I

Minha rotina não era mais estar só no hospital, mesmo que, na maior parte do tempo, estivesse, pois ali poderia ficar com as pessoas mais incríveis que eu já havia conhecido, e até que tinha meus dias mais divertidos por lá.

Como meus resultados haviam progredido o suficiente, minha médica concluiu que eu ficar em casa poderia ser uma boa ideia. Estar perto de minha mãe e poder estar em um lugar que, realmente, eu chamaria de lar, com certeza me faria um bem maior, considerando que ficar internada e sob vigia não seria mais tão necessário. E nisso, eu já tinha completado seis meses sem ter que lidar com o câncer, mas, ainda assim, fazia exames periódicos para que não houvessem riscos inesperados e eu voltasse à estaca zero. Entretanto, como mencionei, às vezes eu também ia ao hospital apenas para passar algumas noites com meus melhores amigos, principalmente Troyan, que quase nunca estava em sua casa, e quando estava, tirava um tempo somente para a família.

Naquele exato momento, encontrava-me apoiada no balcão de entrada do hospital, pronta para pegar mais um dos resultados de meus exames e aproveitar meu fim de semana com Ally, fingindo que levávamos uma vida perfeita e típica de duas amigas adultas que não se conheceram na pior das piores situações.

—  Blaise e Ally, as duas garotas mais sortudas, que conseguiram um fim de semana juntas longe deste lugar — Troyan cantarolou ao passar por nós.

— Você só está com raiva porque não vai poder passar esse tempo com a gente e saber das fofocas em tempo real — brincou Ally, com um oscilar de movimentos nos ombros.

Nós três tínhamos uma boa amizade, só que eu sabia que Ally não via Troyan apenas desse modo. Desde quando pisei meus pés pela primeira vez no hospital, eles já o frequentavam e foram os primeiros e únicos a me acolherem com seus humores sobre o câncer e os proveitos que se pode tirar dele, sem, de forma alguma, terem pouca noção e senso, mas sempre sabendo os limites de suas brincadeiras. E essa foi uma das coisas que mais me ajudou a aguentar firme depois da morte do meu pai. Assim, eu não me sentia tão sozinha e, consequentemente, ajudava a minha mãe a não se sentir tanto na obrigação de preencher meu tempo vazio.

Troyan era alto, tinha a pele escura, o cabelo raspado e os olhos pretos como carvão, que pareciam sorrir para você sempre que estavam fixos em seu rosto. Automaticamente, por conta de seu estado, ele estava bem magro e debilitado, entretanto ainda era a pessoa mais forte que eu conhecia. Ele era o tipo de pessoa que aguentava muitas coisas e nunca reclamava delas para ninguém, mas que fazia questão de estar lá para você sempre que precisasse dele.

Ally já era um pouco diferente. Ao contrário de nós dois, era bem vaidosa e cuidava de todos os detalhes que poderiam estar a seu favor. Seus olhos azuis como o céu dançavam em seu rosto quando viam Troyan se aproximando dela ou apenas quando alguém ousava citar seu nome. O seu cabelo já havia crescido o bastante para que ela o envolvesse com penteados delicados. Nos cachos ruivos se formavam tranças com botões de rosas nas pontas. Ela parecia ter saído diretamente de uma revista em quadrinhos.

Ally também sempre fora uma ótima amiga. Dizíamos que era como se dividíssemos o mesmo neurônio. Ela se mostrava ser uma amiga fiel e disposta a tudo que fosse preciso para que eu e Troyan ficássemos bem. Mas, às vezes, o fato de ela pensar demais nos outros fazia com que ela pensasse menos em si mesma, e isso, em muitos casos, não a fazia bem.

—  Às vezes a amizade de vocês parece tóxica — intrometeu-se a nossa enfermeira.

E ressalto: a melhor enfermeira.

—  Só fazemos piadas, Bárbara. — Abaixei-me para amarrar os cadarços dos meus sapatos. —  Sabe se meu irmão já está aqui? Eu disse que ligaria se precisasse que ele viesse me buscar, mas ele nunca me espera realmente ligar.

