Após uma recepção familiar calorosa, era hora de tomar banho, trocar de roupa, desfazer as malas, distribuir os presentes e finalmente descansar, afinal voltar para a rotina pesada do trabalho exigia organização e planejamento.
O celular comercial que usava ao longo do ano fora deixado propositadamente em casa e desligado durante todo o tempo que estive fora. No entanto, ao ligá-lo, ele apitava sem interrupções, mostrando na tela trinta e cinco mensagens ao todo, de diversos pacientes particulares que aguardavam respostas sobre a minha disponibilidade de atendimento em domicílio, e embora o e-mail também não estivesse muito diferente disso, deparei-me com a caixa de entrada transbordando com assuntos pendentes do hospital.Dei uma olhada rápida e vi que os e-mails eram variados. Entre eles havia a planilha de escala mensal, sugestões de cursos e especializações, reuniões marcadas para receber os novos estagiários e assim por diante.Mesmo que ainda ninguém soubesse, oficialmente, do meu retorno, acabei deixando o telefone de lado e fui dar atenção ao que realmente importava - a minha saudosa família.Nos dias em que estive em Paris, padeci com o excesso de cálcio e magnésio na água do banho, o que resultou no ressecamento da minha pele e do meu cabelo, causando-me grande desconforto. Porém, esse não foi o único problema. Meu couro cabeludo ficou oleoso, apresentando um grande volume de caspas. Sem poder solucionar o problema que tanto me incomodava, precisei conformar-me com a situação, mesmo após conhecer outras brasileiras que também viajavam a lazer pela capital francesa relatarem os problemas com a água calcária da região.O meu cabelo estava tão ressecado, que a cor natural acobreada parecia agora oxidada, o que me causava uma certa prostração no quanto gastaria de tempo e dinheiro para restaurar os fios e devolver-lhe o brilho natural.Além disso, diante do espelho do banheiro certifiquei-me cuidadosamente do quanto meu rosto estava mais redondo, fato que havia ignorado cinco dias antes da viagem acabar, quando a calça folgada usada para excursões não entrava em meu corpo com tanta facilidade.Para não começar uma dieta em plena Paris, onde a experiência gastronômica é fantástica, ignorei os quilos a mais, embora o descaso durasse apenas ao chegar no Brasil e deparar-me com outra vestimenta do guarda-roupa que também não me cabia mais.Olhei para a balança ao lado da sanita e não hesitei, desejando que meu peso de antes, proporcional a minha altura de um metro e setenta, não estivesse tão acima do que eu gostaria. Foi então que vi doze quilos se distribuírem pelo meu corpo, principalmente na área do abdômen, causando-me uma onda de desânimo imediato, seguido por risadas involuntárias ao recordar-me das deliciosas comidas desfrutadas, trazendo-me, assim, um pouco de alívio e uma certa remissão na consciência.No primeiro dia, fui até o “Claus Estermman” conhecer o tradicional café da manhã Parisiense e devorei o “croque-monsieur”, um misto quente mais elaborado, com pão molhado no ovo, coberto com queijo e recheado com presunto.
