A lua pendia como um olho pálido no céu, sua luz doente filtrada por nuvens que se contorciam como vermes sob uma pedra. O vento soprava o odor metálico de sangue seco misturado ao aroma acre de madeira carbonizada — o cartão de visita da guerra.A brisa sussurrou entre as árvores.Cheiro de ferro e suor invadiu as narinas da jovem quando Kaoru deslizou pelas sombras como uma brisa noturna, seu esguio corpo se movendo com destreza felina. O acampamento ainda estava em estado de alerta após o caos causado pelo misterioso Saci, mas a tensão era diferente agora — e não por causa do entulho de soldados se preparando para a guerra do dia seguinte ou outro dia qualquer. Algo mais frio, mais denso, pairava no ar. Seus olhos de gata selvagem captaram um grupo de homens parados em frente ao barracão de pedra — ao leste do acampamento. Não apenas os homens de Donaldo. Entre os brutamontes, destacavam-se figuras vestindo mantos escuros e túnicas ritualísticas. Agentes de Naaldlooyee.O arre
"Aqueles que observam demais pelas janelas do poder… costumam acabar puxados para dentro."— Velho provérbio da Guilda da NévoaNo alto da encosta de pedra nua, onde o vento uivava como um velho cão faminto, Boreal, o Gatuno Arcano, observava a madrugada com olhos que pareciam ter esquecido como era dormir.Sentado diante de sua esfera de cristal — um artefato antigo de lapidação tão delicada que dizia-se ter sido moldada com o último sopro de um negro dragão — ele fitava o vulto translúcido que nela se formava.Donaldo.O ambicioso. O destemido. O amaldiçoado.— Ainda aí, monstro... — sussurrou Boreal, num fio de voz.Dentro da esfera, imagens pulsavam como lembranças vívidas. O calor de corpos enleados. Vestes caindo em lentas espirais. Risos abafados. A pele cintilando sob velas dançantes. Concubinas rindo baixinho, cada uma um pecado diferente — cabelos como rios de ouro, olhos de avelã, pele como mel de ocaso.Donaldo, nu em sua glória corrompida, sorria como um rei entronado no
Na penumbra que precedia a sangrenta batalha, a aldeia oculta pulsava em silenciosa atividade. Conforme alguns guerreiros afiavam suas armas com óleo de jarina, outros se entregavam a últimos instantes de afeto — mãos entrelaçadas sob mantos de fibra, promessas sussurradas contra peles pintadas de urucum, cada instante de doçura um tesouro roubado aos deuses da guerra.Sob as estrelas que insistiam em brilhar apesar da ameaça de tempestade, os guerreiros mais experientes executaram o Ritual da Fumaça Silenciosa. Um fogo sagrado crepitou no círculo de pedras, suas chamas consumindo ervas que transformavam o odor humano em névoa da floresta. Um por um, os homens atravessaram a cortina fumegante — seus corpos emergindo do outro lado como sombras vivas, indistinguíveis da mata.Eles sabiam. Nas entranhas da terra, nos sussurros das folhas, a mensagem ecoara clara: ao primeiro clarão do dia, os melhores de Donaldo avançariam. Não os bêbados e tolos envenenados pelas travessuras do Saci, nã
Mapache escolhera o refúgio com a destreza de quem joga xadrez contra o próprio destino.O vale entre os montes escuros... um lugar quase esquecido — perto o suficiente da fronteira do Vale Negro para ser conveniente, longe o suficiente da Floresta das Sombras para não atrair olhares indesejados. Quase um não-lugar. Quase uma brecha na realidade.A assassina agora habitava aquela dobra de terra, onde as rochas tinham veios de prata morta e o vento assobiava entre fendas como espectros com segredos.Tupã conhecia aquele tipo de lógica.Mapache não a escondera por bondade.Nem por estratégia comum.Aquele vale era um convite disfarçado.Algo entre uma armadilha e um altar.E Tupã se perguntava, conforme observava os montes ao longe, se a assassina sabia que seu refúgio tinha o hábito de... mudar de forma nas noites de lua cheia.Havia nevado tanto naquela noite.A neve caía em mantos espessos, envolvendo o mundo num silêncio mortal. Tupã estacou diante de Mapache e da deslumbrante jovem
