Talvez se eu começasse com uma "linda manhã onde eu acordaria com a luz do sol no meu rosto porque esqueci de fechar a janela ontem a noite", a minha história poderia parecer um pouco menos caótica. Mas a verdade é que, a minha realidade estava longe de ser menos. Tudo nela era "mais", e o universo não me poupava da intensidade dos acontecimentos.
Tudo começou quando o meu irmão foi encontrado morto numa das valas mais fundas da comunidade. Sem camisa, descalço, e com um tiro certeiro na cabeça. Essa foi a cena que eu presenciei quando precisei ir até lá para a minha ficha cair.Na época, eu ainda fazia o ensino médio e nem sonhava em fazer faculdade. Mas aí o meu irmão apareceu com um panfleto de uma universidade que estava abrindo um programa para bolsistas e insistiu que eu participasse da seleção porque não queria que eu acabasse como ele.Naquele dia, eu não havia entendido o que ele queria dizer. Mas a resposta veio logo depois das suas saídas durante a madrugada, do dinheiro surgindo como água, os presentes para mim e para a nossa mãe que ele trazia com frequência, as roupas novas e caras, e todo o material do meu curso na faculdade que era a única coisa que não fazia parte do programa e ele havia bancado todo o valor, fazendo uma surpresa para mim, logo depois de saber que eu fui aprovada.Do dia para a noite, nós estávamos vivendo em boas condições, e o que eu já sabia, e a nossa mãe não queria enxergar, mas estava bem evidente: o meu irmão havia entrado para o crime. Ele queria um futuro para mim, porque ele já não tinha mais um. E eu fiz isso por ele.No começo a nossa mãe não aceitou muito bem a história dele ter virado traficante, mas, qual mãe iria aceitar isso?! Eu também não estava bem com isso, mas ele parecia estar feliz fazendo o que nosso pai não fez. Cuidar da casa e das nossas necessidades, e ainda comparecer com o amor e o carinho que o marmanjo que nos colocou no mundo deixou de dar no dia em que saiu para o bar e nunca mais voltou. Ele estava sendo o homem da casa e o pai que eu nunca tive, e isso me fez perdoar o fato dele ter virado um soldado do morro.E mesmo sendo o oposto de um herói comum, ele era o meu herói preferido. Bom, até ele nos abandonar sem muitas explicações, como o nosso genitor havia feito.Semanas se passaram e nada. O Jonathan não respondia às minhas mensagens, não atendia as minhas ligações, e nem as ligações da nossa tia, a Katiane. E os meninos também não sabiam dele. Mas eu ainda tinha esperanças de encontrá-lo, ainda que morto, eu só queria o corpo para um enterro digno.E foi isso o que eu encontrei, o seu corpo sem vida, jogado em uma vala qualquer como um lixo.Eu queria entender o motivo. Queria saber o porque fizeram isso com ele, porque tudo parecia absurdo demais. Mas a única resposta que eu consegui foi que ele estava roubando do lucro da boca, o que não tinha me convencido, porque mesmo sendo bandido ele ainda era um cara honesto. E os dias em que ele havia sumido não batiam com as histórias que me contaram. Nada justificava, e isso me deixou com um vazio por dentro. Não só por ter perdido o primeiro homem da minha vida, mas por saber que estavam mentindo para mim.Com a morte dele, eu e a mãe tivemos que nos virar para dar conta de tudo. Ela voltou a trabalhar em casa de família no asfalto e eu continuei estudando, e quando consegui, comecei a trabalhar meio período em um mercadinho próximo a comunidade. Não era lá grande coisa, mas estava dando para cobrir as passagens para a faculdade e alguns materiais que eu estava precisando.Mas aí veio a pandemia, e como eu disse, o universo não era lá o meu grande fã, e eu acabei sendo dispensada como tantos outros, e com a minha mãe não foi diferente. Mas com o pouco que recebemos pelo tempo de trabalho, conseguimos passar alguns meses bem.Mas com o tempo que passamos em casa durante a pandemia, no fim da quarentena, descobri que minha mãe estava com diabetes tipo 1 e que precisavamos fazer o uso da insulina e de outros remédios antidiabéticos, e isso custou boa parte do dinheiro que tínhamos guardado, já que o que recebíamos no postinho não era o suficiente.Tudo que tínhamos estava se esvaindo aos poucos, ao ponto de passarmos necessidades. E tudo piorou quando crise durante a pandemia