TAMARA
— Caralho, você está mesmo na merda! Se meter com traficante... jura, Tamara?! — a Drika reprovou na hora a minha escolha, antes mesmo que eu pudesse terminar de contar como foi ter uma arma apontada e engatilhada, pronta para estourar a minha veia femoral.— Não é como se ela tivesse assinado o atestado de óbito, Dri! — a Nandinha interviu, me lançando um olhar solidário.Ela era como eu. Mas, a única diferença era que o irmão dela estava vivo, pagando o curso e todos os materiais possíveis até para uma segunda formação, ou uma segunda pessoa. E o que era irônico demais, era a insistência dela em querer dividir tudo comigo desde o momento em que eu perdi o meu emprego. Eu poderia aceitar só para não fazer desfeita? Sim. Mas eu sempre fui orgulhosa, e quando o meu irmão morreu, o meu orgulho virou uma parede de aço. Impenetrável a qualquer gentileza, e seja ela de onde fosse, a minha resposta sempre era um não. Agora não se tratava mais das passagens ou só dos materiais, era a minha formação na faculdade que estava em jogo, e só eu tinha o poder de mudar isso.— Claro que não, é bem pior que isso! — exclamou, inconformada, continuando com o seu discurso do certo e errado, e em como eu poderia ter pedido ajuda.Suspirei pesadamente, e com um cigarro entre os meus dedos eu desencostei da parede para encarar a loira que tagarelava como um Ring Neck, repetindo, e repetindo o quanto eu iria me arrepender daquela escolha.— Eu não preciso de lição de moral, Drika. Que, que foi, você já está pirando? — questionei — Eu nem consegui a porra do convite, você deveria está feliz por isso ao invés de ficar querendo me dar um sermão de moral e ética dentro de uma sociedade da qual eu não faço parte! — Calma, Tamara... — a Nandinha segurou a minha mão tentando me fazer parar de falar, antes que eu acabasse com o nosso trio.— Calma?! — fui irônica — Calma ô caralho, Fernanda! Ela fala como se já tivesse passado por algo do tipo, e nem vem me falar que isso é a porra da empatia, porque não é. — falei sem desviar o olhar da loira, que agora permanecia calada — Ela pode está certa que essa escolha foi uma das piores que eu já fiz na minha vida, mas ela não sabe o que eu estou passando, ou pelo que eu passei para chegar até aqui. — cuspi tudo o que estava entalado na minha garganta desde o momento em que ela começou com o discursinho hipócrita — Eu estou de saco cheio de você querer ser a boa amiga rica que fala tanto em ajudar, mas que quando eu precisei sempre tirou o seu da reta.— Tamara, eu não... — Tamara, eu não... O quê? — a interrompi — Você é a porra de uma hipócrita, Drika!Soltei a mão da Fernanda e saí dali sem deixá-la continuar a discussão que eu havia começado. A verdade era que a Drika sempre achou mais conveniente estar com bolsistas ou pessoas mais humildes, só para parecer superior a todos. Isso havia ficado claro para mim desde o primeiro momento em que ela se mostrou tão simpática e prestativa, mas na hora do vamos ver ela pulou fora, e a única que me emprestou algum dinheiro pra poder voltar para casa foi a Fernanda. E não, ela não tinha obrigação de me dar ou emprestar dinheiro nenhum. Mas daí já dá para entender bem o que eu quero dizer.O fato dela me julgar pela escolha de vender drogas era hipocrisia se ela financiava uma outra boca de fumo qualquer. Antes de sair de trás do Campus eu joguei a ponta do cigarro no chão, apagando o mesmo com a ponta do tênis. E para tentar disfarçar o odor forte de fumaça que emanava de mim, tateio os bolsos da minha mochila atrás de uma bala sabor menta e um dos meus perfumes, para encobrir o hábito que havia virado um vício quando a ansiedade chegava para me dar um bom dia e me lembrar de como eu estava sozinha para cuidar de mim e da minha mãe.