Havia algo errado além do óbvio — os agentes não estavam apenas caçando. Estavam assustados. E não era a prisioneira fugitiva que os perturbava, mas sim a assombração de um nome: Mapache.Quando a escuridão finalmente a envolveu como um segundo manto, Kaoru permitiu-se respirar. O Eclipse teria respostas. Sempre tinha.Mas uma certeza a perseguia — algo além de Naaldlooyee e sua sombria força nesta guerra. Algo antigo e esquecido despertara nas entranhas da noite.“Nem toda sombra é escuridão. Às vezes, ela é a única estrada que resta.”— Provérbio dos Filhos do EclipseA noite viva estava.Não com o barulho do mundo — mas com sua ausência. O tipo de silêncio que só se ouve no alto das árvores, entre os ramos mais antigos da floresta, onde a lua se esconde como uma confidente culpada. O tipo de silêncio que fala com aqueles que sabem ouvir.Kaoru deslizava de galho em galho como um suspiro esquecido, suas vestes de tecido escuro sussurrando contra o vento, os olhos agudos como os de
Kahrienna cerrou os dedos — até as unhas cavarem sulcos em suas próprias palmas, até as articulações ficarem pálidas. — Aceitei a missão de matar Donaldo pela Ordem do Eclipse — disse, a voz um fio cortante, mais fria do que as pedras sob seus pés. — Mas foi por Sairihna. Minha amiga... O nome da amiga saiu como um corte aberto. Ela engoliu o nó de dor que subia pela garganta, então respirou fundo. Lembrou-se dos gritos abafados que ouvira naquela noite, das mãos da amiga arranhando a terra conforme era arrastada para a poça abissal. Lembrou-se, também, do próprio corpo após ser maculada por Donaldo — dos ferimentos que não cicatrizavam direito, da dor que ia além da carne, algo pior que as dilacerações na virilha e na vulva e... as lesões no útero. Sairihna, na flor da puberdade e com seus olhos ainda cheios de luz... arrastada para as profundezas pela sombra de Donaldo. Os Filhos do Eclipse tentaram salvá-la. Fracassaram. Kahrienna tocou involuntariamente o baixo
O disparo estilhaçou a quietude da manhã, ecoando pela clareira como um trovão. Por um instante, o tempo pareceu suspenso — até o canto dos pássaros sumiu, engolido por um denso e expectante silêncio.A floresta transformou-se num teatro de tensão.Os mercenários avançavam em passos medidos, dedos nos gatilhos, olhos varrendo a vegetação em busca do menor sinal de vida, cada sombra parecendo esconder uma ameaça, cada galho quebrado, uma armadilha.No entanto...— Ele está morto — declarou um deles, sua voz resoluta, quase satisfeita. — Ninguém sobrevive a um tiro tão certeiro.Mas quando chegaram ao local onde Tupã caíra, encontraram apenas folhas amassadas e lama salpicada de vermelho.— Onde ele está? — perguntou outro, o tom carregado de tensão.O líder do grupo, um homem de rosto endurecido e cicatrizes profundas, estreitou os olhos, estudando o ambiente em volta.— Se escafedeu! — Sua voz era grave, carregada de frustração. — Olho vivo! Esse desgraçado não é como os outros macaco
Visões começaram a se formar na mente de Yara: árvores em chamas, o solo rachado como se vertesse sangue, e uma sombra crescente que devorava tudo em seu caminho. A dor da floresta era quase tangível, transbordando para dentro dela como uma onda avassaladora. Seu corpo tremia, tomado pela agonia que não era apenas sua, mas de algo muito maior.Yara cerrou os punhos, respirando fundo.— Tupã... — sussurrou, a voz entrecortada, não mais que um sopro. — Onde você está?Por mais desesperador que fosse o cenário, algo dentro dela insistia que ele ainda estava vivo. Talvez fosse uma esperança tola, ou talvez fosse a própria floresta, sussurrando que não o abandonara. Mas o tempo estava contra eles, e ela sabia disso.Estava prestes a se mover, para investigar a situação, quando um calafrio subiu por sua espinha. Antes que pudesse reagir, uma gélida mão sombria agarrou seu tornozelo, arrastando-a com força para o rio de águas turvas ao seu lado.Um grito sufocado escapou de Yara conforme ela