Capítulo Dois.

  Morcego Infernal.

  Na beira do açude, tão grande quanto um pequeno lago, João Vitor estava sentado na grama. Estava escuro e ninguém podia vê-lo ali. Algo estava aceso em sua boca, uma espécie de cigarro. Ele estava fumando um preparo com pozinho verde semelhante a folhas trituradas.

   Seu olhar era deprimente, frio e profundo. Seus pensamentos o levavam para fora da realidade, ele pensava em seu pai.

   João era do tipo de garoto, que todas as garotas queriam, mas não era perfeito. Ninguém era perfeito. Ele tinha problemas com o pai, brigavam e discutiam muito e sempre para se livrar do problema, JV saia pelas ruas na calada da noite. Morava em um lugar desprivilegiado, uma comunidade da periferia da cidade. Conheceu gente que não devia que o incentivaram a rebeldia e talvez por conta disso caiu no mundo das drogas.

   Algo se moveu na água na frente dele, João se atentou ao que está acontecendo. Poderia ser um peixe ou um inseto que caiu no açude, não tinha motivo para se alarmar.

   Não acreditava no que via. Junto do levantar das águas, uma criatura – um monstro de pele vermelha e de olhos roxos brilhantes, com aparência semi-humana – emergiu de dentro do açude, algas se entrelaçavam no corpo nu do ser demoníaco, deixando marcas por onde se arrastavam. Na boca do monstro era visível dentes pontiagudos, dez vezes mais finos do que agulhas e mil vezes mais mortais do que lâminas. Na ponta de seus dedos, nasciam longas unhas negras que refletiam a luz da lua.

   João, assustado caiu para trás, enquanto a criatura continua a se aproximar dele. O monstro chegou perto o bastante, estava praticamente sobre o corpo de JV, quando uma gosma negra caiu da boca da criatura sobre a pele do garoto, queimando como óleo quente.

   O demônio produziu um som no fundo da garganta. JV sentia o hálito azedo e ácido em seu rosto, machucando suas vistas.

   A criatura gritou e em seguida o atacou, fazendo inúmeros cortes no abdômen sarado do jovem atleta. O garoto gritou, mas ninguém o ouviu.

   O monstro abriu a boca, que ocupava mais da metade do rosto avermelhado, sugando uma fumaça preta da carcaça de João.

   A criatura deu um tempo com seu lanchinho. Ela se levantou e olhou para todos os lados, como se estivesse ouvido algo e se desfez em uma fumaça vermelha, que sobrevoou para longe dali.

***

   Brenda olhava para Douglas enquanto ele ajudava o caseiro a tirar o leite. Os músculos do braços bem definidos e com as veias saltando. Sua camiseta grudada ao corpo por conta do suor deixava a mostra o abdômen definido do garoto.

   – Fecha a boca senão vai babar – disse Amanda, rindo da cara de sua amiga.

   – Ãh? – Brenda se perdeu em seus pensamentos. – Aí, cala a boca, garota.

   Amanda e Michelle começaram a rir.

   – Será que ele beija bem? – perguntou Amanda para ninguém em especial – Nossa que corpo. – Ela sorriu abobada. – Mano, chega a dar um fogo.

   – Cala a boca! – respondeu Brenda.

   – Hum, tá com ciúmes? – provocou, a garota loira.

   – Credo meninas, ele é meu primo – disse Michelle, às olhando horrorizada.

   – Melhor para Brenda, ai vocês podem ser primas, além de melhores amigas. Fora que, né, que gostoso – disse Amanda, rindo descontroladamente.

   Brenda, a lançou um olhar sério.

   – O quê foi? – A garota engraçadinha riu. – Eu, hein.

   Elas se calaram por alguns momentos, deixando tudo em um silêncio relaxante, em que somente o barulho do leite caindo no balde podia ser ouvido.

   Pelo menos até que um estalo contra a madeira pegou todos de surpresa, os assustando.

   Uma das vaca (essa era de raça mestiça entre nelore e girolando, chifruda e parecia muito forte), certamente brava e assustada acabou soltando as amarras das patas traseiras para dar um coice, que por sorte não pegou ninguém.

   – Merda! – exclamou Douglas, após derramar leite em sua camiseta.

   – Quieta Chimita! – gritou o homem com a vaca – Estranho, ela não é de dar coice.

   – Deve ter se assustado ou me estranhado – deduziu Douglas.

   O rapaz tirou a peça de roupa e foi até pia se limpar. Amanda vendo isso não perdeu a oportunidade de provocar sua amiga.

   – Olha lá, que delícia.

