TAMARA
A brisa fria da madrugada bateu contra o meu rosto e eu puxei o capuz para o topo da minha cabeça, e com as mangas do moletom abraçando o meu corpo eu fechei o zíper a fim de me manter aquecida mesmo vestindo um shorts jeans.A rua estava deserta e estranhamente calma, quando na verdade o movimento constante de motos e homens andando por entre os becos e vielas enchiam esse silêncio que agora era presente. Em uma outra comunidade isso poderia parecer algo bom, mas aqui não era. Aqui o silêncio significava perigo e sair agora seria insano, e loucamente suicida, mas eu estava disposta a correr o risco, porque o meu futuro dependia dessa insanidade.Então eu respirei fundo, tranquei a porta atrás de mim e passei pelo pequeno portão que dividia a fachada da casa com o corredor estreito do beco, onde saímos para a rua principal. Assim que fechei o portão desci pelo corredor que ainda estava um pouco escuro com apenas frestas do quase amanhecer iluminando o muro, e segui em frente parando na saída.Observei a rua com atenção e guardei meu celular em um dos bolsos do moletom, jogando o molho de chaves dentro de um deles também. E permanecendo com as minhas mãos escondidas, eu virei para a direita, incerta de que caminho tomar. Eles poderiam estar em qualquer lugar.Quando eu finalmente estava pronta para enrolar a esquina e subir a rua a minha esquerda, pela primeira vez em toda a minha vida eu odiei o fato de estar certa e odiei mais ainda quando o cano gélido de uma arma foi colocada contra o meu quadril, me fazendo erguer os braços em rendição.— Qual foi, garota, tá panguando no beco porque? — perguntou puxando o meu capuz de um jeito agressivo, brusco, parecendo disposto a qualquer coisa para não me deixar ir muito longe.Eu não estava com medo. Mas o receio de não conseguir cumprir com o meu objetivo em encontrar um dos amigos do meu irmão era maior do que qualquer coisa, e então, com cautela eu virei para encarar o homem que me mantinha na mira de uma arma de fogo.— Eu preciso falar com o Darlan, é importante — pedi com a esperança de que ele pudesse me levar até lá, mas ao contrário do que eu esperava ele deu uma risada rouca e logo levantou a balaclava que antes cobria o seu rosto.— O que é tão importante assim pra tu sair de madrugada atrás de um bandido? — questionou com deboche, e eu acabei me dando conta que estava falando com quem eu procurava.Já fazia um tempo, e com certeza ele não se lembrava de mim. Mas o fato de eu não ter reconhecido ele foi o seu rosto ter envelhecido, e as novas tatuagens que circulavam os seus braços fortes e se estendiam sobre os seus ombros largos. Ele estava diferente.— Eu tenho algo a te oferecer, e talvez isso seja do seu interesse... — falei, e ele me encarou erguendo as sobrancelhas parecendo interessado, ou duvidando de que uma garota como eu tivesse algo que o interessasse ao ponto de fazê-lo desperdiçar alguns minutos de sua vida na entrada de um beco qualquer, na madrugada mais obscura da comunidade.— Eu espero que seja mesmo interessante para mim, ou eu vou ser obrigado a ter que te mandar de volta para casa — pressionando ainda mais o cano contra o meu quadril, ele parou ao meu lado colocando a mão que estava livre no meu ombro, passando o braço pelo meu pescoço — e isso não vai ser nada legal, entendeu?E eu assenti, engolindo a seco todo o pavor e o desespero que era estar na mira de uma arma.— O que você acha sobre expandir as vendas para fora da comunidade? — limpando a garganta, eu questionei fazendo ele me olhar de soslaio. E parando no meio fio, ele girou e tirou o braço que estava em volta do meu pescoço, afastando o cano gélido para longe do meu corpo.