—  Na verdade, não será necessário. — Sorriu Ally, mostrando-me a pontinha de sua língua ao olhar em minha direção.

Ajeitei-me, levantando-me e ficando com a postura ereta. Ally me puxou cuidadosamente pelo braço, despedindo-se de Troyan e Bárbara, e nos direcionou pelo estacionamento, até que chegamos em frente a um Toyota Prius, preto. Ela sorriu de uma forma estranha, não tão animada quanto segundos atrás, pegando de seu bolso uma chave com um pingente de ursinho — a chave do carro — e me fazendo um sinal para que eu entrasse pela porta do passageiro. Começou a falar enquanto se movia para o banco do motorista.

— Você não vai nem acreditar! — Respirou fundo e me encarou. — Eu não vou mais ficar internada. Tive bons resultados, e agora poderei voltar a ficar em casa, assim como você, desde que eu tome meus remédios de forma certa.

—  Ally, eu estou muito feliz por você. — Óbvio que era verdadeira a minha felicidade por ela. — Não vai mais precisar fazer o transplante?

—  Bárbara disse que se eu continuar assim por mais algumas semanas, não será mais necessário. — Abaixou ainda mais o tom de empolgação. —  Mas as coisas ainda podem dar errado.

— Não está pensando que tudo dará certo? — questionei, virando-me no banco para que pudesse entendê-la melhor.

— Estou. Mas é claro. —  Olhou, em silêncio, para a rua à frente. — Mas não queria que fosse como teria que ser. A família que me disponibilizou pulmões novos, caso eu precise, é de Érica. A garota que dividia a sala de jogos conosco há uns dois anos atrás. Ela está lutando para sobreviver, mas seus próprios familiares acreditam que não será vantajoso mantê-la em coma por mais tempo. Disseram que vão esperar até saírem os meus exames. Saber que isso é o que dita o último dia dela é muito esquisito.

— Sinto muito, Ally. —  Procurei palavras em minha mente, palavras que pudessem ser reconfortantes, no entanto isso foi inútil naquele momento. — Mas vamos pensar que tudo ocorrerá bem e que você vai continuar com ótimos resultados.

— E se ela quiser viver e eu tirar essa chance dela? — indagou, quase infeliz.

— Nós não temos como saber disso, mas eu sei que uma de vocês tem uma chance agora. E se a família dela acha que ela iria querer assim, e eles também, tente não pensar em outra hipótese.

— Você tem razão. — Ally ajustou a postura e deixou um novo sorriso transparecer em seu rosto. — Mas, então... Ganhei este carro de presente e vou levar você a uma festa hoje à noite.

Quase gritei ao ouvir as palavras saindo de sua boca, sílaba por sílaba.

—  Parabéns, mas...

— Não me venha com “mas”, dizendo que vai estar ocupada ou algo assim. — Deu de ombros e riu, ligando o automóvel. — Nós iremos a essa festa, vamos nos divertir e você vai me agradecer depois. Acredite em mim.

—  Se você diz, então não tenho como recusar.

Ela se animou ainda mais.

Coloquei o cinto de segurança e olhei pela janela assim que ela dera partida em seu carro, vendo as pessoas caminhando com suas vidas individuais, com suas famílias e seus animais de estimação. Sair com Ally poderia ser uma ideia boa. Seria um motivo a menos para o meu irmão me chamar de “a garota que ama se prender em livros e que faz de tudo para evitar contato físico com, até mesmo, a minoria das pessoas”.

Minha mente vagueou por todo o caminho e me lembrei da garota que costumava cavalgar pelo campo todas as manhãs em sua antiga casa, em Cough. O campo me fazia falta. Eu cresci lá com meus pais e meus avós, brincando com meu irmão, Alfred, e nossos melhores amigos, Simon e Nicole, que também eram irmãos. Todavia, fazia quatro anos que eu não era mais essa mesma garota e que muitas coisas haviam mudado. Ela nunca poderia imaginar que o destino que carregava naquele dia seria, realmente, uma possibilidade para nós.

— Blaise — Ally chamou a minha atenção. —  Está entregue por enquanto. Por enquanto.

