3 - A saqueadora de cavernas

Abigail ofegava. Ao seu lado, Beni a olhava com a mesma descrença que o afligia sempre que ela voltava para buscá-lo, ainda que ao longo de todos esses anos sempre retornasse.

– Eu não acredito que você voltou! – Beni sibilou, o peito arfando.

– Cala a boca e fica abaixado! – Ela sibilou de volta.

Os dois estavam escondidos em uma fenda da altura e largura aproximada à de um homem, com os ouvidos apurados, esperando o miliciano se aproximar. Essa era uma das muitas cavernas que compunham a passagem subterrânea entre as cidades de Migdala e Neemya: um complexo de túneis escuros e úmidos, ora iluminados pelas tochas posicionadas nas passagens principais, ora tendo como única fonte de claridade os fungos luminescentes que cresciam aos montes nas beiradas dos córregos subterrâneos e nas paredes que ocultavam lençóis freáticos.

No passado, as cavernas serviam tanto à imponente Migdala quanto à paupérrima Neemya, que disputavam os espaços de coleta com alguma rivalidade. Entre pequenos conflitos de divisas e algumas confusões menores, as duas cidades dividiam o uso desde que todos respeitassem os acordos.

Cada cidade dispunha de muitos quilômetros caverna adentro, e por longos anos, Neemya se serviu dos túneis muito mais que sua vizinha mais abastada. A situação seguiu estável até que estourasse a maior guerra civil da história recente de Agnum: A Rebelião dos Profetas. Por razões que a maioria dos agnumianos recentes desconheciam, as ordens dos Profetas, Redentores e Arautos se rebelaram contra Amihud, que se defendeu atrás das ordens dos Égides, Armígeros e Canais. O conflito foi rápido e tão confuso que a maioria das tropas envolvidas mal chegou a entender o que estava acontecendo. Para o povo comum, era uma disputa entre militares, e só.

O problema, para Neemya, foi que uma importante batalha do conflito aconteceu em Tsione, a mais próxima cidade importante do reino. Temendo serem atacados, os habitantes de Neemya deixaram as forças rebeldes passarem sem resistência pela cidade. Quando o conflito terminou, os rebeldes foram vencidos. E como forma de retaliação por se recusarem a impedir ou dificultar o caminho dos revoltosos, o regente decidiu que as cavernas pertenceriam exclusivamente à Migdala, sua vizinha abastada. Desde então, quase ninguém em Neemya se atrevia a coletar uma pedra que fosse nos túneis, sob pena de açoite e prisão.

Quase ninguém. 

Esse era o caso dos dois adolescentes escondidos. Cada um carregava consigo uma algibeira cheia de ervas e fungos escolhidos a dedo, ilegalmente, em diversos trechos dos quilômetros de cavernas. O suor nas mãos, os corações palpitantes e a consciência de que estavam fazendo algo errado eram suprimidos pela pergunta que gritava mais intensa em suas cabeças: sem isto, do que iriam sobreviver?

A pergunta gritava particularmente alto na mente de Abigail enquanto ela e Beni estavam espremidos dentro da fenda na rocha. A mesma pergunta que ela fez quando sua mãe a havia contado que a indenização pela morte de seu pai havia se esgotado. Que a Casa das Viúvas seria fechada.

A Casa das Viúvas, um dos poucos lugares notáveis na cidade decadente, era uma estalagem que a mãe de Abigail havia comprado meses depois que a indenização pela morte em combate do marido havia chegado da capital, seis anos antes. Ela usou os recursos para construir uma sociedade com as viúvas e órfãos da região, acolhendo-os. Em troca, eles deveriam tentar encontrar alguma coisa com que pudesse ajudar a manter a casa. Assim, todos se auxiliariam mutuamente.

Mas infelizmente, o projeto se tornou insustentável, porque a quantidade de dinheiro que entrava era muito inferior à que saía. As reservas ainda duraram alguns anos, mas quando Abigail, aos nove, ouviu que a casa poderia ser fechada, decidiu que faria alguma coisa. Um dos meninos órfãos amparados pela casa, Beni, teve a mesma ideia. Seus pensamentos convergiram em um único propósito. E era criminoso.

As cavernas.

Seus alforjes de couro estavam cheios de ervas e cogumelos muito específicos que só cresciam nessas cavernas. Alguns poderiam ser vendidos a um bom preço, com o comprador certo. Outros eram ingredientes para soluções medicinais extremamente efetivas. Nem mesmo um grama do que havia sido coletado era dispensável, apesar de que, se fossem capturados, perderiam tudo do mesmo jeito.

– Pega a minha sacola. – Sussurrou Abigail. – Amarra ela bem forte no peito.

– Abigail, de novo não... – Beni já ia protestar, mas teve a boca tampada pela mão da amiga.

– Ele está vindo. – Ela sussurrou. – Vai logo!

Beni pegou o alforje de Abigail e o amarrou junto ao seu no peito, para não prejudicar a corrida. Abigail estava de costas para ele, de frente para a entrada da fenda, esperando o momento certo.

Isso já acontecera muitas vezes desde que Abigail e Beni começaram a sair juntos para fazer coleta ilegal nas cavernas, três anos atrás. Beni era maroto, rápido e safo, mas tinha o péssimo hábito de se perder dentro dos túneis, mesmo passando pelo mesmo lugar diversas vezes. Abigail era bem menos veloz que Beni, e com menos fôlego, mas depois de tanto explorar cavernas havia desenvolvido um excelente raciocínio labiríntico. Assim, quando uma situação perigosa surgia, eles costumavam se dividir: Beni, mais rápido, pegava os suprimentos de ambos e corria pelo caminho mais retilíneo possível até o lado de fora. Abigail, mas lenta, corria na direção oposta, mais para dentro caverna – a ideia, que sempre funcionava, era que o miliciano tentaria perseguir a presa mais fácil, de forma que ela era sempre o alvo prioritário.

Só que Abigail conhecia bem os túneis, e mirrada como era, havia dezenas de passagens e atalhos grandes o suficiente para uma menininha, mas impossíveis para um homem adulto com uma armadura. Assim, a estratégia consistia em chamar a atenção do maior número de milicianos possível, dar a eles a impressão de que iam encurralá- la mais para o centro do complexo de túneis, e depois escapar por algum atalho conhecido, dando a Beni tempo suficiente para sair da caverna por onde entraram.