— Bom. Você conseguiu chamar a minha atenção, mas ainda não o meu interesse — ele guardou a pistola no coldre e cruzou os braços acima do peitoral — se quer que eu responda a tua pergunta, é melhor ir direto ao ponto. Eu não gosto de joguinhos! — disse, e com um aceno de cabeça ele me fez perceber que não estávamos mais sozinhos.Em cada laje havia um soldado, os pontos eram estratégicos e eu não teria nenhuma dúvida de que um deles estava com a mira bem no meio da minha cabeça. Eu era um puta alvo humano, e isso não mudaria até que eu o convencesse a ouvir o que eu tinha para dizer.Eu não queria pagar para ver, então como ele mesmo havia sugerido eu fui direto ao ponto, sem hesitar.— Eu faço faculdade, e todo final de semana os alunos sempre fazem uma resenha privada — comecei e ele me encarou com os olhos semicerrados — e tudo o que acontece lá dentro, fica lá dentro. Eles são playboys, Darlan, gostam de gastar e pagariam qualquer valor para fugirem da realidade de merda que eles vivem! Imagina o quanto você iria fazer no final de semana, além dos bailes?! — e no final, eu havia deixado ele pensativo com a idéia de dobrar, ou até triplicar o dinheiro do tráfico.— Tranquilo. Mas e aí, eu vou fazer isso como? — perguntou depois de um tempo, demonstrando interesse em sua postura.— É por isso que eu estou aqui, quero fazer parte disso. Eu preciso do dinheiro — falei.Sua expressão de interesse se desmanchou em um sorriso ladino, irônico demais para quem parecia estar levando a sério a minha oferta. Um sorriso zombeteiro, de alguém que estava julgando a minha aparência frágil, que de frágil não tinha nada.— Não é da minha conta, mas eu não posso deixar de fazer esse comentário — com um aceno de cabeça a ordem foi clara.Em questão de segundos todos os fuzis estavam fora do meu campo de visão, descansando ao lado dos soldados como um sinal de passividade. Eu não era mais considerada um "problema", agora estava mais para uma solução e pelo visto, ele estava adorando isso.— Essa não é uma escolha inteligente, sabe disso não é?! — questionou — De universitária rebaixada a traficante de drogas, isso cabe no teu currículo? — ele zombou.— Você tenta fazer todos os outros desistirem também? — perguntei descendo para o meio da rua — Se eu não soubesse, eu estaria aqui de qualquer forma. Mesmo que algumas sejam ruins, escolhas são pessoais. E você não tem o poder de opinar.— Sua família deve estar orgulhosa... — zombou mais uma vez, e eu fui obrigada a respirar fundo para não assinar o meu atestado de óbito em um impulso nada inteligente.— A única pessoa que deveria ter orgulho de mim está morta. Então não, a minha família não está orgulhosa... — e eu parei na sua frente, percebendo como ele queria tirar o foco da minha atenção — Não tenta mudar de assunto, você vai ou não me colocar nisso?!— Primeiro você consegue o convite, universitária, e depois eu penso numa segunda conversa.Ele piscou, e com um aceno de mão juntou todos os soldados que estavam espalhados, formando um bondão e sumindo dali por entre os becos da rua a minha direita. E eu havia ficado sozinha, me odiando por não ser firme o bastante para dobrar essa situação ao meu favor.Eu estava dependendo da boa vontade de um bandido de humor duvidoso e temperamental, e isso pra mim era o fim da picada.TAMARA— Caralho, você está mesmo na merda! Se meter com traficante... jura, Tamara?! — a Drika reprovou na hora a minha escolha, antes mesmo que eu pudesse terminar de contar como foi ter uma arma apontada e engatilhada, pronta para estourar a minha veia femoral.— Não é como se ela tivesse assinado o atestado de óbito, Dri! — a Nandinha interviu, me lançando um olhar solidário.Ela era como eu. Mas, a única diferença era que o irmão dela estava vivo, pagando o curso e todos os materiais possíveis até para uma segunda formação, ou uma segunda pessoa. E o que era irônico demais, era a insistência dela em querer dividir tudo comigo desde o momento em que eu perdi o meu emprego. Eu poderia aceitar só para não fazer desfeita? Sim. Mas eu sempre fui orgulhosa, e quando o meu irmão morreu, o meu orgulho virou uma parede de aço. Impenetrável a qualquer gentileza, e seja ela de onde fosse, a minha resposta sempre era um não. Agora não se tratava mais das passagens ou só dos materiais, era a