forçou a faculdade a ter que cortar gastos, e isso contou com o programa da minha bolsa no curso de enfermagem. O baque veio quando a reitora disse que eu teria que pagar todas as mensalidades do curso, desde o início do meu primeiro ano se eu quisesse continuar estudando na instituição, já que faltava tão pouco para eu concluir.E eu poderia ter desistido, trancado o curso, voltado a viver a minha realidade e procurar novamente um emprego digno... mas em um ato insano, eu tomei a mesma decisão que o meu irmão tomou a alguns anos atrás.TAMARAA brisa fria da madrugada bateu contra o meu rosto e eu puxei o capuz para o topo da minha cabeça, e com as mangas do moletom abraçando o meu corpo eu fechei o zíper a fim de me manter aquecida mesmo vestindo um shorts jeans.A rua estava deserta e estranhamente calma, quando na verdade o movimento constante de motos e homens andando por entre os becos e vielas enchiam esse silêncio que agora era presente. Em uma outra comunidade isso poderia parecer algo bom, mas aqui não era. Aqui o silêncio significava perigo e sair agora seria insano, e loucamente suicida, mas eu estava disposta a correr o risco, porque o meu futuro dependia dessa insanidade.Então eu respirei fundo, tranquei a porta atrás de mim e passei pelo pequeno portão que dividia a fachada da casa com o corredor estreito do beco, onde saímos para a rua principal. Assim que fechei o portão desci pelo corredor que ainda estava um pouco escuro com apenas frestas do quase amanhecer iluminando o muro, e segui em frente pa
TAMARA— Caralho, você está mesmo na merda! Se meter com traficante... jura, Tamara?! — a Drika reprovou na hora a minha escolha, antes mesmo que eu pudesse terminar de contar como foi ter uma arma apontada e engatilhada, pronta para estourar a minha veia femoral.— Não é como se ela tivesse assinado o atestado de óbito, Dri! — a Nandinha interviu, me lançando um olhar solidário.Ela era como eu. Mas, a única diferença era que o irmão dela estava vivo, pagando o curso e todos os materiais possíveis até para uma segunda formação, ou uma segunda pessoa. E o que era irônico demais, era a insistência dela em querer dividir tudo comigo desde o momento em que eu perdi o meu emprego. Eu poderia aceitar só para não fazer desfeita? Sim. Mas eu sempre fui orgulhosa, e quando o meu irmão morreu, o meu orgulho virou uma parede de aço. Impenetrável a qualquer gentileza, e seja ela de onde fosse, a minha resposta sempre era um não. Agora não se tratava mais das passagens ou só dos materiais, era a
TAMARACom a minha proposta e o seu interesse mútuo ele me conduziu para além dos fundos do Campus, onde salas com obras inacabadas estavam todas enfileiradas uma ao lado da outra em um corredor extenso, como um novo bloco para um curso específico.Tudo estava totalmente vazio. Materiais deixados ao relento, areia branca espalhada pelo corredor como a imitação barata do calçadão da praia de Ipanema, e de uma forma inusitada, samambaias crescem em cascatas por algumas janelas de vidro no alto das paredes, sinalizando entradas de ar.Eu nunca tinha ido para além do gramado, mesmo estando com o Dibo, essa zona parecia ser proibida para qualquer pessoa, — nos anos que passei aqui isso tinha sido algo em que eu havia reparado — e quando eu falo qualquer pessoa, quero dizer que os menos favorecidos não passavam do gramado, e isso incluía a mim. A bolsista favelada que não merecia estar aqui, no meio de tantas pessoas de famílias influentes.A Universidade Castilho & Melo tinha lá as suas pr
TAMARA— Sua vida é fodida pra caralho, gatinha. Tem certeza que quer foder o que ainda tem de digno nela? — o Giovani me olhou frio como gelo, mas um sorriso maldoso dançava em seus lábios, os nós das mãos em carne viva sendo enfaixados com um esparadrapo barato.Eu havia acabado de contar todo o roteiro da minha vida caótica pra ele, mesmo que ele não parecesse tão interessado assim, o João me fez contar tudo, até os mínimos detalhes. E agora, ele estava mais do que interessado na ideia de acabar com a dignidade que me restava.Aquela pergunta não tinha nada a ver sobre eu pensar direito, estava soando como um desafio. Ele queria ver até onde eu iria, e até que ponto eu chegaria para ser tão cruel como o João, ou se eu poderia ser tão sádica quanto ele.Um trote, apenas um. E eu ganharia o convite.— Eu faço o que for preciso. É só me dizer que eu faço. — respondi sem cerimônia e o seu sorriso aumentou, ainda mais maldoso e sombrio do que antes.— Gostei muito da sua atitude, mas que
