Ivana se tornou meu refúgio. Quando a tristeza queria me engolir, era nela que eu pensava. Ela me fazia café quando eu não saía da cama. Colocava música para tocar e me forçava a levantar, mesmo que fosse só para brigar com ela. Às vezes, ela dizia: “Você é como uma casa cheia de fantasmas… mas bonita.” E eu ria. Porque era verdade.Ela começou a compartilhar comigo também. Aos poucos. Fragmentos da vida deixada, de um amor impossível, de uma culpa que não dizia em voz alta. Era como se fôssemos duas metades despedaçadas tentando fazer sentido no mesmo caos.Foi numa noite de inverno, com neve espessa cobrindo as janelas da galeria, que contei a ela quem eu realmente era. Disse que meu nome não era Pergan. Que eu havia morrido para o mundo, mas não por escolha. Contei sobre Catarina. Sobre o incêndio. Sobre meu pai. Sobre Alexandre.Ela não me julgou. Apenas colocou a mão sobre a minha. “Você viveu o inferno,” disse. “Mas voltou.”Naquela mesma noite, compartilhei uma ideia que m
Mas minha mente estava longe dali. Uma movimentação à minha esquerda me fez virar o rosto. Foi quando vi.Na parte de trás da viatura, sentada, algemada, uma mulher. Meu coração parou.Por um instante, o mundo perdeu o som. Tudo se tornou silêncio.Era ela. Catarina.A mulher que destruiu minha vida. A mulher que me fez desejar a morte e, ao mesmo tempo, lutar por ela. Mas ainda era ela. O mesmo rosto — embora um pouco mais magro. Os olhos ainda tinham aquela luz que me despedaçava. Meus pés se colaram ao chão. Meu estômago revirou. Senti como se estivesse diante de um fantasma. Um fantasma que, por ironia do destino, estava tão viva quanto eu.E ela me viu.Seus olhos se arregalaram, e por um segundo, toda a dor do passado retornou com violência. Eu vi a dúvida nela. Vi o susto. Vi a certeza. Ela me reconheceu.E isso foi demais para mim. Senti as pernas falharem. Me apoiei no corrimão da escadaria. O ar me faltava. Ivana se aproximou às pressas, confusa.— Tristan?! — ela
Eu soube que ela havia chegado no exato instante em que o ar da casa mudou. Era algo sutil, mas inconfundível — como uma memória entrando pela fresta de uma janela. O tipo de silêncio que anuncia o inevitável. Eu não precisava vê-la para saber. A presença dela era uma ferida antiga, ainda pulsante, e bastava que ela respirasse sob o mesmo teto que eu para que meu corpo todo entrasse em alerta.Estava no andar de cima, refugiado no ateliê, longe o suficiente para não cruzar com ela, mas perto demais para não sentir o efeito da sua chegada. Eu me prometi que não desceria. Não depois do que aconteceu entre nós na boate.“ eu preferia que você tivesse morrido de verdade.”Ela disse aquilo com uma frieza tão precisa, tão afiada, que por um momento achei que meu coração tivesse parado. Não era uma frase dita no calor do momento — era uma conclusão, como se ela realmente tivesse pensado sobre aquilo. E embora eu não quisesse admitir, aquilo me atravessou. Doeu de um jeito que nem o fogo c
Pintada com uma delicadeza feroz. Os traços reconhecíveis, o olhar capturado com precisão. É estranho se ver assim, através dos olhos de alguém que te amou. E talvez tenha odiado com igual intensidade. Meu peito aperta. Sinto algo se remexer dentro de mim — saudade, tristeza, raiva, confusão. Tudo ao mesmo tempo.Levo a mão ao peito, tentando conter aquela dor silenciosa que insiste em me lembrar do que perdemos. Meus olhos se enchem de lágrimas. Eu queria não sentir. Queria ser fria, calculista, profissional. Mas aqui dentro, nesta sala cheia de fantasmas, não tem máscara que resista.E então, sinto.Um arrepio.Como se alguém me observasse.Viro o rosto rapidamente, com o coração aos pulos. Olho para trás. Para os cantos. Para a porta entreaberta.Nada.Mas eu senti. Será que era ele? Tristan?Meus olhos ainda ardem quando tento me convencer de que é só impressão. Meu cérebro pregando peças, confundido pelo cheiro, pelo ambiente, pela lembrança viva que aquele quadro traz.—