TAMARACom a minha proposta e o seu interesse mútuo ele me conduziu para além dos fundos do Campus, onde salas com obras inacabadas estavam todas enfileiradas uma ao lado da outra em um corredor extenso, como um novo bloco para um curso específico.Tudo estava totalmente vazio. Materiais deixados ao relento, areia branca espalhada pelo corredor como a imitação barata do calçadão da praia de Ipanema, e de uma forma inusitada, samambaias crescem em cascatas por algumas janelas de vidro no alto das paredes, sinalizando entradas de ar.Eu nunca tinha ido para além do gramado, mesmo estando com o Dibo, essa zona parecia ser proibida para qualquer pessoa, — nos anos que passei aqui isso tinha sido algo em que eu havia reparado — e quando eu falo qualquer pessoa, quero dizer que os menos favorecidos não passavam do gramado, e isso incluía a mim. A bolsista favelada que não merecia estar aqui, no meio de tantas pessoas de famílias influentes.A Universidade Castilho & Melo tinha lá as suas pr
TAMARA— Sua vida é fodida pra caralho, gatinha. Tem certeza que quer foder o que ainda tem de digno nela? — o Giovani me olhou frio como gelo, mas um sorriso maldoso dançava em seus lábios, os nós das mãos em carne viva sendo enfaixados com um esparadrapo barato.Eu havia acabado de contar todo o roteiro da minha vida caótica pra ele, mesmo que ele não parecesse tão interessado assim, o João me fez contar tudo, até os mínimos detalhes. E agora, ele estava mais do que interessado na ideia de acabar com a dignidade que me restava.Aquela pergunta não tinha nada a ver sobre eu pensar direito, estava soando como um desafio. Ele queria ver até onde eu iria, e até que ponto eu chegaria para ser tão cruel como o João, ou se eu poderia ser tão sádica quanto ele.Um trote, apenas um. E eu ganharia o convite.— Eu faço o que for preciso. É só me dizer que eu faço. — respondi sem cerimônia e o seu sorriso aumentou, ainda mais maldoso e sombrio do que antes.— Gostei muito da sua atitude, mas que
TAMARAA Fernanda me encarava com desconfiança, não só pelo fato que eu estou em uma crise, mas o João nunca fazia questão de andar comigo dentro da faculdade ou em falar com ela. E agora chama-lá para o shopping junto conosco era algo muito suspeito. O João nunca foi um bom mentiroso.— Tamara, você está bem? O que aconteceu? — ela perguntou diretamente a mim, ignorando o loiro que estava ao meu lado. Ela já havia percebido, eu não estava nada bem.A sensação era de que mãos grandes apertavam o meu pescoço de uma forma macabra, era sufocante, e saber que tudo aquilo ali era só a pontinha de um iceberg inteiro, era angustiante.Tudo parecia ser a coisa certa a se fazer, eu achei tudo tão certo no momento em que tomei aquela decisão. Mas agora eu não sei mais se é tão certo assim... porque tudo agora parecia ser tão errado, tão sujo, era humilhante e vergonhoso. Tudo o que eu queria agora era desistir e jogar todas essas coisas para o ar, e sumir. Sumir para todos os outros problemas n