TAMARAA Fernanda me encarava com desconfiança, não só pelo fato que eu estou em uma crise, mas o João nunca fazia questão de andar comigo dentro da faculdade ou em falar com ela. E agora chama-lá para o shopping junto conosco era algo muito suspeito. O João nunca foi um bom mentiroso.— Tamara, você está bem? O que aconteceu? — ela perguntou diretamente a mim, ignorando o loiro que estava ao meu lado. Ela já havia percebido, eu não estava nada bem.A sensação era de que mãos grandes apertavam o meu pescoço de uma forma macabra, era sufocante, e saber que tudo aquilo ali era só a pontinha de um iceberg inteiro, era angustiante.Tudo parecia ser a coisa certa a se fazer, eu achei tudo tão certo no momento em que tomei aquela decisão. Mas agora eu não sei mais se é tão certo assim... porque tudo agora parecia ser tão errado, tão sujo, era humilhante e vergonhoso. Tudo o que eu queria agora era desistir e jogar todas essas coisas para o ar, e sumir. Sumir para todos os outros problemas n
TAMARA— Ele não vai fazer nada com ela, M&M, relaxa! — o João falou assim que parou a moto no estacionamento do shopping, tirando o capacete e estendendo a mão para me ajudar a descer.Eu queria acreditar que sim, que isso seria verdade. Mas foi o João quem disse que o Giovanni era um grande filho da puta, e acreditar que ele não faria nada era o mesmo que acreditar no papai Noel, ou que a fada do dente existe. E ser ingênua não era o meu forte.— Não é legal dizer algo que você não sabe, Dibo. — saltei da garupa sem sua ajuda, e ele soltou um suspiro pesado levando umas das mãos livres para o cabelo loiro, bagunçando o mesmo — E você pode ter certeza que se ele ousar fazer algo com a Nandinha, eu posso ferrar com a vida dele deixando ela mais fodida que a minha.Era uma promessa, e eu esperava não ter que cumprir ela.— Uau, isso me deixou com medo — o loiro foi irônico, o que me fez virar os olhos e ele rir.Tirei o capacete jogando em seu peitoral e o seu sorriso se desfez, dando l
TAMARAO João parou a moto algumas ruas antes da minha, e eu agradeci por não ter ninguém do movimento na rua, naquela hora.Era melhor assim, porque com isso eu evitaria perguntas intimidadoras que fariam o loiro ter mais coragem do que aparentava ter, e o rosto angelical que ele exibe por todo o campus continuaria intacto, já que ele não era do tipo que levava desaforo para casa, seja ele de quem fosse. — Tem certeza que não quer a minha carona? — perguntou pegando o capacete de volta das minhas mãos, disposto a ser o meu motorista particular por mais algumas horas daquele dia.Sem dizer nada, me afastei de sua moto com a sacola em um dos meus braços e segui a rua larga. Eu queria ignorar ele, apesar dele já ter tido uma resposta, mas a insistência era o seu sobrenome. E eu sabia que ele não iria desistir e simplesmente ir embora, como eu esperava que fosse.— Qual é, Tamara, vai mesmo me deixar falando sozinho? — virei para encarar o loiro. Ele estava relaxado sobre a moto, tirando
TAMARAObservei o Darlan sair do meu campo de visão ao descer pela escadinha em frente a casa onde ele estava com os outros dois deixando apenas um dos três que o acompanhavam comigo, e sumir por uma das vielas que desembocavam nas próximas ruas a nossa frente ligando umas as outras. E quando os meus olhos não o alcançaram mais, eu soltei todo o ar preso em meus pulmões como quando a válvula de um cilindro de oxigênio é girada repetidas vezes, para salvar a vida de alguém.— Ele não iria querer te ver aqui. E você sabe disso, não é? — o homem ao meu lado proferiu, agora sem expressar nenhuma emoção ao me encarar com suas íris pretas, não me deixando ver sua dilatação.Seu corpo era alto e esguio, com tatuagens espalhadas por seus braços e ombros largos. Seu pescoço também era tatuado, com um desenho mórbido de uma imensa aranha que descansava em sua teia, a espera de uma presa fácil.Eu queria conseguir respondê-lo, usar a mesma confiança que usei com o Darlan para não transparecer a