Alexandre ficou em silêncio por alguns segundos, olhando o líquido escuro na própria xícara de chá como se estivesse buscando coragem ali dentro. O relógio na parede fazia um tique irritante, o tipo de som que só se destaca quando o mundo ao redor está em suspense.— Aquela noite… do incêndio — ele começou, a voz mais grave que o normal, com aquele sotaque carregado, como se cada palavra fosse pesada demais para sair. — Eu tive ajuda. Do meu assistente. Precisava encontrar você.Eu franzi o cenho, confuso.— Você me encontrou como?— Rastreamento… — ele fez um gesto vago com a mão. — Celular. Ainda dava sinal. Muito fraco, mas… estava ali. Na floresta.Eu engoli em seco. Não lembrava exatamente como tinha caído. A dor, o desespero, a fumaça… tudo era uma névoa grossa na minha mente. Mas Alexandre continuou:— Você estava muito longe do fogo. Quilômetros. Era como… como se seu corpo soubesse que precisava fugir. Que precisava sobreviver.Fechei os olhos por um instante, tenta
Durante meses, repetir esse nome foi meu único remédio. Nos dias em que meu corpo ardia da fisioterapia, nos dias em que minha garganta parecia ainda queimada pela fumaça, nos dias em que tudo que eu queria era morrer de novo — era ela que me segurava. O nome. O olhar. O beijo. A esperança de voltar.Mas agora, eu estava de volta ao Brasil. Alexandre organizou tudo com um cuidado quase obsessivo. Voamos discretamente, nos hospedamos em um hotel de luxo na zona sul do Rio, ele me deu um celular novo — que parecia mais uma peça de ficção científica do que qualquer coisa que eu soubesse usar — e prometeu descobrir onde ela estava.Mas Catarina era um fantasma tanto quanto eu. Número havia sido desativado há meses. Nenhuma rede social ativa. Nada.Foi quando Alexandre sugeriu tentar Sheila. A tia.Eu quase disse não. Eu lembrava de tudo que Catarina me contara daquela mulher — negligente, interesseira, falsa. Mas não tínhamos escolha. Alexandre foi sozinho. Não queria me expor. Eu f
É estranho como o tempo passa mesmo quando a gente não quer. Mesmo quando ele pesa no peito, como se cada minuto fosse um lembrete de tudo que se perdeu. Nos primeiros meses depois que vi Catarina naquele maldito apartamento com aquele homem… eu simplesmente deixei de existir. De verdade, por dentro.Alexandre tentava me animar, sempre com palavras gentis, com um olhar de quem compreende a dor mesmo sem ter que dizer muita coisa. Ele me tratava como um filho. Um filho silencioso, triste, que quase nunca saía do quarto. E eu… eu me sentia um estorvo. Um peso jogado em cima da generosidade de alguém que não merecia carregar os escombros de um garoto partido.Passei semanas inteiras sem querer sair da cama. Às vezes ele deixava uma bandeja de comida no quarto, e quando eu finalmente tinha forças pra levantar, ela já estava fria. Ainda assim, Alexandre nunca reclamou. Nunca me cobrou. Nunca me olhou com pena — apenas com paciência. Com cuidado. Como se soubesse que a cura não viria no t
Ivana se tornou meu refúgio. Quando a tristeza queria me engolir, era nela que eu pensava. Ela me fazia café quando eu não saía da cama. Colocava música para tocar e me forçava a levantar, mesmo que fosse só para brigar com ela. Às vezes, ela dizia: “Você é como uma casa cheia de fantasmas… mas bonita.” E eu ria. Porque era verdade.Ela começou a compartilhar comigo também. Aos poucos. Fragmentos da vida deixada, de um amor impossível, de uma culpa que não dizia em voz alta. Era como se fôssemos duas metades despedaçadas tentando fazer sentido no mesmo caos.Foi numa noite de inverno, com neve espessa cobrindo as janelas da galeria, que contei a ela quem eu realmente era. Disse que meu nome não era Pergan. Que eu havia morrido para o mundo, mas não por escolha. Contei sobre Catarina. Sobre o incêndio. Sobre meu pai. Sobre Alexandre.Ela não me julgou. Apenas colocou a mão sobre a minha. “Você viveu o inferno,” disse. “Mas voltou.”Naquela mesma noite, compartilhei uma ideia que m
