O resto da tarde se tornou uma tragédia. Eu não conseguia assimilar, entender o que havia acontecido com Maria Clara — e o pior: a certeza de que tudo era culpa minha.A técnica veio até meu consultório me informar que o paciente já estava pronto. Assenti, ausente, e uma hora depois, a mesma informação me foi passada novamente. Eu me sentia em transe, colado à cadeira como se o tempo não existisse. O pior foi perceber que Heitor sequer cruzou aquela porta durante o dia. Adiei a cirurgia, me considerando incapaz de operar. Pela noite, quando cheguei em casa, Maria Clara já estava lá — com sua camisola de cetim branca, robe por cima, impecável como se nada houvesse acontecido. Tive medo de me aproximar. As lembranças da tarde me invadiam: ela me puxando pela calça, passando saliva na mão para se lubrificar... Me senti sujo, invadido por algo que, até ontem, era rotina.— O que houve? Está mesmo farto do Heitor? — Sua pergunta me tirou do torpor. Me virei, tentando entender.— O quê? Nã
A volta para a casa do meu pai era como um sonho. Um possível recomeço. Apesar de olhar para Ana Liz, que saltitava logo pela manhã, Rachel já tinha partido.Eu sentia pena dela, apesar de tudo. Queria contar-lhe a verdade — mesmo sem ter o direito de falar. Meu pai desceu, veio em minha direção e, quando menos esperei, me deu um beijo na testa. Depois foi até Ana Liz e fez o mesmo com ela. Eu o olhei, ainda receosa. Tudo era tão bom... E o medo de querer ficar, de me agarrar a ele, era real.— Bom dia, minhas princesas! — falou, alegre e animado.— Bom dia, meu amor — respondeu Ana Liz, enquanto ele se sentava à mesa.— Bom dia, pai!— Espero que tenha dormido bem, Maria Vitória. Meu amor, por favor, troque aquela bendita decoração do quarto da minha filha. Faça tudo que ela quiser, está bem?— Acho que não precisa, pai. Deixa o quarto como está — respondi, mas ele negou com a cabeça.— Tem muito rosa, muito frufru, ursinhos... Você não é alérgica?Assenti. Até sou, mas aquilo não es
Maria Vitória estava simplesmente encantadora. Sua pele brilhava, os olhos também, e embora eu soubesse que a razão de tudo aquilo fosse o seu pai, eu mal conseguia controlar a minha mente.A filha do meu melhor amigo era o meu desejo mais inapropriado.Ela se engasgou com a possibilidade de me acompanhar nas cirurgias, tossindo e bebendo água, lutando contra o medo — e, talvez, contra o temor de ficarmos a sós.Eu nunca ultrapassaria os meus limites. Na minha mente, eles deveriam estar bem estabelecidos.— Hoje não. É o primeiro dia dela aqui. Cedo demais para ver sangue. — Poderia ser traumatizante para Maria Vitória.Ela assentiu, embora eu desconfiasse que seus medos fossem outros. A fragilidade exposta me agradava. Eu não queria obscenidades — e ela também não parecia querer.Pelo menos, era isso que seu jeito transparecia.— Como preferir. Se você acha melhor protegê-la, o que não nos faltará são dias pela frente para explorar o hospital — disse Heitor, apreciando sua refeição.