— Acha mesmo que uma balinha de menta, e um perfume barato vai resolver? — um sobressalto, e eu quase morro engasgada com uma balinha — Ou, calma aí — ele levantou um dos meus braços para cima, como se fazendo isso fosse me ajudar e logo se pôs na minha frente segurando a minha recém aberta carteira de cigarros — Você não pode morrer assim! Seria a puta de uma piada, e eu ainda preciso daquele mesmo favorzinho que você me fez a alguns meses atrás.Respirando fundo, tentei pegar a carteira de cigarros de volta e ele levou o braço para o alto com um sorriso debochado, estampado em seu rosto. Ele era bem mais alto que eu, e debochar da minha estatura era seu hobby favorito. Isso geralmente me deixaria puta, mas eu já estava vacinada contra o deboche do aspirante a engenheiro, João Fragoso, ou como eu carinhosamente chamo, o diabo de olhos azuis.— Só isso, e eu não te peço mais nada, Medgata! — Enfermagem, Dibo. Eu faço enfermagem! — corrigi, mesmo cansada de fazer isso todos os dias, ou só quando ele me procurava para pedir favores. O que era um saco, porque eu sempre acabava cedendo, e só ele se beneficiava.Como no dia em que eu trouxe cinco papelotes de cocaína da comunidade para ele, e seu único agradecimento foi um tapinha nas costas.Esse tinha sido o favor.— Tanto faz, M&M, você não queria mesmo estar aqui. Porquê se importa? — mesmo sabendo de toda a minha realidade fodida, ele fez pouco caso e roubou um cigarro da minha carteira, enfiando uma das mãos em um dos bolsos do meu moletom, talvez à procura de um isqueiro.— É importante pra mim, e você sabe disso. Ele queria que eu fosse alguém, e eu vou fazer isso por ele. — falei, pegando a minha carteira de volta jogando dentro da mochila.— Ele está morto, esquece isso.Para pessoas de fora, como ele, falar era fácil. Mas o fato de eu ter amado o meu irmão incondicionalmente, ao ponto de não ligar que ele era um criminoso, me proibia de esquecer o luto. A dor da perda era uma merda, e a cada dia, eu sentia que estava afundando cada vez mais, sem ajuda para emergir, afogando com o meu próprio choro que a dias está entalado feito um nó na minha garganta.— Você precisa seguir em frente, Tamara...— O que você quer, João? — o interrompi, antes que ele me fizesse chorar e não fosse capaz de me consolar mais uma vez.Ele era o tipo de amigo que você não pode contar, mas mesmo que indiretamente, ou com um deboche e outro, ele sempre dá os melhores conselhos e na minoria das vezes, é o único capaz de te tirar de certas enrascadas.Aquela amizade que não passa de um conhecido, mas que ainda assim em meio a todos e quando você menos espera, é o único disposto a fazer algo por você.Eu o conheci no pior momento da minha vida. Não foi um dia ensolarado para mim, e não estava nos meus planos colocar os pés na universidade, mas eu precisava ir. Quando cheguei, a Fernanda não havia aparecido e a Drika sempre dava um jeito de se livrar da minha companhia. Eu estava sozinha, foi então quando ele apareceu. Olhos azuis penetrantes, um sorriso leviano que ao mesmo tempo exalava deboche, e um cigarro entre os lábios. Uma aparência digna de um personagem clichê, onde ele seria um bad boy que comete bullying com a mocinha.Ele foi uma surpresa, mas não sei dizer se era surpresa boa ao julgar pelo currículo problemático dele.Corações partidos, drogas, na maioria das vezes, pesadas. Festas duvidosas, e rachas de motos que causaram acidentes catastróficos. Ele era o caos em meio a falsa calmaria dessa sociedade, e eu achei bem justo o apelido que coloquei nele.— Meu fornecedor rodou, M&M, e eu estou sem reserva. Rola de tu descolar alguma coisa pra mim? — perguntou. E me puxando para os fundos do Campus, ele colocou o cigarro entre os lábios e levou o isqueiro até ele, acendendo o mesmo.E aí estava a oportunidade perfeita. Ele era a minha passagem para acessar o mundo e os segredos mais obscuros da classe alta, e eu não poderia perder essa chance. Ele me colocaria para dentro da resenha, sem que eu fizesse algum esforço para isso.— Eu posso fazer algo melhor do que comprar e repassar pra você, Dibo. — falei e ele soprou a fumaça sobre mim, me dando toda atenção possível.— Eu sou todo ouvidos, M&M.