TAMARA
Com a minha proposta e o seu interesse mútuo ele me conduziu para além dos fundos do Campus, onde salas com obras inacabadas estavam todas enfileiradas uma ao lado da outra em um corredor extenso, como um novo bloco para um curso específico.Tudo estava totalmente vazio. Materiais deixados ao relento, areia branca espalhada pelo corredor como a imitação barata do calçadão da praia de Ipanema, e de uma forma inusitada, samambaias crescem em cascatas por algumas janelas de vidro no alto das paredes, sinalizando entradas de ar.Eu nunca tinha ido para além do gramado, mesmo estando com o Dibo, essa zona parecia ser proibida para qualquer pessoa, — nos anos que passei aqui isso tinha sido algo em que eu havia reparado — e quando eu falo qualquer pessoa, quero dizer que os menos favorecidos não passavam do gramado, e isso incluía a mim. A bolsista favelada que não merecia estar aqui, no meio de tantas pessoas de famílias influentes.A Universidade Castilho & Melo tinha lá as suas preferências e os seus favoritos. O programa da bolsa era só mais uma das cotas, e eu não fiquei tão surpresa quando fui aceita.Eu não estava mentindo quando disse que não fazia parte dessa sociedade, e que a Drika era como todos os outros.O único fato de ter conseguido chegar até aqui, além do gramado, foi ter me marginalizado. Com isso, eu acabei pegando um estereótipo que criaram e generalizaram e vesti ele até o último botão, aquele que chega até a gola e te sufoca porque o tamanho daquela camisa não era o seu.Eu não tinha sido obrigada a nada, estava por minha conta. E se eu havia começado, eu iria até o fim. Mesmo que significasse fazer isso até uma certa senhora aparecer com uma foice, um caderno com todos os meus pecados e um termo para assinar confirmando a minha descida para o inferno. Seria ótimo se ela quisesse mesmo avisar, ao menos antes de te golpear e te arrastar com ela para uma viagem sem a passagem de volta.— O que viemos fazer aqui? — perguntei, no momento em que ele parou na minha frente, bloqueando a passagem.Ele me olhou de soslaio e o sorriu, a fumaça saindo de suas narinas enquanto o cigarro queimava a medida que ele puxava e soltava o ar, fazendo com que o Marlboro fosse reduzido a uma pequena ponta, pronta para ser apagada com a sola do seu sapato.— O convite. É o que nós viemos fazer aqui. Não achou que seria tão fácil assim, achou?! — ele virou de frente para mim com as sobrancelhas erguidas observando o meu rosto à procura de alguma expressão que fosse covarde. Receio ou medo, ele não encontrou nenhum deles. Eu estava disposta a fazer isso desde o início, amarelar agora faria de mim uma covarde. Afinal, a pior parte eu já tinha enfrentado. O que seria falar com o Giovani, levando em consideração que eu vi a minha vida inteira passar em um loop na minha cabeça quando um fuzil de longo alcance foi posto a mira bem no meio da minha testa?! — A parte difícil foi chegar a um acordo com um traficante. Quem o Giovani é na fila do pão?! — questionei, meu tom de voz soando deboche.Com uma expressão quase sombria, o Dibo me encarou — Ele não é o tipo de quem espera na fila, Tamara. É um sádico filho da puta — e jogando a ponta do cigarro no chão, continuou — e se acha que eu sou o diabo, é porque não conheceu quem realmente é mal de verdade.A convicção em sua fala me fez ter calafrios. E por um momento eu pensei em desistir de conhecer os segredos mais obscuros que havia do outro lado, apenas para conservar o bem que eu conhecia. Mas desistir iria significar abandonar a faculdade, a chance de ter uma vida melhor, e a oportunidade de saber o que realmente aconteceu com o meu irmão. E eu não poderia jogar tudo isso para o alto, e esquecer que um dia eu fui corajosa ou maluca o suficiente para tal insanidade, quando eu já estava a um passo de ter tudo isso nas minhas mãos.— Pode desistir se achar que não consegue segurar a onda. Ainda não avançamos a linha... — ele disse dando um passo à frente, chamando a minha atenção — mas quando passarmos daqui, tudo vai mudar. Inclusive a sua vida aqui.Era insignificante para alguns, mas no chão, uma linha preta dividia o corredor extenso como uma espécie de alerta. E o que mais parecia uma piada, se tornou algo sombrio quando a última porta do corredor bateu em um estrondo horroroso.Alguém havia sido arremessado porta à fora, atingindo o chão como uma fruta podre, estragada ou madura demais para sustentar o próprio peso.— Talvez essa seja a nossa deixa, M&M. — ele me olhou dando mais um passo à frente, entrando no território que até então era proibido para mim e me estendeu a mão — Você vem?Olhei em direção a porta. Era simples, começaria por partes e a primeira eu havia acabado de fazer.Cruzei a linha duvidosa sobre o piso branco.