Os dias no hospital pareciam fazer o tempo correr. E, por mais que a minha paixão fossem os estudos, a cada dia que passava, o meu desejo de esticar mais a minha estadia se instalava. Eu não queria voltar para o Rio. Não queria me sentir sozinha, abandonada pela minha mãe — que, mesmo sabendo que eu estava longe, tentando uma relação com o meu pai, não mandou sequer uma mensagem em dias. Tampouco queria lidar com Marcelo, cujas mensagens eu vinha ignorando, esperando o momento certo de mostrar tudo para a minha mãe. Tudo isso me fazia desejar tudo, menos retornar ao Rio de Janeiro.Mas o que me restava era pouco. Oito dias passam rápido.Na manhã de domingo, levantei cedo, odiando ter que deixar o meu quarto, a minha cama. Olhei em volta: o quarto branco e rosa, observando cada detalhe — a cômoda cor-de-rosa com o abajur em forma de guarda-chuva em cima, as pelúcias nas prateleiras, os coraçõezinhos nas paredes… e até mesmo o pequeno beliche ali.— "Nem parece que esse quarto era de c
Os dias simplesmente passavam.Decidi não corresponder. Não provocar. Não bagunçar ainda mais a vida de Maria Vitória. O que eu sentia... ficava guardado. Trancado em mim. Os meus desejos, os meus anseios, permaneciam no escuro, onde — supostamente — ninguém os alcançava.Mas era impossível ignorá-la.O sorriso dela era um convite silencioso. Um ímã. E por mais que eu virasse o rosto, meus olhos sempre voltavam. Como se pertencessem a ela. E o mais inquietante era perceber que ela também olhava. Às vezes de longe, no corredor, ou mesmo na área de alimentação, entre bandejas e vozes abafadas… os nossos olhares se encontravam.Mesmo que por segundos.Eu sabia que não era certo. Que não podia. E mesmo assim, o desejo por aqueles olhos — castanhos, curiosos, intensos — e por aqueles lábios só crescia. A cada dia. A cada mínima interação.No sábado, cheguei cedo ao hospital. Mais um dia comum, pensei. Mas havia algo no ar. As conversas nos corredores carregavam um certo tom de despedida. O
As perguntas começaram de forma tímida, mas logo os alunos se encorajaram. Questões técnicas, dilemas éticos, curiosidades sobre a rotina médica — respondi a todas com a tranquilidade adquirida pelos anos. Eu estava quase relaxando, quase... até ouvir a voz dela.— Professora Fátima? — veio do meio do auditório, uma voz firme, educada, de timbre baixo, mas perfeitamente audível. Uma voz que eu reconheceria mesmo em meio ao caos de uma emergência. — Posso fazer uma pergunta antes da próxima rodada?Meus olhos a procuraram até encontrá-la. Sentada no meio da fileira central, vestia um modelo branco rodado, com detalhes azuis. O cabelo preso em um coque alto, brincos discretos. Os olhos, no entanto, brilhavam com algo que não era apenas curiosidade. Era provocação contida. Um desafio.Fátima assentiu, sorrindo com entusiasmo. — Claro, querida. Pode sim.Maria Vitória se levantou com calma, ajeitando o vestido antes de continuar. Os demais alunos se viraram ligeiramente para encará-la. Ha
Eu não queria grudar em Alexandre, tampouco demonstrar que havia qualquer aproximação entre nós. Também... isso de pouco valeria.Peguei todas as falas desde o início e, embora sozinha — já que Isis não compareceu, e tampouco Thiago —, pude apreciar cada segundo da palestra. As experiências de Alexandre... ele é admirável. E não apenas como médico, mas como ser humano.Meu pai parece ser o homem mais privilegiado do mundo por tê-lo como melhor amigo.Andei em direção ao carro de Alexandre com o coração acelerado. Ele parecia diferente. Talvez fosse por não estar em seu habitat.— Deveria ter me dito que estuda numa federal — ele comentou, assim que saímos do campus.— E qual a diferença?— Não sei. Acredito que haja alguma diferença no currículo quando se cursa numa federal.Eu não me sentia confortável. E por mais que tentasse segurar o meu desejo de olhá-lo, isso parecia estar muito além do que eu podia resistir.— Acredita mesmo? Não vejo diferença.Ele sorriu. E eu admiro... admir
Só o alarme do carro ainda soava, abafado agora, como se sentisse vergonha também.A polícia chegou rápido demais. As luzes girando, os uniformes, as perguntas... tudo foi tão rápido que mal tive tempo de respirar. Eu sequer saberia como explicar aquilo, nem como me desculpar com Alexandre. Ele foi quem falou com o policial, provavelmente entendendo que eu estava submersa em vergonha — e que qualquer palavra minha naquele estado seria falha, trêmula ou, pior, comprometedora.Mas o que me corroía por dentro era a ideia de que aquilo pudesse chegar até minha mãe. Como eu poderia explicar? Como justificar que Marcelo, o homem com quem ela dividia a vida, se tornara esse... alguém? Alguém que me feria, me puxava, me tratava como propriedade. Tudo isso poderia prejudicá-la — e ao bebê também. Os danos já eram grandes demais.Só de olhar para Marcelo, eu sentia o estômago embrulhar.— Você vai ficar bem? — ouvi a voz baixa de Alexandre.Seu toque foi leve, como se não quisesse me assustar —