"Era escuridão. Mas eu sentia."O mundo era quente e frio ao mesmo tempo. Cheiros fortes — terra, sangue, fumaça. Sons cortavam o ar como lâminas: gritos, rosnados, trovões. Tudo era barulho demais. Tudo era muito.Meus olhos mal enxergavam, mas a luz piscava e doía. Algo brilhava no alto, uma esfera vermelha no céu. Era assustadora, mas também hipnotizante. Eu chorava. Meus pulmões pequenos tremiam de tanto esforço, e ainda assim, algo em mim resistia.Havia braços em volta de mim. Um toque trêmulo, apertado, mas reconfortante. Pele quente, o coração batendo rápido demais. Um cheiro doce, familiar, como se aquela pessoa me pertencesse mesmo que eu não soubesse por quê. Um sentimento profundo — segurança. Amor puro. Dor também.Essa pessoa falava. A voz era suave, mas cheia de lágrimas. Cada palavra parecia embalada com uma promessa. Eu não entendia, mas minha alma ouvia.Luzes dançavam ao nosso redor. Elas vibravam em meu corpo. Eu sentia meu peito quente, como se algo antigo estives
Depois de um dia surpreendentemente tranquilo na escola, eu estava de volta à mansão. As vozes da minha nova rotina ecoavam baixas pelos corredores, e por um breve instante me permiti acreditar que as coisas talvez estivessem se encaixando. Talvez, por fim, alguma estabilidade estivesse começando a surgir.Mas aquele pensamento durou pouco.A governanta Lucille me avisou que Richard queria falar comigo no escritório. Um arrepio atravessou minha espinha. A formalidade daquilo, o jeito como foi dito, como se fosse algo sério. Me tirou da calmaria.O escritório dele era sóbrio, cheio de livros antigos, móveis de madeira escura e cheiro de couro envelhecido. Richard estava encostado na escrivaninha, olhando pela janela quando entrei. Só se virou quando fechei a porta atrás de mim.— Kayla — disse com a voz baixa, quase hesitante. — Sente-se, por favor.Obedeci. Esperei em silêncio, sentindo meu coração acelerar devagar.— Queria conversar com você sobre a sua origem — ele começou, cruzand
P.D.V de KaidenA casa estava mais silenciosa do que o normal quando cheguei. Um silêncio espesso carregado. Como se algo no ar estivesse esperando para acontecer.Mal fechei a porta atrás de mim, Gustav, nosso mordomo, apareceu no corredor com o semblante tenso.— Seu pai pediu pra você ir até o escritório assim que chegasse.Assenti, engolindo o nó que começava a se formar no estômago. O corredor até o escritório parecia mais longo do que nunca. Cada passo ressoava pesado, como se meu corpo já soubesse que algo importante estava prestes a acontecer — mesmo que minha mente tentasse negar.Bati na porta uma vez.— Entre — disse a voz grave do meu pai.Abri. Kayla já estava lá dentro.Meu peito apertou só de vê-la. Sentada na poltrona ao lado da mesa, os olhos arregalados, como se lutasse para entender algo grande demais. Richard estava de pé, braços cruzados, rosto mais sério do que o habitual. Quase sombrio.— Senta, filho — ele disse, apontando para a cadeira vazia à minha frente.F
Chegada de Kayla ao Orfanato St. Joseph’s Haven for ChildrenA neblina pairava baixa naquela manhã fria de outono, envolvendo em silêncio os arredores do St. Joseph’s Haven for Children, um orfanato católico situado nos arredores de uma pequena cidade americana. Os portões de ferro se abriram com um rangido suave, dando passagem ao carro preto do serviço social que avançava lentamente pela alameda coberta de folhas secas.Nos braços da assistente social, uma bebê recém nascida, observava o mundo com olhos azuis límpidos, grandes e silenciosos como um lago em pleno inverno. Seu cabelo loiro, puxado para um tom quase cobre, caía em mechas desalinhadas sobre a testa, contrastando com a palidez impecável de sua pele — branca como porcelana. A única coisa que apertava contra o corpo com força era um ursinho de pelúcia e em seu pescoço um colar fino em ouro, em sua roupa ainda continham marcas de sangue.Na escadaria principal, Irmã Margaret — de hábito azul-escuro e olhar maternal — aguard