O lugar aromático possuía um grande buffet repleto de geleias, waffles, omeletes, iogurtes, granolas, tortas, cafés especiais, além de sucos e chás naturais para todos os gostos e tipos de turistas exigentes.Não poderia deixar de comer os famosos “macarons”, que haviam virado febre nas confeitarias e padarias de todo Brasil. Um doce feito de merengue crocante por fora e macio por dentro que tinha me viciado de tal forma, ao ponto de querer deliciar-me quase todos os dias.Recordei-me da “tarte-tatin”, a torta de maçã feita ao contrário, que explodia em minha boca a cada garfada, fazendo com que eu salivasse involuntariamente.Nas refeições diárias através de mãos talentosas de chefs, eu estava sempre a explorar algo novo, comendo comidas maravilhosas e experimentando sobremesas inesquecíveis.Eu estava tão fascinada com a gastronomia local, que tirava fotos de todos os pratos que conhecia e as armazenava timidamente na galeria do celular sem a grande necessidade de postar nas redes sociais em tempo real como a maioria das pessoas ao meu redor fazia, em busca desesperada de likes, comentários e visualizações.Em uma das noites agradáveis do outono parisiense, tive a oportunidade de jantar no “Les Ombres”, restaurante com vista para a “Torre Eiffel”, com um menu delicioso e uma decoração incrivelmente linda.Durante o jantar, por indicação do chef, experimentei um prato chamado boeuf bourguignon, uma carne de vaca cozida no vinho tinto com legumes acompanhado por purê ou pão. Impossível resistir!Tentei lembrar dos demais pratos que haviam me levado a um alto grau de prazer e recordei-me imediatamente do “confit de canard”, que é a coxa de pato preparado com a própria gordura, acompanhado por batatas. Além do “clafoutis” que é a torta de cereja com uma massa leve de leite, açúcar e creme de farinha. Simplesmente sensacional!Foram tantos restaurantes e menus diferentes que eu já me sentia uma verdadeira conhecedora da culinária francesa.Brincadeiras à parte, somente quando os devaneios me deixaram em paz, saí do banheiro procurando meu celular pessoal dentro das bolsas e, por alguma razão, não o encontrava.Meu coração acelerou ao cogitar a ideia de tê-lo esquecido na França. Tentei pensar, calmamente, quando foi a última vez que o vi. Entretanto, quanto mais o procurava, menos sinal tinha de onde ele estivesse.Comecei a abrir mala por mala, e quando um certo pânico começava a invadir-me, toquei no aparelho debaixo da roupa suja.Sentei-me vagarosamente na cama, tomada por uma onda de alívio. Ao tentar ligá-lo, percebi que estava totalmente descarregado, colocando abaixo as esperanças de visualizar alguma mensagem de Marcus.Respirei fundo, afastando de mim qualquer vontade de saber sobre seu interesse ao meu retorno e, mesmo conectando o celular no carregador, saí do quarto sem esperar que o aparelho ligasse ou apitasse.Ainda com o cabelo molhado e enrolado na toalha, reuni a família em volta do sofá da sala para que pudesse distribuir os presentes que havia comprado e mostrar as fotos que minha Olympus E-410 havia registrado, enquanto beliscava a carne do churrasco e bebericava um gole de cerveja estupidamente gelada.Como não esperava ver as namoradas de meus primos Mateus e Pietro, resolvi presenteá-las na hora por mera educação, pois seria incapaz de agradar a todos, deixando-as de fora desse momento.Por ter contratado o passeio à vinícola “Château Pape Clément”, que produz vinhos desde o século XIII, a quinze quilômetros da charmosa região de Bordeaux, acabei por comprar garrafas de vinhos para meus tios, tias e minha mãe. Eram tantas safras, que quase enlouqueci ao escolhê-las.A paixão por vinhos em minha família atravessou gerações e começou quando meu bisavô materno ensinou ao único filho aprendiz como ser um enólogo prestigiado.As técnicas de engarrafamento, a transformação da uva para o vinho e a análise do solo, entre outras coisas, faziam o amor pela bebida exalar pelos poros de meu avô, que acabou se tornando um dos especialistas mais procurados da cidade durante a década de quarenta.Ao entregar as respectivas garrafas para cada um deles, vi os semblantes iluminarem-se com sorrisos de felicidade, admiração e gratidão, o que já valia cada centavo extrapolado no limite alto do cartão de crédito.Para minhas primas, comprei diversos perfumes franceses. Alguns iguais aos meus.Vi meus primos explodirem de alegria quando tirei de uma das malas as blusas oficiais dos times de futebol do “Paris Saint-Germain” e “Olympique de Marseille”. Fui imediatamente abraçada e beijada com fervor, o que provocou boas risadas de todos.