Na semana seguinte, quando cheguei ao hospital para iniciar o plantão que duraria longas doze horas, não escondi a felicidade em rever alguns colegas, sendo recebida afetuosamente pelos mais próximos, aqueles com quem tinha mais afinidade e que consequentemente dividiriam o dia comigo.
—Bom dia, Nicole. Seja bem-vinda. Aproveitou as férias? - perguntou uma das recepcionistas com um invejável bom humor às seis e quinze.Trocamos algumas palavras antes de direcionar-me ao vestiário. Apesar de ser cumprimentada mais três vezes por enfermeiras e técnicas que, assim como eu, chegavam para trabalhar, sabia que encontraria mais conhecidos pelos arredores do hospital.Olhando-me no espelho, estava pronta oficialmente para retornar à rotina de plantões, devidamente uniformizada de branco, com o cabelo preso em coque, as canetas esferográficas no bolso do jaleco, cujo tamanho era acima do jO carro de Marcus era um Corolla, ano 2014, preto, quatro portas, teto solar, painel reluzente e bancos de couro que faziam com que qualquer pessoa se sentisse extremamente confortável ao ponto de querer residir no automóvel. O aroma interno refrescante quase fez com que eu esquecesse dos reais motivos de estar ali dentro.Em um clique, o DVD Player se abriu, colocando-se para fora do painel e ligando automaticamente, tocando o ritmo inconfundível da música “Think”, da banda inglesa “Kaleida”, deixando-me incrédula na coincidência que me cercava. Além da música ser uma das mais tocadas nas rádios, por causa do filme que estourou na bilheteria dos cinemas, há o ator Keanu Reeves, interpretando o personagem John Wick, e a música que era uma das minhas favoritas para malhar.A situação como um todo parecia demasiadamente estranha. Marcus e eu ouvíamos a mes
— Bom dia Nicole. Bem-vinda de volta. Ele disse animadamente como se fossemos melhores amigos ou como se tivesse realmente sentido minha falta. Percebi que as batidas de meu coração podiam ser ouvidas a quilômetros de distância. Contudo, não sorri e nem respondi, evitando qualquer tipo de amistosidade.Marcus levantou-se da cadeira cordialmente, vindo em minha direção, o que fez com que eu desse um passo para trás, indicando que não queria, em hipótese alguma, qualquer tipo de aproximação.— Meu plantão começa em dez minutos, seja breve por favor. - impus com firmeza e com a voz fria como gelo, fazendo-o recuar.O sorriso, que antes era de suposta animação ao rever-me, desapareceu completamente, deixando um silêncio quase constrangedor na sala.Marcus então voltou-se timidamente para mesa, apoiando-se no aparador e observand
Não podia ignorar a ansiedade que sentia, afinal conheceria os pais de Juliana, a esposa de Marcus.Era muita informação para assimilar, mas meu lado profissional não permitiria fraquejar, e passei a me concentrar no que realmente importava: os honorários oferecidos que pagariam minhas dívidas, permitindo uma nova viagem nas férias seguintes.Comecei a pensar que dentre tantas doenças psiquiátricas que assisti de perto, percebi que talvez a depressão atingisse um número cada vez mais alarmante de pacientes, enchendo as salas de espera dos consultórios psiquiátricos, assim como a dos psicólogos, e movimentando bilhões ao ano no mercado farmacêutico.Tudo começa com um desânimo singular seguido pela falta de memória e a iniciativa para tomar decisões que passam a não ser tão eficazes.As tarefas do dia a dia provoca