TAMARA— Ele não vai fazer nada com ela, M&M, relaxa! — o João falou assim que parou a moto no estacionamento do shopping, tirando o capacete e estendendo a mão para me ajudar a descer.Eu queria acreditar que sim, que isso seria verdade. Mas foi o João quem disse que o Giovanni era um grande filho da puta, e acreditar que ele não faria nada era o mesmo que acreditar no papai Noel, ou que a fada do dente existe. E ser ingênua não era o meu forte.— Não é legal dizer algo que você não sabe, Dibo. — saltei da garupa sem sua ajuda, e ele soltou um suspiro pesado levando umas das mãos livres para o cabelo loiro, bagunçando o mesmo — E você pode ter certeza que se ele ousar fazer algo com a Nandinha, eu posso ferrar com a vida dele deixando ela mais fodida que a minha.Era uma promessa, e eu esperava não ter que cumprir ela.— Uau, isso me deixou com medo — o loiro foi irônico, o que me fez virar os olhos e ele rir.Tirei o capacete jogando em seu peitoral e o seu sorriso se desfez, dando l
TAMARAO João parou a moto algumas ruas antes da minha, e eu agradeci por não ter ninguém do movimento na rua, naquela hora.Era melhor assim, porque com isso eu evitaria perguntas intimidadoras que fariam o loiro ter mais coragem do que aparentava ter, e o rosto angelical que ele exibe por todo o campus continuaria intacto, já que ele não era do tipo que levava desaforo para casa, seja ele de quem fosse. — Tem certeza que não quer a minha carona? — perguntou pegando o capacete de volta das minhas mãos, disposto a ser o meu motorista particular por mais algumas horas daquele dia.Sem dizer nada, me afastei de sua moto com a sacola em um dos meus braços e segui a rua larga. Eu queria ignorar ele, apesar dele já ter tido uma resposta, mas a insistência era o seu sobrenome. E eu sabia que ele não iria desistir e simplesmente ir embora, como eu esperava que fosse.— Qual é, Tamara, vai mesmo me deixar falando sozinho? — virei para encarar o loiro. Ele estava relaxado sobre a moto, tirando
TAMARAObservei o Darlan sair do meu campo de visão ao descer pela escadinha em frente a casa onde ele estava com os outros dois deixando apenas um dos três que o acompanhavam comigo, e sumir por uma das vielas que desembocavam nas próximas ruas a nossa frente ligando umas as outras. E quando os meus olhos não o alcançaram mais, eu soltei todo o ar preso em meus pulmões como quando a válvula de um cilindro de oxigênio é girada repetidas vezes, para salvar a vida de alguém.— Ele não iria querer te ver aqui. E você sabe disso, não é? — o homem ao meu lado proferiu, agora sem expressar nenhuma emoção ao me encarar com suas íris pretas, não me deixando ver sua dilatação.Seu corpo era alto e esguio, com tatuagens espalhadas por seus braços e ombros largos. Seu pescoço também era tatuado, com um desenho mórbido de uma imensa aranha que descansava em sua teia, a espera de uma presa fácil.Eu queria conseguir respondê-lo, usar a mesma confiança que usei com o Darlan para não transparecer a
TAMARA Acompanhei cada passo seu até ele chegar ao final do corredor estreito, onde o beco que dava acesso à minha casa terminava. Talvez ele estivesse certo. Mas a vingança não traria o meu irmão de volta, assim como não mudaria o fato de que eu já estava condenada a viver o resto da minha vida no submundo do crime, ou à morte de qualquer forma, no momento em que aceitei o acordo que eu mesma propus para o Darlan. Eu não queria admitir que isso havia passado pela minha cabeça, e que, por um mísero segundo, eu pensei em estar aqui só para me vingar de qualquer um que fez o meu irmão sofrer, porque era mais fácil admitir que eu estava precisando de dinheiro do que querer uma vingança que no final seria algo totalmente suicida. Eu não era tão tola, no final das contas. Parado na entrada do beco, ele nem se deu ao trabalho de olhar para trás. Apenas observou ambos os lados da rua e sumiu entre uma esquina e outra, com a missão de me buscar na noite de amanhã para dar início a um cam