— Te vejo às...?

— Às vinte horas estarei aqui. — Eu sabia que ela chegaria antes.

— Obrigada. —  Depositei um beijo em sua bochecha. —  Eu vou estar à sua espera, mas se quiser, venha se arrumar comigo. — Eu também sabia que ela gostava disso.

Ally sorriu para mim e eu desci do carro, acenando enquanto ia em direção à porta de casa.

Minha mãe me esperava ao lado de fora, fazendo um gesto de gratidão para a minha amiga. Ela fechou a porta assim que entramos, pegou minha bolsa de meus ombros e a colocou em cima do sofá amarelo de couro. Eu não precisava mais que ela me tratasse daquela forma, como se eu necessitasse de ajuda para qualquer movimento que fizesse, só que também entendia que ela só fazia isso por hábito. Então, nunca reclamava ou a impedia.

Nossa casa era grande demais para só três pessoas, e era pior ainda quando, praticamente, só duas delas estavam lá, pois meu irmão estava focado no time. Ele havia se firmado como atleta de vôlei, então sempre se encontrava nos treinos ou na casa da sua namorada, Meredith. Depois que meu pai falecera, minha mãe concluíra que muitas coisas não eram mais necessárias para nós. É claro que não nos desfazemos das coisas dele, apenas aceitamos as fases dela e deixamos que ela ficasse somente com aquilo que se sentisse confortável. E isso fez com que nossa casa parecesse mais ainda com um grande espaço vazio e em branco, como as paredes e o sofá amarelo de couro, que ficava de frente para a televisão que, raramente, alguém ligava.

Meus pais sempre tiveram uma condição boa financeiramente. Por esse motivo, eu poderia dizer que tive os melhores tratamentos, os melhores médicos e tudo que fosse necessário para que me mantivesse bem e confortável.

Minha mãe havia voltado a trabalhar há pouco tempo com as aulas particulares. Mesmo que ela não precisasse disso para se manter, ainda era algo que a fazia bem, e isso a deixava com a cabeça ocupada, pensando menos nos problemas que enfrentava, como quando ficava em casa sozinha.

—  Onde está Alfred? — perguntei, já que ele não atendeu o telefone e só me retornou uma mensagem dizendo “beleza, Blay” quando liguei para dizer que ele não precisaria mais me buscar naquela manhã, no hospital, por conta de que eu voltaria de carona com Ally.

 Meu carro foi parar no conserto dois dias antes.

— Na casa de Meredith. — Essa era a namorada dele desde que ele tinha dezoito anos. Já tínhamos vinte e dois.

— Ah, sim. — Suspirei e forcei um sorriso para mamãe. — Vou tomar um banho e trocar esta roupa de hospital. À noite tem uma festa para a qual eu gostaria de ir com Ally. Tudo bem para você?

— Estou bem, minha filha. Não precisa se preocupar. — Forçou-me um sorriso.

Retribuí o gesto de uma forma alegre, porém um pouco preocupada. Deixar minha mãe em casa sozinha não era uma das minhas ideias preferidas.   Mesmo que ela estivesse sob controle e mentalmente estável há quase um ano, eu vivia com um receio constante de ela ter alguma crise toda vez depois que eu saísse, e odiava pensar que ela se sentiria sozinha.

Quando o luto se tornou presente em nossas vidas, minha mãe tivera um desequilíbrio emocional muito grande. Ela virou uma pessoa completamente diferente por ter entrado em negação. Então, todas as manhãs, da mesma forma que ela ministrava minhas doses diárias de medicações do meu tratamento, eu também cuidava para que ela não se esquecesse ou deixasse de tomar os seus remédios, que estabilizavam o seu humor e faziam com que ela pudesse ter uma vida normal, sem entrar em colapso consigo mesma.

Por fim, quando ela fechou a porta, meus ombros penderam e me jogaram de costas na cama, na qual fiquei olhando para o teto e refletindo sobre qual roupa menos sem graça eu teria para usar naquela noite. Também fiquei receosa por não saber mais fazer parte de uma vida que eu não levava há muito tempo.

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