Tiveram de recorrer a esse plano cerca de dez vezes no ano passado. Em uma dessas situações, Abigail fora capturada. Desagradável, para dizer o mínimo. A lei carcerária do reino era baseada na gravidade do crime e nas razões que levavam o infrator a cometê-lo. Roubo era punido com prisão ou com castigo físico, à escolha do infrator. A sorte de Abigail era que na época nenhum dos executores estava considerando seriamente a possibilidade de açoitar uma menina de onze anos, especialmente uma que parecia tão dócil e delicada. Em segundo lugar, coletar na caverna era roubo, mas passear por ela não, e como as ervas haviam sido levadas por Beni, não havia nenhuma evidência física para usar como medida do delito. Assim, depois de ficar encarcerada por algumas horas, o executor estapeou-lhe duas vezes o rosto, a título de correção, e ela foi escoltada até em casa.

Chegar em casa sob a posse da guarda de Migdala não era só vergonhoso: era perigoso. Havia muito as pessoas da cidade estavam insatisfeitas com a situação das cavernas – e dada a pequenez da cidade, era do conhecimento geral que Abigail e Beni se arriscavam para coletar fungos e ervas nos túneis. Quando trouxeram Abigail, acorrentada pelos pulsos e tornozelos, suja de fuligem da prisão, e com a metade do rosto inchada e roxa devido ao cumprimento da pena, houve um burburinho geral que por pouco não levou a uma revolta. Se a mãe de Abigail não houvesse recebido os milicianos dentro de casa e ouvido as ameaças deles à sós, talvez alguém ficasse tentado a atacar um dos guardas. E se um fizesse, era provável que mais pessoas se juntassem. Se elas atacassem os milicianos, Migdala com certeza iria retaliar e começar uma confusão generalizada. No fim, a chance da prisão de Abigail acabar em tragédia era enorme. Por isso ambas ouviram cabisbaixas as palavras dos soldados: “Ela foi tratada como uma criança porque ainda não tem doze anos, e porque é a primeira vez que a pegamos. Se isso voltar a acontecer, ela será punida como um reincidente, ou seja, como um adulto. Não construímos a prisão e o tronco para encarcerar ou chicotear crianças. Mas faremos valer a lei, se for necessário. Não deixe sua filha solta por aí pelos túneis. Cuide dela direito, e não precisaremos voltar aqui.”

Abigail não saberia dizer se o que fizera suas entranhas ferverem era a humilhação de ser escoltada para casa, depois de ter ficado horas em uma cela imunda e ter apanhado no rosto, ou se era a acusação infundada de que sua mãe não cuidava dela direito.

Depois daquele dia, ela e Beni decidiram que se um ficasse para trás, o outro não deveria voltar para buscá-lo. Na prática, essa regra favoreceria Abigail – porque Beni era o único que se perdia nos túneis. Talvez sabendo disso, ela sempre voltava quando ele precisava.

– Lembre-se, – Ela começou. – Eu vou correr na frente. Conte até três e corra na direção oposta. Não estamos nem um quilômetro dentro da caverna. Você não vai se perder.

E antes que Beni pudesse impedir, ela saiu.

Era o mesmo e conhecido jogo. Olhar para fora e ver onde estava o homem. Correr até a intercessão mais próxima. Rastejar para dentro de um túnel estreito e depois pegar o caminho de volta. Nada complicado.

Assim que saiu, identificou o miliciano. Era um homem alto e forte, com certeza grande demais para passar pela maioria das brechas rochosas cerca de trinta metros mais à frente. Estava sem a armadura, talvez porque assim ficasse mais fácil capturar fugitivos. Como o esperado, ele correu em sua direção, e mesmo não a alcançando imediatamente, parecia claro que isso logo aconteceria, porque era mais rápido que a média, talvez melhor treinado em capturas.

A distância entre os dois diminuiu rapidamente, e quando Abigail se arriscou a olhar para trás, viu, para seu alívio, que Beni conseguiu sair sem chamar a atenção do guarda, disparando na direção da entrada e, para seu desespero, que os dedos do perseguidor estavam a menos de um antebraço de distância de seus cabelos – uma cascata dourada que lhe descia até a altura da cintura, condensada em uma grossa trança às costas, que ela amarrava na parte de trás do cinto para dificultar que alguém puxasse.

Mas não dessa vez. Ela já estava vendo a parte esponjosa da parede rochosa, cheia de pequenos túneis pelos quais ela poderia rastejar, quando uma dor lancinante, como se dezenas de agulhas se enfiassem em seu couro cabeludo, puxou sua cabeça para trás. O homem a havia agarrado pelos cabelos. A violência da captura foi tal que ela caiu sentada na pedra dura, com a trança presa nas mãos do homem. Ele enrolou a mão pesada mais firmemente em seus cabelos e agarrou-lhe a parte de trás da cabeça. E depois, como se ela não passasse de uma boneca de trapos, a ergueu.

Cada poro da cabeça de Abigail gritava em protesto, enquanto ela balançava pendurada patética e dolorosamente, acima do chão. Só pôde pensar que aquele miliciano não era como os demais. Era mais rápido, e decididamente mais agressivo. Nem no dia em que foi presa alguém a erguera do chão pelos cabelos. O pânico começou a se instalar. Ouviu-o rir enquanto parecia se divertir com sua agonia. Por fim, ele falou:

– Quem diria que o rato que andava corroendo as entranhas das cavernas era uma menina magrelinha. Pare de se mexer, se não quiser perder três ou quatro desses lindos dentinhos de leite. 

Ouvir a voz e o sotaque arrastado dele fez Abigail compreender uma realidade terrível: ele não era um miliciano! A lei exigia que um miliciano lesse seus direitos, a prendesse de forma adequada e a levasse sem danos e em segurança até a cidade. Mas este a estava ameaçando. Ela parou de se debater. E sem nenhum aviso, sentiu a pancada violenta esmagar seu diafragma. Um soco na boca do estômago.

Foi como se todo o ar em seus pulmões tentasse forçar passagem esôfago acima, mas alguma coisa líquida e cáustica estivesse impedindo o caminho. A dor nos dois joelhos a avisou que havia sido largada no chão, e o seu corpo mirrado, não suportando bem um golpe tão violento, a impediu dar um único passo em qualquer direção. Tudo o que pôde fazer foi vomitar, tossindo, o pouco que restara de um almoço de horas atrás. Seu corpo tremia e doía todo, enquanto ela o ouvia dizer:

– Para você entender. Não tente fugir ou será pior.