   Brenda revirou os olhos.

   Realmente o garoto era lindo, tinha o tronco malhado (da cor tentadora do pecado), fortes braços e o rosto geometricamente bonito.

   – Meninas! – gritou Michelle, olhando para o mato – Olhem aquilo.

   A garota reparou e percebeu o que tinha assustado a vaca. Não foi Douglas, nem nenhum deles ali presentes, mas sim algo que ela viu bem mais distante. Algo que se Michelle não visse com os próprios olhos, certamente não acreditaria.

   – Pois é, que homão da porra – respondeu Amanda, fazendo mais uma de suas piadinhas.

   – O quê... ? – Michelle não acreditava no que via. Ignorando completamente as palavras imbecis de Amanda.

   – Seu primo... – disse Brenda, explicando a piada sem graça da outra garota.

   – Não, credo, que nojo. Eu to falando daquilo – respondeu Michelle, apontando para uma árvore em especial.

   No topo de uma árvore, antiga e camuflada em meio as outras, a sombra de uma criatura era visível. Parecia uma espécie de morcego-homem, estava agachado os observando.

   – Meu Deus... – exclamou Brenda ao olhar para a tal criatura.

   As meninas gritaram, assustando as vacas e inclusive os ordenadores. Num pulo o caseiro foi até elas dar uma olhada no porquê de tanta gritaria, seguido de Douglas.

   – Que se seis tão gritando, suas burra! – gritou o homem nervoso. Afinal, elas assustaram as vacas que agora não iriam parar quietas.

   – Olha ali, tem um... Sei lá o que! – explicou Michelle.

   O homem se esticou tentando encontrar algo diferente na paisagem, que seria motivo de fazer escândalo.

   – Mas, não tem nada ali.

   As garotas se entreolharam e depois encaram o caseiro.

   – Como? – questionou Mi.

   A garota olhou para o local onde viu a sombra da criatura, não tinha nada além de galhos.

   – Eu não entendo – disse ela.

   Brenda estava encolhida no chão, com os braços em torno das pernas. Provavelmente com medo.

   – Tinha um morcego ali. – Amanda se pronunciou.

   – Como você mesma disse é um morcego – explicou Douglas – Bem-vindas ao sítio.

***

   João Vitor acordou assustado, estava deitado na grama na beira do açude com a água gelada batendo em seus pés.

   – Ai, que dor de cabeça. – Ele se sentou. – Que diabos aconteceu?

   Ele olhou para a água parada do açude, tão calma que facilmente juntaria mosquitos da dengue. JV se virou, olhando ao redor procurando pela coisa que o atacou, mas tudo estava calmo e silencioso. Então, começou a procurar pelo seu pacotinho de ervas na grama, porém não estava mais ali. Ele levantou e volta para a casa da fazenda, um pouco tonto e chapado.

***

   O pessoal voltou para dentro da casa. Matheus, já havia ido dormir. Sua irmã foi até o quarto e cobriu o garoto, lhe dando um beijo na testa ao sussurrar:

   – Sonha com os anjos, maninho. – E saiu de fininho.

   Michelle era o tipo de irmã que não assumia que gostava do irmão, então, na frente dos outros ela o tratava mal. Mas, ela seria capaz de tudo para salvar o caçula caso entrasse em perigo.

   Antes de sair do quarto, ela olhou para Matheus pensativa. A coisa na árvore ainda estava presa em sua cabeça, tomando posse de todos seus pensamentos, todas suas ações e quando ousasse fechar os olhos, a garota via a mesma cena repetidas vezes, como uma lembrança infernal que a atentaria para sempre.

   Na sala, todos estavam jantando e conversando sobre assuntos aleatórios - desde da última música da Ariana Grande (do qual Amanda era fã) até a colocação do Corinthians (time do coração de Cezar) na libertadores. Michelle entrou na sala, ainda apavorada com o que tinha visto.

   "Como será que eles estão ali, tão de boa? Será que não perceberam o bicho esquisito na árvore?"

   Pensava ela completamente indignada, até que sem perceber soltou em voz alta:

   – Que merda, mano. Vocês não viram a porra do bicho, lá, não?

   – Ai, Mi, deve ser nada – disse Amanda.

   Michelle, a encarou com uma sobrancelha erguida.

   – Não, pior que eu acho difícil conseguir dormir hoje, digo depois do que vimos – falou Brenda.

   – Como ele era? – perguntou o caseiro, curioso.

   Um garoto invadiu a sala, respirando apreensivo e se jogou no sofá. Ele estava sem camisa e com suas calças cortadas.

