Além das planícies agrícolas a leste do centro político agnumiano, bem próximo aos limites das terras estrangeiras de Hamode, a grandiosa cidade de Yahudah era a coroa do extremo oriente. A segunda cidade mais populosa do reino era um grande festival de construções suntuosas e edifícios trabalhados nos mais variados formatos e estilos, hibridizados com o que costumava ser uma antiga metrópole de um povo esquecido. Os invernos eram tão secos que a exposição prolongada ao vento poderia ferir as narinas. No verão, o calor do Sol era tão intenso que a brisa mais suave se tornava uma baforada quente. Entretanto, longe de ser um lugar inóspito, Yahudah era uma cidade que explodia em vida, variedade e pessoas. Muitas pessoas.
No passado, quando a grande cidade ainda se chamava Manancial, tribos de nômades vindos de ainda mais longe no leste eram responsáveis por todo tipo de crimes. Manancial era na verdade o que restara de uma cidade ainda mais antiga - pertencente a um reino dest
Muito além da cidade de Yahudah, fora dos limites de Agnum, o deserto a leste estendia-se como uma prisão sem muros capturando e matando viajantes despreparados. O sol escaldante, as dunas sempre em movimento, o vento cortante e os salteadores. Muitos salteadores.A pequena companhia montada em camelos havia encontrado até então cerca de dez dessas pequenas quadrilhas de criminosos. À primeira vista, o grupo parecia indefeso: três homens adultos e um rapaz atravessando aquela imensidão - os alvos perfeitos aos olhos de um saqueador.Adon não havia pensado nessa questão quando escolheu pagar aos seus guarda-costas por cabeças decepadas ao invés do pagamento habitual por tempo de serviço, em dias. Sabia que a viagem pelo deserto teria seus perigos, mas até então os seus contratados já haviam decapitado cerca de sessenta assaltantes – muito além do previsto
Fazia muito tempo desde que a noite havia caído sobre as copas das árvores na Floresta Silenciosa. A cidade de Ataya dormia, com apenas alguns patrulheiros circundando os muros, desejosos de uma bebida quente e do conforto de suas camas. A floresta recebera esse nome justamente por sua característica marcante: o completo silêncio que fazia em qualquer que fosse o horário do dia. Apesar das aparências, entretanto, a floresta não era desabitada – tinha abundância de animais dos mais variados tipos. Eles apenas eram muito mais soturnos que em outras áreas do reino. Havia quem dissesse que a floresta retinha uma aura de silêncio sobrenatural, oriunda dos dias em que as incursões dos primeiros Redentores exigiam silêncio absoluto para evitar combates desnecessários. O fato, entretanto, era que todos os habitantes de Ataya e das imediações acabavam desenvolvendo uma boa audição, tanto para poder caçar os animais da floresta, quanto para evitarem ser surpreendidos por predadores. Alguns, i
Semanas antes. – Em primeiro lugar, o que eu vou te contar é segredo. Ninguém, absolutamente ninguém pode saber. Nem mesmo sua mãe sabe que eu vou te contar. Acaiah estava ouvindo com atenção. Era comum que seu pai o pedisse para guardar segredos – em geral, Adameire é que costumava ser boquirrota, razão pela qual ninguém nunca lhe contava nada. O estranho era que ele pedisse para esconder algo de sua mãe. O relacionamento dos dois sempre pareceu muito transparente, ou pelo menos Acaiah nunca vira os dois de segredos um com o outro. Aquilo o deixou tenso. – Você não costuma guardar segredos da mãe. – Acaiah observou. – Ela acha que você não está pronto para lidar com o que eu vou dizer. Eu discordo. Simples assim. Por estranho que parecesse, Acaiah já estava esperando que o pai o chamasse para uma conversa cedo ou tarde. O dia que se passara estava cheio de estranhezas. Um desconhecido havia chegado no meio da madrugada e os seus pais