Enquanto ele estava mexendo em uma bolsa às costas, Abigail pôde comprovar o que havia suspeitado: na pressa de correr, ela não notara que seu perseguidor não usava as cores e nem o símbolo de Migdala. Mas se ele não era da guarda, o que era então?

Um sequestrador. Talvez, um daqueles homens que raptavam meninas ao redor das estradas e as vendiam para bordéis ilegais. Prostituição era crime no reino todo, mas em praticamente todas as cidades sempre tinha quem conhecesse uma ou duas “casas de má reputação”. Quando a mãe de Abigail descobriu que era ela (e não apenas Beni) que se aventurava pelas cavernas, tentou assombrá-la com histórias de meninas que eram levadas e vendidas para esses lugares. Abigail nunca havia levado as histórias a sério até que um dia um forasteiro tentou vender uma moça de dezesseis anos extremamente debilitada para a Casa das Viúvas, confundindo-a com um bordel.

A imagem da moça agora ocupava toda a mente desesperada de Abigail. A pele pálida e doentia, cheia de hematomas e cicatrizes. As unhas quebradiças, os cabelos malcuidados e desgrenhados, a tremedeira nas mãos, e o pior de tudo: o olhar vazio, sem vida ou esperança, dos olhos quase mortos envoltos por olheiras profundas.

Tentou, em um último momento de desespero, se lançar para frente e rastejar até um dos túneis menores, mas antes que atingisse meio metro de fuga, foi agarrada pelos cabelos novamente e forçada a se sentar com rudeza. Mais um doloroso soco atrás da cabeça a fez ficar quieta, enquanto o sequestrador amarava suas mãos às costas. Não conseguiu mais conter as lágrimas que transbordavam, quentes e espessas, destilando o horror e a humilhação de ser totalmente indefesa.

Nada mudou pelos próximos minutos, até ouvirem passos de aproximação. O homem não se mexeu, mas pareceu preocupado. Antes, porém, que pudesse fazer qualquer coisa, duas figuras saíram da escuridão alojada entre a lamparina mais próxima e a subsequente, mais adiante.

Um deles era um homem de estatura mediana, pele escura, usando um traje que o vestia do pescoço aos tornozelos. Ao seu lado, um velho coberto com um manto simples, também azul. O manto cobria todo o seu corpo como faria um lençol. Apenas a cabeça podia ser vista fora dele. A princípio pareceram não notá-los, e o sequestrador já se preparava para recolher Abigail e sair dali quando o velho começou a falar, se dirigindo a ele:

– Mas o que está acontecendo aqui?

O captor não esperou que o velho perguntasse duas vezes. Tirou da bolsa um pergaminho, e o entregou.

– Mercenário contratado pela guarda de Migdala. – Disse o homem, sua voz incrivelmente suave e servil. – Fui contratado para rastrear dois ladrões de ervas que estavam violando a lei de uso das cavernas.

O velho olhou para Abigail. Ela ainda chorava, mas silenciosamente. Ela o encarou de volta. Impassível, ele voltou- se para o captor:

– E essa menina é um deles?

– Tenho certeza que sim. – O captor respondeu. – Ela fugiu quando me viu.

– E você confiscou as ervas roubadas?

O captor pareceu confuso. Depois sorriu com agudeza.

– Não, mas ela saiu de um esconderijo, pouco atrás. Eu posso ir lá, aposto que as ervas estão escondidas naquela fenda.

Quando ele fez menção de puxá-la pela corda que amarrava suas mãos nas costas, o velho interveio:

– Deixe-a aqui. Nós a vigiaremos para você.

– E vocês seriam...? – O homem perguntou, pouco à vontade diante da a ideia de se afastar de sua presa.

– Você está falando com o Ancião da Ordem dos Canais. – O homem ao lado do velho respondeu. Em seguida ele afastou o manto, revelando uma insígnia na fivela de seu cinto. Um desenho de uma ponte de dois arcos era visível ali.

O homem não discutiu. Deixou Abigail sentada e começou a caminhar de volta. Nesse meio tempo, o ancião a olhou novamente nos olhos. Ela, mais uma vez, retribuiu o olhar.

Por um segundo, ela teve a impressão de ver um lampejo de dourado nas pupilas do velho.

Logo em seguida, começou a se sentir estranha.

Era como se o homem pudesse ver dentro da sua cabeça. Por um momento, Abigail sentiu-se constrangedoramente nua, mas não como se estivesse sem roupas – era mais profundo e mais íntimo, como se, de alguma forma, ele pudesse conhecer seus segredos e seus medos. A sensação durou até que o captor voltasse.

– Não achei as ervas. – Ele disse, desapontado. – Mas eu tenho certeza de que se eu espremê-la, ela vai me dizer o lugar onde escondeu.

– Qual o seu nome, mocinha? – O velho perguntou.

Abigail olhou para o captor. Ele não pareceu prestes a lhe machucar mais.

– Abigail, senhor. – Ela respondeu. De repente, tomada por um momento súbito de inspiração, acrescentou: – Abigail, da cidade de Neemya. Filha de Shilohuo, Égide Ordenado, morto em missão, há seis anos. 

– Como pensei. – O velho concluiu. Depois se dirigiu ao captor: 

– A menina que você acabou de espancar vinha me trazer uma mensagem. – O seu tom era ameaçadoramente frio. A arrogância do captor foi rapidamente transformada em pavor.

– Ela é minha protegida. Você não pode provar que ela é uma ladra porque ela não é. Ela provavelmente fugiu de você por achar que se tratava de um sequestrador.

O homem agora parecia mais apavorado que Abigail.

Mas o velho continuou:

– Aliás, a sua licença de mercenário só contém as assinaturas de seis milicianos. Ainda faltam as seis assinaturas da ordem dos Canais para que ela valha alguma coisa. Sem as doze assinaturas, qualquer pessoa que você capture aqui, sendo criminoso ou não, também faz de você um criminoso, e estou certo de que esse não é um erro que o senhor queira cometer. – E devolveu ao homem o pergaminho. – Agora, por favor, solte a menina.