Mas minha mente estava longe dali. Uma movimentação à minha esquerda me fez virar o rosto. Foi quando vi.Na parte de trás da viatura, sentada, algemada, uma mulher. Meu coração parou.Por um instante, o mundo perdeu o som. Tudo se tornou silêncio.Era ela. Catarina.A mulher que destruiu minha vida. A mulher que me fez desejar a morte e, ao mesmo tempo, lutar por ela. Mas ainda era ela. O mesmo rosto — embora um pouco mais magro. Os olhos ainda tinham aquela luz que me despedaçava. Meus pés se colaram ao chão. Meu estômago revirou. Senti como se estivesse diante de um fantasma. Um fantasma que, por ironia do destino, estava tão viva quanto eu.E ela me viu.Seus olhos se arregalaram, e por um segundo, toda a dor do passado retornou com violência. Eu vi a dúvida nela. Vi o susto. Vi a certeza. Ela me reconheceu.E isso foi demais para mim. Senti as pernas falharem. Me apoiei no corrimão da escadaria. O ar me faltava. Ivana se aproximou às pressas, confusa.— Tristan?! — ela
Eu soube que ela havia chegado no exato instante em que o ar da casa mudou. Era algo sutil, mas inconfundível — como uma memória entrando pela fresta de uma janela. O tipo de silêncio que anuncia o inevitável. Eu não precisava vê-la para saber. A presença dela era uma ferida antiga, ainda pulsante, e bastava que ela respirasse sob o mesmo teto que eu para que meu corpo todo entrasse em alerta.Estava no andar de cima, refugiado no ateliê, longe o suficiente para não cruzar com ela, mas perto demais para não sentir o efeito da sua chegada. Eu me prometi que não desceria. Não depois do que aconteceu entre nós na boate.“ eu preferia que você tivesse morrido de verdade.”Ela disse aquilo com uma frieza tão precisa, tão afiada, que por um momento achei que meu coração tivesse parado. Não era uma frase dita no calor do momento — era uma conclusão, como se ela realmente tivesse pensado sobre aquilo. E embora eu não quisesse admitir, aquilo me atravessou. Doeu de um jeito que nem o fogo c
Pintada com uma delicadeza feroz. Os traços reconhecíveis, o olhar capturado com precisão. É estranho se ver assim, através dos olhos de alguém que te amou. E talvez tenha odiado com igual intensidade. Meu peito aperta. Sinto algo se remexer dentro de mim — saudade, tristeza, raiva, confusão. Tudo ao mesmo tempo.Levo a mão ao peito, tentando conter aquela dor silenciosa que insiste em me lembrar do que perdemos. Meus olhos se enchem de lágrimas. Eu queria não sentir. Queria ser fria, calculista, profissional. Mas aqui dentro, nesta sala cheia de fantasmas, não tem máscara que resista.E então, sinto.Um arrepio.Como se alguém me observasse.Viro o rosto rapidamente, com o coração aos pulos. Olho para trás. Para os cantos. Para a porta entreaberta.Nada.Mas eu senti. Será que era ele? Tristan?Meus olhos ainda ardem quando tento me convencer de que é só impressão. Meu cérebro pregando peças, confundido pelo cheiro, pelo ambiente, pela lembrança viva que aquele quadro traz.—
Eu tentei não parecer deslocada quando entrei naquele shopping. Sabia exatamente onde estava — já tinha vindo ali antes, várias vezes, na verdade. Stevan adorava me mimar com coisas caras, restaurantes finos, vitrines que brilhavam mais do que a minha vontade de estar ali com ele. Mas eu nunca me senti confortável com esse tipo de coisa. Depois que percebi que todos aqueles presentes tinham segundas intenções — uma forma disfarçada de posse —, cortei qualquer vínculo que tivesse cheiro de luxo em nome de alguém. Inclusive com ele.Mesmo assim, eu estava ali de novo. Andando entre vitrines iluminadas, paredes de vidro, manequins impecáveis, gente apressada e perfume caro no ar. Meu estômago revirava. Talvez fosse nervosismo. Ou só saudade de uma vida que nunca me pertenceu, mas que por um tempo tentei convencer a mim mesma que era minha.E então a vi. Ivana.Ela me viu antes que eu pudesse fingir estar olhando outra coisa. O rosto dela se iluminou com um sorriso espontâneo, tão genu