(...)— Outro trote que não deu certo, Giovani? — o Dibo surpreendeu o amigo assim que avançamos o corredor extenso até a última sala, onde um dos calouros estava caído no chão com o nariz estourado por um soco cruel.Era difícil dizer em que momento o Giovani apareceu ali e saiu daquela sala. Quando ultrapassei a linha e atravessei o corredor foi como se tudo estivesse parado, e por uma fração de segundos, tudo virou um borrão na minha cabeça. Eu só estava ali, no meio daquela confusão.— Se manda daqui, ou eu vou quebrar muito mais que um nariz! — a última frase do Giovani foi clara, e não precisou ser repetida outra vez para que o calouro saísse cambaleando para fora da área proibida.Observando o garoto sair, o Giovani direcionou o olhar para o Dibo e com um largo sorriso limpou os dedos sujos de sangue na própria camiseta estendendo a mão para um aperto.— Não é como se fosse uma novidade, Jota. Eles são amadores, — disse, ainda não notando a minha presença ali — se tivessem um pouco da sua crueldade e do meu sadismo, eles já estariam na fraternidade.— Ninguém é perfeito. — ironizou soltando a mão do Giovani, e ainda segurando a minha, ele me puxou para o campo de visão do moreno a nossa frente — Eu trouxe alguém. Você não vai se arrepender se der uma chance para ela se apresentar.TAMARA— Sua vida é fodida pra caralho, gatinha. Tem certeza que quer foder o que ainda tem de digno nela? — o Giovani me olhou frio como gelo, mas um sorriso maldoso dançava em seus lábios, os nós das mãos em carne viva sendo enfaixados com um esparadrapo barato.Eu havia acabado de contar todo o roteiro da minha vida caótica pra ele, mesmo que ele não parecesse tão interessado assim, o João me fez contar tudo, até os mínimos detalhes. E agora, ele estava mais do que interessado na ideia de acabar com a dignidade que me restava.Aquela pergunta não tinha nada a ver sobre eu pensar direito, estava soando como um desafio. Ele queria ver até onde eu iria, e até que ponto eu chegaria para ser tão cruel como o João, ou se eu poderia ser tão sádica quanto ele.Um trote, apenas um. E eu ganharia o convite.— Eu faço o que for preciso. É só me dizer que eu faço. — respondi sem cerimônia e o seu sorriso aumentou, ainda mais maldoso e sombrio do que antes.— Gostei muito da sua atitude, mas que
TAMARAA Fernanda me encarava com desconfiança, não só pelo fato que eu estou em uma crise, mas o João nunca fazia questão de andar comigo dentro da faculdade ou em falar com ela. E agora chama-lá para o shopping junto conosco era algo muito suspeito. O João nunca foi um bom mentiroso.— Tamara, você está bem? O que aconteceu? — ela perguntou diretamente a mim, ignorando o loiro que estava ao meu lado. Ela já havia percebido, eu não estava nada bem.A sensação era de que mãos grandes apertavam o meu pescoço de uma forma macabra, era sufocante, e saber que tudo aquilo ali era só a pontinha de um iceberg inteiro, era angustiante.Tudo parecia ser a coisa certa a se fazer, eu achei tudo tão certo no momento em que tomei aquela decisão. Mas agora eu não sei mais se é tão certo assim... porque tudo agora parecia ser tão errado, tão sujo, era humilhante e vergonhoso. Tudo o que eu queria agora era desistir e jogar todas essas coisas para o ar, e sumir. Sumir para todos os outros problemas n
TAMARA— Ele não vai fazer nada com ela, M&M, relaxa! — o João falou assim que parou a moto no estacionamento do shopping, tirando o capacete e estendendo a mão para me ajudar a descer.Eu queria acreditar que sim, que isso seria verdade. Mas foi o João quem disse que o Giovanni era um grande filho da puta, e acreditar que ele não faria nada era o mesmo que acreditar no papai Noel, ou que a fada do dente existe. E ser ingênua não era o meu forte.— Não é legal dizer algo que você não sabe, Dibo. — saltei da garupa sem sua ajuda, e ele soltou um suspiro pesado levando umas das mãos livres para o cabelo loiro, bagunçando o mesmo — E você pode ter certeza que se ele ousar fazer algo com a Nandinha, eu posso ferrar com a vida dele deixando ela mais fodida que a minha.Era uma promessa, e eu esperava não ter que cumprir ela.— Uau, isso me deixou com medo — o loiro foi irônico, o que me fez virar os olhos e ele rir.Tirei o capacete jogando em seu peitoral e o seu sorriso se desfez, dando l