Ano anterior. As bochechas de Adameire eram duas manchas escarlate pintadas no branco marmóreo do seu rosto. Não bastasse sua palidez natural, o frio que fazia era suficiente para expulsar todo o sangue das extremidades do corpo, lhe emprestando uma aparência semicongelada e, apesar da geada branda apenas acariciar a pequena parcela de pele exposta pelo casaco pesado de pelo de urso, o vento era um exército impiedoso de lanceiros empalando qualquer um que cometesse a insensatez de ficar em seu caminho. Ao seu redor, a floresta de galhos secos e retorcidos uivava. A caminhada já estava durando duas horas. Logo atrás dela, Acaiah se arrastava dentro de seu próprio casaco, só resmungos. Sempre fora claro, desde o começo, o quanto ele detestava o treinamento. Mais à frente, Aryah abria caminho entre os galhos nus das árvores que se erguiam em direção ao céu cinzento, as madeixas loiras dançando ao sabor do vento, como se este não as afetasse. Os olhos castanhos
Abigail encarava o pergaminho sem nenhuma ideia do que escrever nele. Havia sido alfabetizada pelo pai – uma alfabetização decente, para dizer o mínimo, mas ainda assim insuficiente no que dizia respeito às questões que tinha diante dos olhos. A prova teórica continha dezesseis questões. Ela já havia deduzido muito antes que não conseguiria atingir um resultado satisfatório, mas não imaginava que houvesse tanta diferença entre sua capacidade e os requisitos exigidos. Por coincidência, estava ocupando a mesma sala que Beni, este sentado três fileiras à frente. Ele tampouco parecia mais à vontade que ela. Mas nenhum dos dois se atreveu a espichar o pescoço para os lados e tentar enxergar o que o concorrente vizinho estava escrevendo – só naquela sala, seis foram eliminados por terem sido pegos tentando copiar respostas alheias. Os examinadores eram particularmente severos quanto a isso. Não se podia tentar trapacear na prova. O Exame teórico estava sendo aplicado nas escolas m
Água. Um leviatã feito de lama, pedras e destroços. Fluido e poderoso.Os mais afastados da torre tombada observavam, em desespero, o monstro líquido bater contra as paredes escarpadas e varrer delas a vegetação, as rochas e os infelizes que tiveram a ideia de se salvar pendurados nelas. Como uma manada selvagem e descontrolada, a massa lamacenta e pesada de água atropelou os primeiros botes remendados e os lançou contra as paredes da fenda, esmigalhando-os como se fossem pequenos brinquedos feitos de palito, arremessando seus ocupantes, alguns já inconscientes, na torrente. Mal a enchente alcançara a metade da fenda, um número substancial de Armígeros já havia saltado na água, resgatando com surpreendente agilidade aqueles que obviamente não conseguiriam se recompor e continuar a prova.Lênis segurou-se às cordas como se disso dependesse a vida. Todos
Os dias que se seguiram ao primeiro exame foram exaustivos. Uma quantidade enorme de concorrentes havia sido eliminada, mas como os dados oficiais não eram revelados aos participantes, ninguém tinha a ideia exata de quantos, apesar de seguramente mais da metade dos mil concorrentes que começaram em Amihud já haverem deixado a viagem. Todo o clima de excitação que permeava o trajeto até Nedavya foi substituído por fadiga e silêncio na viagem para Zuria. Os sobreviventes da enchente estavam se recuperando. O clima nos acampamentos mudou. Não havia mais a conversa jogada fora e o círculo de fogueiras acesas - apenas umas poucas fogueiras pontuavam o círculo interno da formação – a maioria dos concorrentes aproveitava as noites para dormir, agora. Lênis não fazia parte dessa maioria. Havia prometido a uma menina franzina que tentaria ensiná-la a ler antes do exame de Yahudah. Veridane ainda estava com a mão enfaixada. Os médicos haviam dito que ela rompera parcialmente v
Os olhos de Absalon se abriram sem que ele tivesse certeza de estar vivo ou morto. Alguém estava lhe fincando agulhas. Deveriam ser sete ou oito delas, na perna atingida pela adaga. O ferimento queimava. Desfocados, a noite e o bosque lentamente tomavam forma ao seu redor. Ainda tinha os membros no lugar, a julgar por como todos doíam horrivelmente. Sentia o punho de sua espada no chão, ao seu lado e, à sua frente, bloqueando parte das estrelas, um rosto conhecido de quarenta e seis anos e uma longa experiência em furtividade, envenenamentos, e principalmente, antídotos, o observava, aflito. – Talbo? – Absalon perguntou, recobrando a fala. – Não fale ainda. – Ele respondeu. – Estou quase acabando. Talbo tinha os olhos tão escuros que poderiam ser negros. Deixava sempre a barba rala, porque os pelos se agarravam bem à tinta de suas camuflagens exóticas. Seus cabelos eram originalmente negros, mas dada a frequência com que mudava sua cor,