, ausente, e uma hora depois, a mesma informação me foi passada novamente. Eu me sentia em transe, colado à cadeira como se o tempo não existisse. O pior foi perceber que Heitor sequer cruzou aquela porta durante o dia. Adiei a cirurgia, me considerando incapaz de operar. Pela noite, quando cheguei em casa, Maria Clara já estava lá — com sua camisola de cetim branca, robe por cima, impecável como se nada houvesse acontecido. Tive medo de me aproximar. As lembranças da tarde me invadiam: ela me puxando pela calça, passando saliva na mão para se lubrificar... Me senti sujo, invadido por algo que, até ontem, era rotina.— O que houve? Está mesmo farto do Heitor? — Sua pergunta me tirou do torpor. Me virei, tentando entender.— O quê? Nã
A volta para a casa do meu pai era como um sonho. Um possível recomeço. Apesar de olhar para Ana Liz, que saltitava logo pela manhã, Rachel já tinha partido.Eu sentia pena dela, apesar de tudo. Queria contar-lhe a verdade — mesmo sem ter o direito de falar. Meu pai desceu, veio em minha direção e, quando menos esperei, me deu um beijo na testa. Depois foi até Ana Liz e fez o mesmo com ela. Eu o olhei, ainda receosa. Tudo era tão bom... E o medo de querer ficar, de me agarrar a ele, era real.— Bom dia, minhas princesas! — falou, alegre e animado.— Bom dia, meu amor — respondeu Ana Liz, enquanto ele se sentava à mesa.— Bom dia, pai!— Espero que tenha dormido bem, Maria Vitória. Meu amor, por favor, troque aquela bendita decoração do quarto da minha filha. Faça tudo que ela quiser, está bem?— Acho que não precisa, pai. Deixa o quarto como está — respondi, mas ele negou com a cabeça.— Tem muito rosa, muito frufru, ursinhos... Você não é alérgica?Assenti. Até sou, mas aquilo não es
Maria Vitória estava simplesmente encantadora. Sua pele brilhava, os olhos também, e embora eu soubesse que a razão de tudo aquilo fosse o seu pai, eu mal conseguia controlar a minha mente.A filha do meu melhor amigo era o meu desejo mais inapropriado.Ela se engasgou com a possibilidade de me acompanhar nas cirurgias, tossindo e bebendo água, lutando contra o medo — e, talvez, contra o temor de ficarmos a sós.Eu nunca ultrapassaria os meus limites. Na minha mente, eles deveriam estar bem estabelecidos.— Hoje não. É o primeiro dia dela aqui. Cedo demais para ver sangue. — Poderia ser traumatizante para Maria Vitória.Ela assentiu, embora eu desconfiasse que seus medos fossem outros. A fragilidade exposta me agradava. Eu não queria obscenidades — e ela também não parecia querer.Pelo menos, era isso que seu jeito transparecia.— Como preferir. Se você acha melhor protegê-la, o que não nos faltará são dias pela frente para explorar o hospital — disse Heitor, apreciando sua refeição.
Os dias no hospital pareciam fazer o tempo correr. E, por mais que a minha paixão fossem os estudos, a cada dia que passava, o meu desejo de esticar mais a minha estadia se instalava. Eu não queria voltar para o Rio. Não queria me sentir sozinha, abandonada pela minha mãe — que, mesmo sabendo que eu estava longe, tentando uma relação com o meu pai, não mandou sequer uma mensagem em dias. Tampouco queria lidar com Marcelo, cujas mensagens eu vinha ignorando, esperando o momento certo de mostrar tudo para a minha mãe. Tudo isso me fazia desejar tudo, menos retornar ao Rio de Janeiro.Mas o que me restava era pouco. Oito dias passam rápido.Na manhã de domingo, levantei cedo, odiando ter que deixar o meu quarto, a minha cama. Olhei em volta: o quarto branco e rosa, observando cada detalhe — a cômoda cor-de-rosa com o abajur em forma de guarda-chuva em cima, as pelúcias nas prateleiras, os coraçõezinhos nas paredes… e até mesmo o pequeno beliche ali.— "Nem parece que esse quarto era de c