Às seis e dez, eu arrumava cuidadosamente as minhas roupas dentro do armário, para o começo da jornada de trinta e seis horas com meu novo paciente, quando Beatrice entrou no quarto procurando-me. Ao contrário de Carmem, que fez questão de sorrir gentilmente ao receber-me dias atrás ao contratar-me, a tia de Andreas não parecia muito amigável e nem muito receptiva.O cabelo platinado natural, a pele bem cuidada, a maquiagem perfeita já tão cedo, assim como os olhos azuis turquesa delineados, realçavam o corpo magro que ficava ainda mais esbelto com as roupas elegantes que trajava, disfarçando a idade aparente. Definitivamente, Beatrice parecia muito mais conservada do que todas as mulheres de sua idade.— Bom dia, Nicole. Por favor, me acompanhe. Determinou Beatrice com a voz fria e a postura firme, enquanto o português arranhava dentro do sotaque italiano.— Vo
Quando finalmente a segunda-feira raiava lá fora, fui embora.Precisava sair daquela casa e me recuperar do fim de semana exaustivo com Andreas e a família.Sentia-me incapaz de lidar com várias questões ao mesmo tempo: Marcus, a esposa, Andreas, Beatrice, dívidas, excesso de trabalho, falta de lazer e acúmulo de stress.Queria apenas correr para o único lugar em que me sentia aquecida, renovada e segura – a minha casa.Assim que cheguei em casa, o cheiro do café feito no coador de pano emanava pela cozinha, fazendo com que eu percebesse que não tinha colocado nada no estômago desde do dia anterior.Assim que abri a porta, mamãe se surpreendeu ao meu ver. Nós duas nunca sabíamos exatamente quando nos veríamos, uma vez que os horários intensos dos plantões não me deixavam saber ao certo quando voltaria para casa. — Minha filh
No plantão seguinte do hospital, felizmente não vi Marcus, e isso parecia não me afetar tanto quanto há dois dias atrás. Eu apenas focava ansiosamente no tempo, almejando que os dias passassem tão depressa para que pudesse rever Andreas.Quando enfim, cheguei à casa de Andreas, Eleonor, sempre muito solícita, esperou que fizesse minha refeição para rendê-la, e mesmo sabendo que em breve o meu paciente dormiria, a minha cabeça não deixava de borbulhar de ideias que precisavam aguardar o tempo propício para serem executadas.— Dona Beatrice está acordada? - perguntei para minha colega de trabalho que sorriu gentilmente pra mim.— Sim, no escritório. Você quer falar com ela antes de me render?— Ah, não, querida. Tudo bem. O que tenho para falar com ela pode esperar. Vá para casa, descansar, e deixe que eu assumo a part
Além dos livros que avistei nas estantes, havia outra repleta de discos de vinil. Eu só tinha visto discos assim durante a minha infância, e depois, por alguma razão, eles se tornaram acessíveis somente para colecionadores.Será que Beatrice era uma colecionadora? Dei uma rápida olhada e deduzi que eles giravam em torno de trezentos a dois mil discos que, como os livros, estavam todos organizados, plastificados e separados por gênero musical. Era realmente impressionante.Mas não eram somente os discos e os livros que preenchiam o aposento. Na verdade, o escritório, que mais parecia uma biblioteca, também tinha uma estante vasta de CDs de todos os tipos de cantores.Essa estante ficava ao lado de uma curiosa estátua da deusa Vênus, que media mais ou menos um metro e meio de altura.A concha em que ela se apoiava de pé, com o corpo totalmente nu, apenas tendo o seu longo
O progresso de Andreas durante meus dias de plantão fora muito pequeno. Quase imperceptível, mas ele existia, e isso me deixava totalmente otimista.A música de fato, teve efeito positivo durante seu sono. A leitura tinha sido ouvida com interesse, por mais que ele não demonstrasse. Eu sabia que ele me ouvia. Eu podia sentir que ele despertava lentamente de volta à vida nos últimos dois dias.Todo o processo levaria tempo. Tempo que nós tínhamos. Tempo que eu esperaria.No entanto, minha missão agora era outra. Eu me encontraria com Carmem para conversarmos mais sobre seu ex-marido, com o objetivo de poder conhecê-lo e ajudá-lo ainda mais.Eu decidira que o diário encontrado na caixa de fotografias de Andreas seria lido junto dele e para ele. Não teria sentindo algum ler escondida coisas que só diziam respeito a ele.A minha intenção era fazer com q