Mesmo que quisesse correr, Abigail sentiu que não conseguiria. Sentia dor pelo corpo todo – no estômago, atingido pelo soco brutal do captor. Na cabeça, que perdera tufos de cabelo e onde havia tomado mais um soco na parte de trás. Nos joelhos esfolados da queda e nas nádegas, quando havia sido sentada à força. Mas não fazia mal, porque o velho andava muito devagar. Depois que seu acompanhante havia ficado para trás, conduzindo o mercenário de volta à Migdala, o idoso resolveu acompanha-la até a saída da caverna. Ambos iam conversando no caminho:

– Então seu pai era Shilohuo de Neemya. – O velho ia dizendo. – Não o conheci, mas lembro de que ele era até certo ponto famoso em Migdala. Sei até que ele recebeu o convite para morar lá diversas vezes. Mas nunca aceitou.

– Ele era o único ordenado em Neemya. – Abigail respondeu. – Por causa dele, nenhum criminoso tentava fazer nada com ninguém lá. Até a milícia de Migdala mantinha uma distância respeitosa. Ele sabia que se saísse, deixaria para trás uma cidade pobre e desprotegida.

Havia orgulho na voz de Abigail. Ela não se esforçava em escondê-lo.

– Por isso você voltou? Pelo seu amigo pobre e desprotegido?

Abigail não entendia como o velho poderia saber, mas achou melhor não mentir para ele. Ele era o Ancião. E a havia livrado de uma encrenca enorme. Falar a verdade era o mínimo que podia fazer para retribuir.

– Exatamente. Quero ser como meu pai, um dia. Proteger a cidade. Me tornar uma Égide, como ele.

Ambos pararam à beira da entrada da caverna. Já era noite lá fora, mas uma pálida lua de verão iluminava muito bem o espaço entre a entrada e a cerca que mantinha invasores afastados.

– Por isso quer fazer os exames? – O ancião perguntou. – Mais uma vez, Abigail assentiu, sem querer se preocupar em como ele teria acesso a tanta informação pessoal a seu respeito.

– Sim, é por isso. – E acrescentou, em tom de justificativa: – Espero juntar dinheiro suficiente para viajar, quando completar quinze anos.

O ancião então afastou o manto, exibindo as duas mãos, e sem dizer coisa alguma, as colocou exatamente sobre a cabeça de Abigail. Ela não protestou, ou evitou. Ele, por sua vez, ergueu os olhos ao céu, e fez uma prece sobre ela:

“Rogo, à rocha inabalável em que se sustentam nossas esperanças, que uma fração de sua bênção infinita seja sobre esta criança, a partir desta noite até o momento em que ela possa se juntar novamente a ti, deixando para trás o pó de onde ela foi formada. Que quando o sol a queimar, a chuva a assolar, ou ainda o mar quiser tragar a sua vida, ela possa, até o último momento, servir ao propósito que lhe foi legado: o de oferecer a força dos seus braços, o suor de sua testa e, se necessário for, o sangue de suas veias em honra e sacrifício àqueles que são pobres e desprotegidos. Que no Grande Dia, quando olhares para ela, possa assegurar que ela lhe deu de comer, quando teve fome, de beber, quando teve sede, que lhe visitou, quando estava preso, e que lhe vestiu, quando estava nu. E que a fadiga, a fome e a dor jamais a impeçam enquanto ela continuar cumprindo a Boa Obra.”

Os olhos do homem novamente emitiam o mesmíssimo brilho dourado, de forma totalmente intensa e perceptível agora. Abigail sentiu seu corpo inteiro vibrar, apesar de não ter certeza se era apenas o vento frio da noite. Ele mais uma vez fixou seus olhos nos dela. E fez uma simples pergunta:

– Você concorda? – Ela Assentiu. – Assim seja. – Ele disse por fim. E quando recolheu as mãos seus olhos já haviam voltado ao normal. – Tenho certeza de que será uma excelente Égide, se conseguir passar nos exames. Você já tinha o que é necessário. Conhece o caminho. Eu apenas abri a porta. E não, não me pergunte. Você entenderá depois. Apenas vá para casa. Sua mãe deve estar preocupada.

Abigail fez o caminho de volta para casa sozinha. Passou pela estrada das cavernas, iluminada pelo luar e entrou por uma rua paralela à principal, evitando chamar a atenção.

Neemya era uma cidade muito pequena. Tinha poucas ruas, onde viviam pouco mais que duas mil e quinhentas pessoas. A maioria das casas na cidade era de grandes albergues, comportando várias famílias juntas. O comércio era baseado principalmente em alimentos cultivados com muito esforço nas campinas ao redor e em ferramentas trocadas com as poucas caravanas comerciais e viajantes que ainda passavam por ali. Por ter sido praticamente retirada do mapa oficial das rotas depois da rebelião, era sempre muito bom ter cuidado com quem se estava negociando, pois encontrar pessoas que evitassem as rotas tradicionais (e que em duas de três vezes eram criminosos, ou negociavam artigos proibidos) era comum. Ainda existiam algumas estalagens, mas os visitantes eram escassos. Apenas as ruas mais antigas, próximas à principal, tinham algum tipo de calçamento. As demais eram de terra batida. As casas eram feitas de madeira escurecida e precisavam urgentemente de reforma. A cor predominante na cidade era o cinza – porque as tinturas de qualquer espécie eram consideradas supérfluas – e as pessoas da cidade se vestiam mais ou menos da mesma forma.

Apenas quando estava quase em casa Abigail havia percebido que sequer havia perguntado o nome do seu salvador.

Bateu à porta. Quem atendeu foi Meg, uma das viúvas amparadas pela casa. Pela expressão em seu rosto, Abigail concluiu que Beni já houvesse chegado e apavorado todo mundo.

Entrou em casa. No salão, outras seis pessoas a esperavam, com ar de espanto. Uma delas obviamente era Beni. No seu olhar havia um quê de culpa e remorso. Mas Abigail não estava irritada com ele. Ele havia seguido a parte dele no plano – que era voltar para casa em segurança. As outras eram algumas das moradoras do que um dia fora uma estalagem. As viúvas. Abigail não gostava de encará-las quando voltava das cavernas – era constrangedor porque, ao mesmo tempo em que elas ficavam verdadeiramente aflitas com suas saídas, não podiam negar que precisavam das ervas. Chegar horas depois de Beni, mancando, descabelada e suja só contribuía para aumentar a sensação de impotência. Das viúvas. Dela própria.