TAMARAO João parou a moto algumas ruas antes da minha, e eu agradeci por não ter ninguém do movimento na rua, naquela hora.Era melhor assim, porque com isso eu evitaria perguntas intimidadoras que fariam o loiro ter mais coragem do que aparentava ter, e o rosto angelical que ele exibe por todo o campus continuaria intacto, já que ele não era do tipo que levava desaforo para casa, seja ele de quem fosse. — Tem certeza que não quer a minha carona? — perguntou pegando o capacete de volta das minhas mãos, disposto a ser o meu motorista particular por mais algumas horas daquele dia.Sem dizer nada, me afastei de sua moto com a sacola em um dos meus braços e segui a rua larga. Eu queria ignorar ele, apesar dele já ter tido uma resposta, mas a insistência era o seu sobrenome. E eu sabia que ele não iria desistir e simplesmente ir embora, como eu esperava que fosse.— Qual é, Tamara, vai mesmo me deixar falando sozinho? — virei para encarar o loiro. Ele estava relaxado sobre a moto, tirando
TAMARAObservei o Darlan sair do meu campo de visão ao descer pela escadinha em frente a casa onde ele estava com os outros dois deixando apenas um dos três que o acompanhavam comigo, e sumir por uma das vielas que desembocavam nas próximas ruas a nossa frente ligando umas as outras. E quando os meus olhos não o alcançaram mais, eu soltei todo o ar preso em meus pulmões como quando a válvula de um cilindro de oxigênio é girada repetidas vezes, para salvar a vida de alguém.— Ele não iria querer te ver aqui. E você sabe disso, não é? — o homem ao meu lado proferiu, agora sem expressar nenhuma emoção ao me encarar com suas íris pretas, não me deixando ver sua dilatação.Seu corpo era alto e esguio, com tatuagens espalhadas por seus braços e ombros largos. Seu pescoço também era tatuado, com um desenho mórbido de uma imensa aranha que descansava em sua teia, a espera de uma presa fácil.Eu queria conseguir respondê-lo, usar a mesma confiança que usei com o Darlan para não transparecer a
TAMARA Acompanhei cada passo seu até ele chegar ao final do corredor estreito, onde o beco que dava acesso à minha casa terminava. Talvez ele estivesse certo. Mas a vingança não traria o meu irmão de volta, assim como não mudaria o fato de que eu já estava condenada a viver o resto da minha vida no submundo do crime, ou à morte de qualquer forma, no momento em que aceitei o acordo que eu mesma propus para o Darlan. Eu não queria admitir que isso havia passado pela minha cabeça, e que, por um mísero segundo, eu pensei em estar aqui só para me vingar de qualquer um que fez o meu irmão sofrer, porque era mais fácil admitir que eu estava precisando de dinheiro do que querer uma vingança que no final seria algo totalmente suicida. Eu não era tão tola, no final das contas. Parado na entrada do beco, ele nem se deu ao trabalho de olhar para trás. Apenas observou ambos os lados da rua e sumiu entre uma esquina e outra, com a missão de me buscar na noite de amanhã para dar início a um cam
TAMARATalvez enfermagem não fosse o meu curso. Talvez não fosse o que eu realmente queria. Eu gostava de ajudar, mas não tinha esse instinto. Não era algo que vinha ser automático...Ver a minha mãe caída no chão e não ter o reflexo de checar os seus sinais vitais ou qualquer outra coisa que eu pudesse fazer para ela recobrar consciência, me fez sentir incapaz de exercer as manobras básicas que aprendi no decorrer dos últimos anos na faculdade. Naquele momento era apenas eu, uma filha desesperada para socorrer a mãe que estava em uma situação delicada e que sequer sabia que ela sairia dela. Era apenas eu ligando para alguém que havia acabado de conhecer, para ajudar a levar minha mãe até o hospital mais próximo da comunidade, sem ao menos ter certeza de que receberia a ajuda que eu procurava e precisava. — Não somos amigos. Você entendeu, não é? — a voz soou sarcástica do outro lado da linha. Não rebati. Apenas a minha respiração estava sendo ouvida pela linha telefônica, e sem que
Talvez se eu começasse com uma "linda manhã onde eu acordaria com a luz do sol no meu rosto porque esqueci de fechar a janela ontem a noite", a minha história poderia parecer um pouco menos caótica. Mas a verdade é que, a minha realidade estava longe de ser menos. Tudo nela era "mais", e o universo não me poupava da intensidade dos acontecimentos.Tudo começou quando o meu irmão foi encontrado morto numa das valas mais fundas da comunidade. Sem camisa, descalço, e com um tiro certeiro na cabeça. Essa foi a cena que eu presenciei quando precisei ir até lá para a minha ficha cair.Na época, eu ainda fazia o ensino médio e nem sonhava em fazer faculdade. Mas aí o meu irmão apareceu com um panfleto de uma universidade que estava abrindo um programa para bolsistas e insistiu que eu participasse da seleção porque não queria que eu acabasse como ele. Naquele dia, eu não havia entendido o que ele queria dizer. Mas a resposta veio logo depois das suas saídas durante a madrugada, do dinheiro s