Quando Kayla completou quinze anos, o pátio interno do St. Jude se encheu de luzes douradas e flores brancas, cuidadosamente organizadas pelas freiras e pelas colegas de classe. Era uma celebração simples, mas feita com amor. As irmãs haviam pedido doações e preparado tudo em segredo. Quando ela entrou no salão improvisado, de vestido azul claro e os cabelos presos num coque solto com pequenas pérolas, todos ficaram em silêncio por um instante.Ela estava deslumbrante — não só por sua beleza única, mas pela força silenciosa que irradiava. Como uma rainha selvagem em seu momento de glória.Houve música, risos, danças tímidas. E no fim da noite, enquanto Kayla observava a lua cheia no jardim do colégio, Ethan, um colega de turma e amigo próximo, se aproximou com as mãos trêmulas.— Eu… preciso te dizer uma coisa — disse ele, desviando o olhar por um segundo. — Eu te amo, Kayla. Desde o primeiro dia em que você chegou. Você me inspira. Me desafia. Me faz querer ser alguém melhor, e quand
Na manhã seguinte, Kayla desceu as escadas sentindo-se deslocada, como se ainda estivesse dentro de um sonho estranho. A casa era grande demais, silenciosa demais — e cada detalhe parecia saído de uma revista de luxo. Mas era real. A nova vida que acabara de começar.Ao atravessar o arco da sala de jantar, seus olhos encontraram a mesa cuidadosamente posta: sucos, frutas frescas, croissants ainda quentes. E à mesa, os três a aguardavam. O homem e a mulher que haviam dito ser seus pais… e o garoto que mal dissera uma palavra na noite anterior.A mulher de cabelos loiros cor de cobre se levantou com suavidade e sorriu, caminhando até ela.— Bom dia, querida. Sei que ontem foi muita coisa para você e que nem tivemos tempo de nos apresentar corretamente — disse com uma voz suave, porém firme. — Meu nome é Eleanor Prescott. E eu sou sua mãe.O homem ao lado colocou o guardanapo sobre o colo e levantou-se também, vindo em sua direção com passos contidos.— E eu sou Richard Prescott, seu pai
P.D.V de Terceira pessoa — Kaiden, querido — disse Stella Sullivan, pousando uma das mãos no braço dele como se fosse algo rotineiro. Seus olhos então se voltaram para Kayla com um ar inquisidor. — Veio buscar mais uma admiradora? Kaiden suspirou, retirando delicadamente a mão dela do seu braço. — Stella, essa é a Kayla. Minha irmã. — Irmã? — Stella piscou, tentando disfarçar o choque. — Nunca mencionou nada disso... — Longa história — ele respondeu com naturalidade. Stella encarou Kayla, como quem avalia uma adversária. — Hm. Veio visitar ou vai mesmo estudar aqui? — Estou conhecendo o lugar — Kayla respondeu com calma, mantendo o olhar firme. — Pode ser que eu comece em breve. — Ah, espero que sim. — Stella disse com um sorriso que não alcançou os olhos. — Vai descobrir rápido que essa escola tem seus... padrões. Kayla sustentou o olhar, tranquila. — Não se preocupe. Me adapto fácil. Kaiden não conteve um sorriso e interrompeu antes que a conversa desandasse. — Stella, a
P.D.V de Kayla Prescott Nunca pensei que aquele frio na barriga que senti ao acordar pudesse durar tanto tempo. Desde o momento em que abri os olhos, ainda antes do sol nascer, eu sabia que esse dia seria diferente. Me olhei no espelho com calma — e confesso que nem reconheci completamente o reflexo. Era estranho pensar que aquela garota, arrumada no uniforme impecável da St. Joseph High School, agora carregava o sobrenome Prescott. Um nome que, até poucos dias atrás, eu nunca tinha ouvido na vida.Desci as escadas da mansão ainda tentando colocar ordem nos meus pensamentos. Richard me aguardava com uma xícara de café e um “bom dia” gentil. Kaiden, claro, já me esperava no carro com seu jeito meio sarcástico e descomplicado. Ele me tranquilizou mais com um olhar cúmplice do que com palavras.Assim que atravessei os portões da St. Joseph, senti os olhos sobre mim. O sussurro de vozes, os olhares curiosos e julgadores — era impossível ignorar. Fingi costume. Mantive a postura ereta, pa