Subiu direto para o quarto que dividia com a mãe e com Rosalina, uma órfã de seis anos, a mais recente moradora da Casa. Abriu a porta e aproveitou o alívio momentâneo de se ver sozinha. O sermão da mãe iria esperar mais alguns minutos, no mínimo. Resolveu primeiro avaliar os estragos.

Diante do espelho do quarto – na verdade um enorme estilhaço da altura de um homem que já estava na estalagem quando a compraram – Abigail despiu-se com dificuldade das calças, das botas e da camisa. A visão das manchas no seu corpo não era nada agradável.

Abigail tinha doze anos completos – mas não fossem os seios um pouco crescidos, alguém facilmente diria que tinha dez. Era uma menina franzina, de pele clara e semblante delicado. O tempo em que se aventurara nas cavernas lhe conferira certa agilidade e uma resistência rudimentar, ainda que não chegasse ao condicionamento físico esperado de alguém que dependia tanto de velocidade e fôlego. Não que fosse fraca ou doente, muito pelo contrário – Abigail tinha as faces arredondadas, coradas e uma saúde de ferro. Quase nunca adoecia e quando acontecia era por pouco tempo – uma bênção em uma cidade que quase não dispunha de recursos médicos. Mas sua tolerância a ferimentos e arranhões era outra historia. Mesmo uma pressão só ligeiramente mais intensa em algum ponto de sua pele era suficiente para deixar uma marca que logo se tornaria um roxo. A mancha do soco logo acima do umbigo era dolorosa e impossível de esconder. O mesmo podia ser dito dos joelhos, das coxas e das nádegas – uma festa de vergões e pequenos machucados.

Depois de examinar o estado do corpo, sentou-se em um banquinho de madeira em frente ao espelho e começou a desfazer os nós e a trança desgrenhada, encarando os próprios olhos castanhos, da cor de mel. Os cabelos, quando não os usava amarrados em uma trança grossa, desciam em uma cascata ondulada e loira até pouco abaixo da cintura, e costumavam ser volumosos e macios. Antes que pudesse terminar de desfazer a trança, entretanto, a porta do quarto se abriu em um estrépito. Qualquer outra pessoa que não fosse sua mãe bateria antes de entrar, então Abigail não precisou interromper a tarefa nem se virar para cumprimentar:

– Boa noite, mãe.

A mãe de Abigail era uma mulher jovem, baixa e, como a filha, de semblante delicado. Seus cabelos castanhos e olhos escuros só confirmavam que, com exceção do porte físico, todas as outras características de Abigail haviam sido herdadas de seu pai. Mas, diferente da filha, Gilana realmente parecia um tanto doente. A pele clara era pálida, seus gestos eram suaves e suas mãos sempre estavam sujas de alguma coisa – peixe do mercado, verduras da horta, erva da enfermaria. Todas formas alternativas de ganhar algum dinheiro para a Casa. Nenhuma muito rentável.

Gilana entrou no quarto fazendo aquele silêncio que sempre precedia uma discussão. Ainda calada, começou a operar a bomba manual para encher a grande tina de madeira, atrás das cortinas que separavam o local de banho do resto do quarto. Por alguns minutos, nada se alterou, e tudo o que se ouvia dentro do aposento quase vazio, exceto pelo grande colchão de palha que ambas dividiam com Rosalina, o estilhaço de espelho e uma cômoda onde guardavam roupas, utensílios e medicamentos, era o som da água sendo puxada do reservatório no piso de baixo.

– Seu banho está pronto. – Gilana disse por fim, fria. – Se lave e depois me deixe ver esses machucados.

Abigail não se esforçou para esconder a horrorosa mancha roxa em seu abdômen, já que as pernas mostrariam todo o resto. Simplesmente imergiu dentro da tina cheia de água fria e aproveitou a sensação de dormência na superfície da pele. Do outro lado da cortina, a mãe retomava o assunto:

– Onde você se machucou assim?

– Estava nas cavernas. – Abigail respondeu, presta. Não fazia sentido e, aliás, não queria mentir. – Junto com Beni. Me machuquei por que a milícia de Migdala, não satisfeita de me caçar dentro das cavernas, contratou um mercenário para fazer o trabalho difícil por eles. Eu só não fui levada presa de novo por que...

As cortinas se abriram antes que Abigail pudesse explicar porque não havia sido presa. A expressão de Gilana demonstrava choque, medo e raiva, ao mesmo tempo. Sem aviso, a mão da mãe desceu com violência sobre o rosto da filha. Uma, duas, três vezes. Comparada à dor dos socos do mercenário de horas atrás, aquilo era praticamente nada. Mas fez suas entranhas ferverem novamente. De novo, a mesma situação. Ela se arrisca. Ela apanha. Ela quase é presa. Nenhum agradecimento. Só mais castigos. E aquela mesma expressão de decepção e raiva no rosto da mãe, como se ela só se arriscasse porque achava divertido ou como se as ervas não fizessem uma diferença enorme para todo mundo naquela casa.

A mãe só parou de bater quando, no quinto golpe, o sangue pisado manchou a bochecha escarlate de Abigail. Por um segundo Abigail se assustou, mas percebeu rápido que o sangue não era dela. A pele fragilizada da mão da mãe havia se rompido, como fazia às vezes. Ela recolheu a mão, tremendo, ainda com aquela expressão de pavor gelado nos olhos. Abigail retribuiu o olhar, carrancuda, porém menos determinada. Gilana se retirou para trás das cortinas.

Abigail terminou o banho em silêncio. Saiu da tina, se secou e vestiu a camisola enquanto a mãe tratava a mão machucada, apoiada sobre a cômoda. Abigail nem queria pensar em quantas calças ela deveria ter esfregado até que a pele ficasse sensível daquele jeito. Por isso mesmo havia decidido retomar ali uma velha discussão:

– Eu vou prestar os exames para as ordens quando fizer quinze anos. – Disse, reunindo toda a determinação que pôde para o aviso parecer definitivo.

Gilana parou o que estava fazendo. Olhou para Abigail, e esta sentiu toda a força se esvair ao fitar a expressão exausta da mãe.