Eu tentei não parecer deslocada quando entrei naquele shopping. Sabia exatamente onde estava — já tinha vindo ali antes, várias vezes, na verdade. Stevan adorava me mimar com coisas caras, restaurantes finos, vitrines que brilhavam mais do que a minha vontade de estar ali com ele. Mas eu nunca me senti confortável com esse tipo de coisa. Depois que percebi que todos aqueles presentes tinham segundas intenções — uma forma disfarçada de posse —, cortei qualquer vínculo que tivesse cheiro de luxo em nome de alguém. Inclusive com ele.Mesmo assim, eu estava ali de novo. Andando entre vitrines iluminadas, paredes de vidro, manequins impecáveis, gente apressada e perfume caro no ar. Meu estômago revirava. Talvez fosse nervosismo. Ou só saudade de uma vida que nunca me pertenceu, mas que por um tempo tentei convencer a mim mesma que era minha.E então a vi. Ivana.Ela me viu antes que eu pudesse fingir estar olhando outra coisa. O rosto dela se iluminou com um sorriso espontâneo, tão genu
— Não acho que seu amigo gostaria de me ver lá — respondi, baixando o tom. — Já estamos há uma semana nos esbarrando, e ele nem sequer aparece. Eu sei que ele está em casa, Ivana. Ele só não suporta me ver.Ela não tentou negar. Seus olhos baixaram um pouco. Parecia triste também.— Eu sinto muito por isso — ela disse, sincera. — Eu prometo que ele é um bom homem. Não que isso importe agora…Ficamos em silêncio por alguns segundos. Ela foi experimentar o vestido. Depois, mais três lojas, mais algumas risadas contidas. E bolsas. Muitas bolsas. Apesar de tudo, o encontro não foi um desastre. Pelo contrário. Foi… tranquilo. E isso me assustou.Porque Ivana não era o que eu imaginei. Não era aquela figura inalcançável, perfeita, que eu tanto temi. Ela era só uma mulher. Uma mulher sozinha, doce, tentando ser feliz. E, talvez, tentando ter uma amiga. Quando estávamos indo embora, me despedi com um sorriso cansado.— Então é isso, Ivana. Foi bom te encontrar. Obrigada pelo convite. M
Havia algo diferente no meu reflexo. Uma mulher que ainda existia por trás das dores, das mentiras, das perdas. Alguém que queria… mais. Ou talvez só quisesse sobreviver.Saí em silêncio.*O clube Para o Seu Prazer.com era tão elegante por fora quanto provocante por dentro. A fachada discreta escondia o que se passava lá dentro como um segredo sussurrado. Não havia fila. Só um segurança alto com olhos atentos.— Catarina Monteiro? — ele perguntou, consultando uma lista.Assenti, surpresa.Ele me entregou uma máscara preta de cetim, delicada e refinada, com fitas para amarrar atrás da cabeça.— Pode entrar. Bem-vinda.Vesti a máscara ali mesmo, com dedos trêmulos. Era como atravessar um limiar invisível. Como vestir uma nova pele. Um novo papel.O corredor de entrada era escuro, iluminado apenas por luzes vermelhas e douradas que dançavam pelas paredes. O som da música suave ia crescendo aos poucos, até que as portas se abriram.E então… eu entrei em outro mundo.O salão p
Ela me puxava para perto, tocava minha mão, ria comigo, me fazia perguntas simples, íntimas. E eu respondia. Aos poucos, sentia minhas amarras afrouxando. O medo que me acompanhava como uma sombra desde que entrei naquela boate começava a se dissolver, se misturar ao calor do álcool e ao som das batidas graves que tomavam conta do meu corpo.Mas ainda assim… às vezes, entre uma conversa e outra, eu lançava um olhar rápido em direção ao trono vazio. Ainda esperava por ele. Mesmo sem querer admitir.Ivana percebeu isso mais de uma vez. E toda vez que isso acontecia, ela apertava minha mão, como quem dissesse: “ele não importa agora”. E talvez, só talvez… naquela noite, ela estivesse certa.Em algum momento, algo mudou. As luzes pareciam mais quentes, os corpos mais próximos, os olhares mais demorados. As pessoas estavam se dissipando da pista principal como fumaça. Não foi imediato. Foi quase imperceptível, como uma mudança de estação. Como quando o ar fica mais denso antes da tempesta