— Descola o convite da resenha pra mim, que eu levo a alegria da festa. — falei, e afastando o cigarro dos lábios outra vez, ele sorriu como um cúmplice disposto a fazer o que eu havia sugerido.TAMARACom a minha proposta e o seu interesse mútuo ele me conduziu para além dos fundos do Campus, onde salas com obras inacabadas estavam todas enfileiradas uma ao lado da outra em um corredor extenso, como um novo bloco para um curso específico.Tudo estava totalmente vazio. Materiais deixados ao relento, areia branca espalhada pelo corredor como a imitação barata do calçadão da praia de Ipanema, e de uma forma inusitada, samambaias crescem em cascatas por algumas janelas de vidro no alto das paredes, sinalizando entradas de ar.Eu nunca tinha ido para além do gramado, mesmo estando com o Dibo, essa zona parecia ser proibida para qualquer pessoa, — nos anos que passei aqui isso tinha sido algo em que eu havia reparado — e quando eu falo qualquer pessoa, quero dizer que os menos favorecidos não passavam do gramado, e isso incluía a mim. A bolsista favelada que não merecia estar aqui, no meio de tantas pessoas de famílias influentes.A Universidade Castilho & Melo tinha lá as suas pr
TAMARA— Sua vida é fodida pra caralho, gatinha. Tem certeza que quer foder o que ainda tem de digno nela? — o Giovani me olhou frio como gelo, mas um sorriso maldoso dançava em seus lábios, os nós das mãos em carne viva sendo enfaixados com um esparadrapo barato.Eu havia acabado de contar todo o roteiro da minha vida caótica pra ele, mesmo que ele não parecesse tão interessado assim, o João me fez contar tudo, até os mínimos detalhes. E agora, ele estava mais do que interessado na ideia de acabar com a dignidade que me restava.Aquela pergunta não tinha nada a ver sobre eu pensar direito, estava soando como um desafio. Ele queria ver até onde eu iria, e até que ponto eu chegaria para ser tão cruel como o João, ou se eu poderia ser tão sádica quanto ele.Um trote, apenas um. E eu ganharia o convite.— Eu faço o que for preciso. É só me dizer que eu faço. — respondi sem cerimônia e o seu sorriso aumentou, ainda mais maldoso e sombrio do que antes.— Gostei muito da sua atitude, mas que
TAMARAA Fernanda me encarava com desconfiança, não só pelo fato que eu estou em uma crise, mas o João nunca fazia questão de andar comigo dentro da faculdade ou em falar com ela. E agora chama-lá para o shopping junto conosco era algo muito suspeito. O João nunca foi um bom mentiroso.— Tamara, você está bem? O que aconteceu? — ela perguntou diretamente a mim, ignorando o loiro que estava ao meu lado. Ela já havia percebido, eu não estava nada bem.A sensação era de que mãos grandes apertavam o meu pescoço de uma forma macabra, era sufocante, e saber que tudo aquilo ali era só a pontinha de um iceberg inteiro, era angustiante.Tudo parecia ser a coisa certa a se fazer, eu achei tudo tão certo no momento em que tomei aquela decisão. Mas agora eu não sei mais se é tão certo assim... porque tudo agora parecia ser tão errado, tão sujo, era humilhante e vergonhoso. Tudo o que eu queria agora era desistir e jogar todas essas coisas para o ar, e sumir. Sumir para todos os outros problemas n
TAMARA— Ele não vai fazer nada com ela, M&M, relaxa! — o João falou assim que parou a moto no estacionamento do shopping, tirando o capacete e estendendo a mão para me ajudar a descer.Eu queria acreditar que sim, que isso seria verdade. Mas foi o João quem disse que o Giovanni era um grande filho da puta, e acreditar que ele não faria nada era o mesmo que acreditar no papai Noel, ou que a fada do dente existe. E ser ingênua não era o meu forte.— Não é legal dizer algo que você não sabe, Dibo. — saltei da garupa sem sua ajuda, e ele soltou um suspiro pesado levando umas das mãos livres para o cabelo loiro, bagunçando o mesmo — E você pode ter certeza que se ele ousar fazer algo com a Nandinha, eu posso ferrar com a vida dele deixando ela mais fodida que a minha.Era uma promessa, e eu esperava não ter que cumprir ela.— Uau, isso me deixou com medo — o loiro foi irônico, o que me fez virar os olhos e ele rir.Tirei o capacete jogando em seu peitoral e o seu sorriso se desfez, dando l