– E como exatamente você pretende fazer a viagem até a Capital? – A mãe perguntou. – Mesmo que eu concordasse com essa estupidez, não tenho dinheiro para financiar sua viagem de seis meses através do reino.

– E porque fazer o teste para as ordens é estupidez? – Abigail perguntou rapidamente, para evitar ter de responder que não sabia de onde ia tirar o dinheiro para a viagem. – Só por que nós nunca temos dinheiro o bastante para...

Mas parou de falar. Três anos de discussões acerca das desventuras nas cavernas tornaram Abigail totalmente consciente de que dinheiro era um assunto muito delicado entre as duas. Ela sabia o que a mãe estava pensando. Sabia o que ela estava esperando.

"Ela espera que eu a culpe. Pela Casa das Viúvas. Pela indenização que havia acabado mais depressa do que o planejado. Pelo fato de que, se ainda houvesse dinheiro, eu poderia fazer a viagem."

Mas Abigail jamais faria isso. Nunca culpara e nunca culparia as viúvas e os órfãos que dependiam da sociedade. E mesmo que culpasse, sabia que dizê-lo seria um golpe duro demais na mãe. Abigail entendia o que ela passava, carregando tanta responsabilidade sobre as costas. Por isso que insistia nas incursões arriscadas nas cavernas. Sua mãe é que precisava entender. 

– Se eu fosse uma ordenada... – Abigail recomeçou, aproveitando o momento de silêncio da mãe. – O meu soldo poderia facilmente alimentar todo mundo aqui sem que eu... que nós precisássemos nos arriscar! Poderíamos abrir um negócio, talvez. Ou comprar animais e viver da pecuária. Ou muitas outras coisas que não podemos fazer plantados aqui, sendo forçados a trabalhar por quase nada ou se arriscando em cavernas com milicianos e mercenários. Tudo seria diferente. Eu posso passar em pelo menos uma das ordens. Sei que posso.

O olhar duro de Gilana se converteu em um sorriso triste. Ela esperou que a filha continuasse, e como ela não disse mais nada, foi sua vez de falar:

– Eu já ouvi palavras muito semelhantes, minha filha. Elas costumavam sair da boca do seu pai, sempre que ele abria uma licença no serviço regular e aceitava trabalhos paralelos. As mesmas palavras sobre mais dinheiro, mais segurança, mais possibilidades.

Ela então se levantou e trancou a porta, o que era muito incomum. Em um lugar onde moravam pessoas idosas ou debilitadas, ter as portas sempre destrancadas era uma regra não verbalizada. Depois, ainda em silêncio, remexeu em uma tábua solta no assoalho do quarto – exatamente embaixo do colchão – e retirou de lá uma pequena canastra de madeira. Abigail sabia sobre o esconderijo há anos, e sobre a canastra, mas nunca havia investigado seu conteúdo, supondo ser alguma intimidade de sua mãe. Depois de retirada a canastra, sua mãe tornou a se sentar e apoiou o objeto no colo.

– Você já abriu isso aqui? – Sua mãe perguntou.

– Sabia do esconderijo, mas nunca abri. – Abigail respondeu.

A mãe então abriu a canastra e remexeu alguns papéis dentro dela. Retirou dois pergaminhos já bem amarelados. Entregou à Abigail o primeiro.

– Leia. – Foi tudo o que disse.

Abigail desenrolou o pergaminho e leu:

"É com imenso pesar que informamos a morte em combate de Shilohuo, filho de Girdom, da cidade de Neemya, em uma campanha voluntária na Floresta Silenciosa. Seus atos de bravura nunca serão esquecidos por aqueles que lutaram ao seu lado, e que o conheceram pessoalmente. Os trâmites legais que se seguem ao seu sepultamento, assim como as despesas do mesmo serão informados em mensagem vindoura.

Thalles, filho de Gedeon, Superintendente da Ordem dos Égides em Amihud."

Uma carta curtíssima. Um nó na garganta.

– Eu recebi essa mensagem cerca de duas semanas depois da morte de seu pai. – Gilana continuou. – E dois dias depois, esta outra.

E estendeu a segunda carta para a filha, que a recebeu e abriu:

"Não existe forma simples de começar esta carta, então seremos diretos, porque cremos que à essa altura a mensagem oficial já deve ter chegado. Conhecemos seu marido durante a missão que resultou em sua morte. Lamentamos muitíssimo, e não conseguimos imaginar o quanto pode ser doloroso para você e sua filha, que o tiveram durante anos, enquanto nós que o acompanhamos por apenas algumas semanas não conseguimos ainda lidar com a sua perda. Sabemos que não existe nada que possa ser feito para amenizar a sua dor, mas considerando a decisão burocrática de Amihud em não conceder a indenização por perda em combate à família, uma vez que a missão na qual ele se envolveu era voluntária, decidimos nós mesmos fazer algo a respeito. Jamais esperaremos que qualquer quantidade de dinheiro possa suprir o calor humano e a presença inesquecível de Shilo (depois do segundo dia de viagem, todos na companhia já o chamavam assim), mas nos comprometemos a fazer o que fosse possível para não desamparar sua esposa e filha, já que, entre muitas outras coisas, seu sacrifício salvou não apenas as nossas vidas, mas as de outras centenas de pessoas que não experimentariam o horror que enfrentamos. Poderíamos escrever durante horas, contando como ele foi leal, companheiro, incansável e até seu último suspiro, disposto a sacrificar a própria vida para evitar tantas mortes quanto possível. Todos devemos a ele muito mais do que jamais poderemos pagar.

Aminadave, Mestre Forjador na Ordem dos Armígeros em Nedavya;

Aryah, Guardiã dos Combatentes da Fronteira na Ordem dos Redentores em Ataya."

As lágrimas caíram sobre o pergaminho já manchado sem que Abigail pudesse fazer qualquer coisa para impedir. Aparentemente, muitas lágrimas já haviam caído sobre aquele mesmo pedaço de papel. Gilana retomou a conversa:

– Junto com essa carta veio uma grande quantia em dinheiro. O suficiente para que eu pudesse comprar esta estalagem. O corpo embalsamado de seu pai chegou cerca de uma semana depois. Todas as despesas do enterro pagas. Por essas duas pessoas.