   – Que foi que aconteceu? – perguntou Cezar.

   O garoto não conseguia falar, apenas respirava rapidamente.

   – Onde você estava? – Michelle, entregou um copo de água ao rapaz.

   JV bebeu o líquido rapidamente.

   – Vai com calma – sorriu Douglas – Nossa, até parece que viu um fantasma.

   – Pelo amor de Deus, diga que não viu nada – disse Brenda, se encolhendo novamente.

   – O quê? Não – respondeu o garoto – Eu só estava ... Pensando.

   – Você tá bem? – perguntou, Mi.

   – Sim, eu acho.

   Michelle, novamente começou a viajar em seus pensamentos.

   "Será que ele está se drogando de novo? Eu disse para ele ir numa psicóloga"

   E foi interrompida por JV.

   – Por que vocês perguntaram se eu vi um fantasma?

   O máximo de informações possíveis seria ótimo para superar o acontecido.

   – As meninas viram um bicho, sei lá, numa árvore – respondeu Douglas.

   – Um bicho? Que porra de bicho?

   – Um ser meio morcego, meio homem – Mi lhe respondeu apressadamente.

   – Era vermelho? – perguntou o garoto.

   – O quê? Não. – A menina pensou um pouco. – Acredito que devia ser azul. Sei lá, não dava para ver. No que isso importa?

   João não queria contar nada para ninguém, pelo menos até ter certeza se aquilo realmente aconteceu.

   – Você disse azul? – indagou o caseiro.

   – Sim – respondeu a garota.

   – Eu sei quem é e o que é – falou o caseiro, olhando para o nada, com uma voz fria e distante.

   Todos se entreolham e encaram o caseiro, se perguntando interiormente "Como?".

   – É uma história muito longa e se vocês quiserem eu posso contar a vocês. – O caseiro cortou o silêncio.

   "O máximo de informações."

   Pensou o menino agora não tão assustado.

   – Bem, a temperatura tá okay lá fora. O que vocês acham de nós sentarmos lá e o Cezar nós contar a tão famosa história. – sugeriu JV.

   – Por nós, tudo bem – falaram as meninas.

   – Ok. Então vou pegar umas coisas e fazer uma fogueira – disse Douglas.

   – Eu não sei se é uma boa ideia, sabe com aquela criatura andando ou voando por aí – falou Brenda meio em pânico.

   O que era estranho, porque até agora ela parecia bem, talvez um pouco assustada, mas não o suficiente para se esconder debaixo da cama. Se me entendem! Além é claro de ser do tipo de pessoa que não acreditava no sobrenatural e suas esquisitices.

   – Nada a ver, Brenda, você nem acredita em demônios – debochou Amanda.

   Michelle foi até o namorado, sentou em seu colo, passando a mão sobre o pescoço do jovem, e o abraçou num abraço bem apertado, tão apertado que a garota sentia as batidas do coração do rapaz contra seus peitos.

   – Oxi, o que eu fiz para receber um abraço? Digo, assim do nada.

   A menina ainda não soltou João, que passou seus braços sobre as costas da pequena jovem mulher, a apertando contra si.

   – Você está bem mesmo? – Ela sussurrou nos ouvidos do namorado. – Sério pode confiar em mim, eu sou sua namorada.

   Eles se soltaram, mas permanecem ali juntos nesse momento caloroso.

   – Eu tô, sério. – Ele pegou nas delicadas mãos da garota e as beijou suavemente.

   Ela se levantou, ele faz o mesmo alguns segundos depois, mas continuaram de mãos dadas.

   – Nenhum problema com seu pai? – questionou Michelle.

   – Não, porque estaria com problemas com ele? Logo agora que começou a ir no grupo de apoio a alcoólatras?

   O pai de João era alcoólatra, bebia e gastava todo dinheiro em jogos. Quando voltava para casa, batia na mulher e nos filhos. Por isso, como já disse, JV era meio atordoado.

   O garoto a puxou num abraço, fechando seus braços contra o corpo magro de Michelle.

   "Será que eu conto a ela o que me aconteceu no lago? Não. Eu devo ter visto coisas por causa da maconha, ela se chatearia com isso. Mas, elas viram um bicho, sei lá. E agora, meu Deus o que eu faço?"

   Pensou ele.

   – Que bom. – Ela interrompeu os pensamentos do namorado. – Você sabe que eu sempre quis seu bem, né?

   Eles se soltaram, dessa vez definitivamente. Um ponto de sorte para Brenda que via toda essa melação, fazendo uma cara de decoração, no fundo.

   – Sim, eu sei – respondeu ele – Por isso te amo.

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