TAMARAO João parou a moto algumas ruas antes da minha, e eu agradeci por não ter ninguém do movimento na rua, naquela hora.Era melhor assim, porque com isso eu evitaria perguntas intimidadoras que fariam o loiro ter mais coragem do que aparentava ter, e o rosto angelical que ele exibe por todo o campus continuaria intacto, já que ele não era do tipo que levava desaforo para casa, seja ele de quem fosse. — Tem certeza que não quer a minha carona? — perguntou pegando o capacete de volta das minhas mãos, disposto a ser o meu motorista particular por mais algumas horas daquele dia.Sem dizer nada, me afastei de sua moto com a sacola em um dos meus braços e segui a rua larga. Eu queria ignorar ele, apesar dele já ter tido uma resposta, mas a insistência era o seu sobrenome. E eu sabia que ele não iria desistir e simplesmente ir embora, como eu esperava que fosse.— Qual é, Tamara, vai mesmo me deixar falando sozinho? — virei para encarar o loiro. Ele estava relaxado sobre a moto, tirando
TAMARAObservei o Darlan sair do meu campo de visão ao descer pela escadinha em frente a casa onde ele estava com os outros dois deixando apenas um dos três que o acompanhavam comigo, e sumir por uma das vielas que desembocavam nas próximas ruas a nossa frente ligando umas as outras. E quando os meus olhos não o alcançaram mais, eu soltei todo o ar preso em meus pulmões como quando a válvula de um cilindro de oxigênio é girada repetidas vezes, para salvar a vida de alguém.— Ele não iria querer te ver aqui. E você sabe disso, não é? — o homem ao meu lado proferiu, agora sem expressar nenhuma emoção ao me encarar com suas íris pretas, não me deixando ver sua dilatação.Seu corpo era alto e esguio, com tatuagens espalhadas por seus braços e ombros largos. Seu pescoço também era tatuado, com um desenho mórbido de uma imensa aranha que descansava em sua teia, a espera de uma presa fácil.Eu queria conseguir respondê-lo, usar a mesma confiança que usei com o Darlan para não transparecer a
TAMARA Acompanhei cada passo seu até ele chegar ao final do corredor estreito, onde o beco que dava acesso à minha casa terminava. Talvez ele estivesse certo. Mas a vingança não traria o meu irmão de volta, assim como não mudaria o fato de que eu já estava condenada a viver o resto da minha vida no submundo do crime, ou à morte de qualquer forma, no momento em que aceitei o acordo que eu mesma propus para o Darlan. Eu não queria admitir que isso havia passado pela minha cabeça, e que, por um mísero segundo, eu pensei em estar aqui só para me vingar de qualquer um que fez o meu irmão sofrer, porque era mais fácil admitir que eu estava precisando de dinheiro do que querer uma vingança que no final seria algo totalmente suicida. Eu não era tão tola, no final das contas. Parado na entrada do beco, ele nem se deu ao trabalho de olhar para trás. Apenas observou ambos os lados da rua e sumiu entre uma esquina e outra, com a missão de me buscar na noite de amanhã para dar início a um cam
TAMARATalvez enfermagem não fosse o meu curso. Talvez não fosse o que eu realmente queria. Eu gostava de ajudar, mas não tinha esse instinto. Não era algo que vinha ser automático...Ver a minha mãe caída no chão e não ter o reflexo de checar os seus sinais vitais ou qualquer outra coisa que eu pudesse fazer para ela recobrar consciência, me fez sentir incapaz de exercer as manobras básicas que aprendi no decorrer dos últimos anos na faculdade. Naquele momento era apenas eu, uma filha desesperada para socorrer a mãe que estava em uma situação delicada e que sequer sabia que ela sairia dela. Era apenas eu ligando para alguém que havia acabado de conhecer, para ajudar a levar minha mãe até o hospital mais próximo da comunidade, sem ao menos ter certeza de que receberia a ajuda que eu procurava e precisava. — Não somos amigos. Você entendeu, não é? — a voz soou sarcástica do outro lado da linha. Não rebati. Apenas a minha respiração estava sendo ouvida pela linha telefônica, e sem que