– Porque está me mostrando isso? – Perguntou Abigail, enxugando os olhos com as costas das mãos.

– Para que você entenda o que realmente quer dizer ser um ordenado. Seu pai foi atender um pedido de ajuda em uma cidade tão distante daqui que nem mesmo sei onde fica. Ele não precisava ir. Foi voluntário. Por isso, nem uma única moeda nos foi enviada por Amihud, cidade à qual ele havia feito votos de lealdade e que havia se responsabilizado a enviá-lo de volta para casa em segurança.

– Mas porque ele foi, se a missão era voluntária? – Abigail perguntou. Aquelas cartas mudavam muito a história que ouvira desde os seis anos, quando o pai saíra para o trabalho sem jamais retornar. Na versão que sua mãe lhe contara, seu pai havia sido enviado em uma missão perigosa e difícil, e sua morte rendera a indenização que comprara a estalagem e as sustentara por alguns dos anos que se seguiriam.

– Ele foi porque a recompensa oferecida pelo contratante era suficiente para comprar esse lugar e dar início à Casa das Viúvas. A Casa das Viúvas não era ideia minha. Era dele. Ele saiu daqui com a cabeça cheia de sonhos e me prometeu que voltaria com dinheiro suficiente para podermos ajudar o máximo possível de pessoas nessa cidade. Mas tudo o que recebi de volta foi seu corpo. – Gilana suspirou, e depois sussurrou, com a voz carregada de mágoa: – Eu trocaria dez Casas de Viúvas como essa para tê-lo de volta.

– Mamãe, eu... – Abigail ia começar, mas Gilana não havia terminado:

– E agora, você vem até aqui e tenta me convencer a te deixar seguir o mesmo caminho que ele. Eu não quero. Sabia que esse dia chegaria, mas não quero que você vá. Você é tudo o que eu tenho agora. A vida me tirou quase tudo o que tinha. Restou você... e o desejo inacabado dele. E eu faço o que posso para manter os dois. Amihud já devorou a metade da minha vida. Não me peça para concordar em oferecer-lhe minha outra metade.

Abigail não tinha como argumentar contra aquilo. A mãe parecia ter cem anos, em seu olhar de súplica. Abigail odiava esse olhar, não apenas por estar no rosto da sua mãe, mas por identificá-lo em todos os rostos da cidade, o tempo todo. Mesmo o chefe da guilda de mercadores, supostamente o homem mais rico da cidade, o tinha. A expressão de quem é eternamente impotente. E essa raiva da situação de total dependência em que todos na cidade se encontravam lhe emprestou força para dizer as palavras que se seguiram:

– É por isso que eu preciso ir, mamãe. Pegar de volta o que nos foi tirado. Dar um pouco mais de dignidade a essa cidade e à nossa casa. – Ela avançou na direção da mãe e segurou a mão machucada com delicadeza. – Estou cansada disso aqui.

Abigail sentiu o abraço apertado e soluçante da sua mãe. E ela própria se deixou chorar e soluçar. Ambas sentiam o mesmo. Saudade dos braços fortes e quentes do pai, do marido, que havia partido para sempre. Saudades de seus próprios braços, uns nos outros, que haveriam de se separar. Naquele momento, Abigail soube que a mãe não a impediria de ir, se ela mantivesse a determinação em seguir adiante. Soube que a mãe já havia percebido que sua tentativa de mostrar como a capital do reino havia negligenciado os cuidados à família do soldado morto teria o poder de criar na filha uma aversão tal que ela jamais iria desejar se aproximar da cidade, mas de forma alguma diminuiria sua vontade de seguir em frente.

Abigail estava ainda mais decidida a tentar. Mas não tinha ideia de como faria isso.

Quando as duas finalmente romperam o abraço e os soluços, Gilana guardou as cartas na canastra, sentou a filha no banquinho de madeira e começou a pentear-lhe os cabelos em frente ao espelho. A bochecha que apanhara já estava ficando lilás.

– Aquela foi a única carta que a senhora recebeu das

duas pessoas que conheceram o papai? Abigail soltou a pergunta, que flutuou um pouco entre as duas antes que a mãe respondesse:

– Não, houve mais uma. No dia do enterro, quando trouxeram o corpo. Nela dizia que eles estavam passando por problemas, algo sobre estarem sendo vigiados. Disseram que tentariam ao máximo enviar mais ajuda, mas nunca mais o fizeram. Imagino que tenham desistido, ou tenham sido forçados a desistir de alguma forma. Não que possamos reclamar. Fizeram muito mais do que eu poderia esperar só de enviar aquela quantidade de dinheiro enorme com a primeira carta. A segunda carta não existe mais. O mensageiro que a entregou disse que era perigoso mantê-la. Pediu, inclusive, que eu destruísse a anterior.

– Mas a senhora não a destruiu.

– Não. Eram as últimas palavras dos amigos de seu pai para ele. Ele teria guardado a carta.

Mais um longo período de silêncio se seguiu. Aos poucos, as marolas rebeldes voltaram a formar uma única e grossa trança às costas da menina. Na segunda vez em que o silêncio foi rompido, quem o fez foi a mãe:

– O corpo do seu pai não foi a única coisa que veio com a segunda mensagem. A armadura dele também veio.

Abigail apenas ouviu. A mãe continuou:

– Bom, eu não sabia o que fazer com ela. Era grande, pesada, e nenhuma de nós duas poderia usá-la, para o que quer que fosse. A armadura do seu pai era muito boa, apesar de já ser bem usada. Ninguém aqui na cidade pagaria o preço justo por ela, e eu não iria simplesmente sair por aí carregando aquilo para vender em outra cidade.

– Eu lembro um pouco de como ela era.

– Então, tive uma ideia. Sabia que este dia chegaria. O dia em que você iria querer terminar o que seu pai começou. Fui até a guilda de mercadores e falei com Filio, o chefe. Eu sugeri a ele uma troca. Eu o daria a armadura. Ele não precisaria pagar por ela, e poderia levá-la onde quisesse e vender pelo preço que achasse adequado. Em troca, ele me faria um favor futuro.

"Quando você completasse doze anos, se quisesse prestar os exames para as ordens, a guilda de mercadores financiaria a sua jornada. Se você precisasse refazê-la, mais uma, ou mais duas vezes, eles a ajudariam nas tentativas subsequentes."