— Tá bom. Chega, chega, por favor!Supliquei, gargalhando, quase sem conseguir me mexer cercada de meia dúzia de braços e abraços masculinos.Os chaveiros da “Torre Eiffel”, que havia comprado para os colegas de trabalho mais próximos, foram redirecionados para Daniela, namorada de Pietro, e Ana, namorada de Mateus, que adoraram a lembrança.— Não reparem, por favor.Justifiquei-me com os brindes singelos, embora as duas recebessem os chaveiros como se fossem o prêmio da loteria.Por fim, com os presentes finalmente entregues, os sorrisos estampados em cada rosto e a felicidade em cada canto da casa, pude aproveitar o dia de forma tranquila e harmoniosa, enquanto contava as histórias da comida, dos passeios, das compras, das pessoas e das experiências inesquecíveis que a viagem havia me proporcionado, mas, principalmente, como voltava para o Brasil transformada para sempre.Na semana seguinte, quando cheguei ao hospital para iniciar o plantão que duraria longas doze horas, não escondi a felicidade em rever alguns colegas, sendo recebida afetuosamente pelos mais próximos, aqueles com quem tinha mais afinidade e que consequentemente dividiriam o dia comigo.—Bom dia, Nicole. Seja bem-vinda. Aproveitou as férias? - perguntou uma das recepcionistas com um invejável bom humor às seis e quinze.Trocamos algumas palavras antes de direcionar-me ao vestiário. Apesar de ser cumprimentada mais três vezes por enfermeiras e técnicas que, assim como eu, chegavam para trabalhar, sabia que encontraria mais conhecidos pelos arredores do hospital.Olhando-me no espelho, estava pronta oficialmente para retornar à rotina de plantões, devidamente uniformizada de branco, com o cabelo preso em coque, as canetas esferográficas no bolso do jaleco, cujo tamanho era acima do j
O carro de Marcus era um Corolla, ano 2014, preto, quatro portas, teto solar, painel reluzente e bancos de couro que faziam com que qualquer pessoa se sentisse extremamente confortável ao ponto de querer residir no automóvel. O aroma interno refrescante quase fez com que eu esquecesse dos reais motivos de estar ali dentro.Em um clique, o DVD Player se abriu, colocando-se para fora do painel e ligando automaticamente, tocando o ritmo inconfundível da música “Think”, da banda inglesa “Kaleida”, deixando-me incrédula na coincidência que me cercava. Além da música ser uma das mais tocadas nas rádios, por causa do filme que estourou na bilheteria dos cinemas, há o ator Keanu Reeves, interpretando o personagem John Wick, e a música que era uma das minhas favoritas para malhar.A situação como um todo parecia demasiadamente estranha. Marcus e eu ouvíamos a mes
— Bom dia Nicole. Bem-vinda de volta. Ele disse animadamente como se fossemos melhores amigos ou como se tivesse realmente sentido minha falta. Percebi que as batidas de meu coração podiam ser ouvidas a quilômetros de distância. Contudo, não sorri e nem respondi, evitando qualquer tipo de amistosidade.Marcus levantou-se da cadeira cordialmente, vindo em minha direção, o que fez com que eu desse um passo para trás, indicando que não queria, em hipótese alguma, qualquer tipo de aproximação.— Meu plantão começa em dez minutos, seja breve por favor. - impus com firmeza e com a voz fria como gelo, fazendo-o recuar.O sorriso, que antes era de suposta animação ao rever-me, desapareceu completamente, deixando um silêncio quase constrangedor na sala.Marcus então voltou-se timidamente para mesa, apoiando-se no aparador e observand