Abigail prendeu a respiração. Seu coração retumbou violentamente dentro do peito.

– Bom, ele sempre foi um mercador habilidoso. Alegou que a armadura não valia tanto, e que era um negócio arriscado para ambos. Eu então o lembrei de tudo o que seu pai representara para a cidade. De como os abusos de forasteiros eram totalmente suprimidos pela mera presença dele aqui. De como um novo ordenado poderia conferir a essa cidade alguma proteção e prestígio. E depois de mais algum tempo de negociação, ele aceitou.

– Ele aceitou? – Abigail perguntou, para se certificar de que ouvira direito. – Isso quer dizer... mas porque então a senhora agora há pouco...

– Eu continuo não concordando com a viagem. – Gilana respondeu, interrompendo a filha. – Não gosto nem um pouco da ideia de você cruzar o reino com uma centena de adolescentes sendo cuidados por um punhado de desconhecidos, sejam eles ordenados ou não. Mas esse também era um desejo do sei pai.

– Que eu me tronasse uma ordenada?

– Não, minha filha. Que você pudesse escolher. Escolher fazer o que tivesse vontade.

Os dias que se passaram foram uma sucessão interminável de despedidas. Não demorou muito, e todo mundo parecia saber que Abigail iria partir e prestar os exames para as ordens. Mesmo que a cidade fosse pequena, o episódio da prisão acompanhada dos milicianos de Migdala, além da fama que seu pai havia adquirido muito antes de suas incursões nas cavernas havia garantido que praticamente cada habitante conhecesse Abigail. As pessoas iam até a Casa das Viúvas para vê-la, conversar com ela e deixar pequenos presentes. Alguns ela dividia com as viúvas, outros ela guardava para a viagem, e alguns ainda ela não aceitava. Era uma cidade pobre, e nem todos tinham condições de dar presentes, mas ainda assim tentavam fazê-lo. Apenas Beni, seu velho amigo e companheiro de longa data, parecia indiferente à situação. Na verdade, até mais arredio e calado que o de costume.

No dia anterior ao da partida, o prefeito deu uma festa na praça, custeada pela guilda de mercadores da cidade. Um exagero, era verdade, mas as pessoas de Neemya estavam realmente precisando de um motivo para comemorar, qualquer que fosse ele. Uma noite com dança, comida à vontade – o que, em Neemya, queria dizer que cada participante da festa poderia montar um prato composto de uma porção de cada coisa na fila de mesas colocadas à disposição na praça – e muitas saudações, abraços e despedidas.

Abigail acordou antes do sol no dia da partida. Sua mãe, pássaro madrugador, já estava de pé. Metade dos presentes que seriam levados para a viagem já estava descendo, sendo carregados por dois carroceiros forçudos da guilda da cidade.

O café da manhã foi consumido em silêncio. Depois, Gilana trançou os cabelos de Abigail e ambas desceram. A Casa das Viúvas ainda dormia. Abigail achou melhor sair antes de o sol nascer, assim evitaria mais despedidas e lágrimas. Só sentia falta de Beni, que não havia visto em lugar algum desde o fim da festa no dia anterior.

Lá embaixo, a carroça que serviria de condução para ela e para o cocheiro já esperava. Deveriam seguir a estrada até a rota principal, e esperar a caravana que viria pelo leste, provavelmente já cheia de jovens das cidades do oriente. Depois, os seus mantimentos seriam depositados em uma das carruagens da caravana e o cocheiro voltaria para casa. O documento de identificação e permissão, assinado pela mãe e registrado na câmara de Migdala, uma semana antes, já estava com Abigail. Quando o sol se levantou e seus primeiros raios banharam a torre da prefeitura de Neemya, ela já estava a caminho, com o cocheiro e sua mãe a balançar na carroça em direção à estrada principal.

Não demorou muito a chegarem ao ponto de espera. A estrada era larga, de terra, e com marcos a cada cem metros para orientar os viajantes. O dia previsto era aquele. Deveriam esperar até o pôr-do-sol, porque as caravanas não viajavam à noite.

À medida que o dia passava, a ansiedade de Abigail ficava mais aguda. E se não viessem? E se ela houvesse perdido o dia? Enganos podiam acontecer. O reino era um lugar seguro, e ninguém ia tentar assaltar uma caravana cheia de soldados e ordenados. Pensando por esse lado, não havia nenhuma razão para que a caravana se atrasasse.

E ainda havia a ausência de Beni. Ela realmente gostaria de se despedir dele. Era possível que ele simplesmente não soubesse onde iriam esperar a chegada da caravana. Que ele simplesmente não encontrasse o local. Mas algo dentro dela dizia que havia uma razão mais delicada para explicar a questão. Uma razão que envolvia o fato de Beni ser órfão de pai e de mãe, a amizade dos dois, breve, mas intensa, e a possibilidade de anos de afastamento.

Antes, porém, que pudesse dedicar mais tempo pensando nessa questão, sua mãe apontou o horizonte.

Um grande comboio de carruagens vinha atravessando o planalto, onde a vista alcançava. Além das carruagens, havia muitos cavaleiros montados, acompanhando. A mãe de Abigail checou a documentação mais uma vez. O cocheiro preparou-se para descarregar a carroça.

– Me escreva sempre que passar em uma cidade, entendeu? – Sua mãe pediu, a abraçando. – Morro se não tenho notícias suas.

– A senhora vai saber de cada detalhe dos exames, mãe.

A caravana se aproximava. Abigail arriscou mais alguns olhares em direção à estrada de Neemya. Sua mãe pareceu então compreender.

– Ele está com ciúmes, Abigail. – Ela disse. – Da cidade, da ordem, de você indo para longe dele. Tem medo de você não voltar.

Abigail olhou para a mãe. Já conseguia ouvir os cascos dos cavalos e o burburinho das conversas na caravana.

– A senhora vai cuidar dele? – A filha perguntou. – Garantir que ele não vai se meter em confusão?

– Claro, Abigail. Acho que ele não vai se atrever a entrar nas cavernas sem você. Veja, a caravana chegou.

O líder da formação – um homem alto, em uma reluzente armadura branco e prata acabara de descer do cavalo. Enquanto Gilana e ele trocavam informações e orientações, Abigail arriscou um último olhar na estrada.

Nada de Beni. Ele não viria se despedir.

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