Não podia ignorar a ansiedade que sentia, afinal conheceria os pais de Juliana, a esposa de Marcus.Era muita informação para assimilar, mas meu lado profissional não permitiria fraquejar, e passei a me concentrar no que realmente importava: os honorários oferecidos que pagariam minhas dívidas, permitindo uma nova viagem nas férias seguintes.Comecei a pensar que dentre tantas doenças psiquiátricas que assisti de perto, percebi que talvez a depressão atingisse um número cada vez mais alarmante de pacientes, enchendo as salas de espera dos consultórios psiquiátricos, assim como a dos psicólogos, e movimentando bilhões ao ano no mercado farmacêutico.Tudo começa com um desânimo singular seguido pela falta de memória e a iniciativa para tomar decisões que passam a não ser tão eficazes.As tarefas do dia a dia provoca
Às seis e dez, eu arrumava cuidadosamente as minhas roupas dentro do armário, para o começo da jornada de trinta e seis horas com meu novo paciente, quando Beatrice entrou no quarto procurando-me. Ao contrário de Carmem, que fez questão de sorrir gentilmente ao receber-me dias atrás ao contratar-me, a tia de Andreas não parecia muito amigável e nem muito receptiva.O cabelo platinado natural, a pele bem cuidada, a maquiagem perfeita já tão cedo, assim como os olhos azuis turquesa delineados, realçavam o corpo magro que ficava ainda mais esbelto com as roupas elegantes que trajava, disfarçando a idade aparente. Definitivamente, Beatrice parecia muito mais conservada do que todas as mulheres de sua idade.— Bom dia, Nicole. Por favor, me acompanhe. Determinou Beatrice com a voz fria e a postura firme, enquanto o português arranhava dentro do sotaque italiano.— Vo
Quando finalmente a segunda-feira raiava lá fora, fui embora.Precisava sair daquela casa e me recuperar do fim de semana exaustivo com Andreas e a família.Sentia-me incapaz de lidar com várias questões ao mesmo tempo: Marcus, a esposa, Andreas, Beatrice, dívidas, excesso de trabalho, falta de lazer e acúmulo de stress.Queria apenas correr para o único lugar em que me sentia aquecida, renovada e segura – a minha casa.Assim que cheguei em casa, o cheiro do café feito no coador de pano emanava pela cozinha, fazendo com que eu percebesse que não tinha colocado nada no estômago desde do dia anterior.Assim que abri a porta, mamãe se surpreendeu ao meu ver. Nós duas nunca sabíamos exatamente quando nos veríamos, uma vez que os horários intensos dos plantões não me deixavam saber ao certo quando voltaria para casa. — Minha filh
No plantão seguinte do hospital, felizmente não vi Marcus, e isso parecia não me afetar tanto quanto há dois dias atrás. Eu apenas focava ansiosamente no tempo, almejando que os dias passassem tão depressa para que pudesse rever Andreas.Quando enfim, cheguei à casa de Andreas, Eleonor, sempre muito solícita, esperou que fizesse minha refeição para rendê-la, e mesmo sabendo que em breve o meu paciente dormiria, a minha cabeça não deixava de borbulhar de ideias que precisavam aguardar o tempo propício para serem executadas.— Dona Beatrice está acordada? - perguntei para minha colega de trabalho que sorriu gentilmente pra mim.— Sim, no escritório. Você quer falar com ela antes de me render?— Ah, não, querida. Tudo bem. O que tenho para falar com ela pode esperar. Vá para casa, descansar, e deixe que eu assumo a part
Além dos livros que avistei nas estantes, havia outra repleta de discos de vinil. Eu só tinha visto discos assim durante a minha infância, e depois, por alguma razão, eles se tornaram acessíveis somente para colecionadores.Será que Beatrice era uma colecionadora? Dei uma rápida olhada e deduzi que eles giravam em torno de trezentos a dois mil discos que, como os livros, estavam todos organizados, plastificados e separados por gênero musical. Era realmente impressionante.Mas não eram somente os discos e os livros que preenchiam o aposento. Na verdade, o escritório, que mais parecia uma biblioteca, também tinha uma estante vasta de CDs de todos os tipos de cantores.Essa estante ficava ao lado de uma curiosa estátua da deusa Vênus, que media mais ou menos um metro e meio de altura.A concha em que ela se apoiava de pé, com o corpo totalmente nu, apenas tendo o seu longo