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Mese - Livro II
Mese - Livro II
Por: Felipe Reino
01. Entre Dois Mundos (Outra Vez)

Eu estava em um lugar deserto. Um vento forte soprava e quase podia ver a terra sendo levada com ele. Um imenso lobo com chamas nos olhos me observava enquanto eu estremecia de medo. O vento fazia com que seus pelos se movessem e ele parecia não querer fazer outra coisa além de me observar. Era como se eu estivesse sendo vigiada e não soubesse exatamente o motivo. 

Eu fitava o lobo um pouco confusa. Aos poucos a presença dele deixou de ser amedrontadora e passou a ser mais agradável, quase protetora. Não entendi o que estava acontecendo, mas sabia que aquilo significava muito mais do que um simples sonho.

Não foi a primeira e acredito que não será a última vez que tive aquele sonho. Desde que acordei do meu coma venho tendo sonhos estranhos com muita frequência, quase diariamente. Isso me perturba de uma forma que não sei explicar. Não pelo fato dos sonhos serem estranhos, mas o fato de haver algo extremamente sério que eu esqueci e preciso com urgência me lembrar.

Meus cadernos também haviam virado um grande tormento. Sempre que começava a escrever algo, símbolos estranhos vinham em minha mente e quando olhava o que estava escrevendo... Lá estavam eles! Era extremamente perturbador.

Já havia passado um ano desde que acordei do meu coma. Eu – com a minha imensa sorte – machuquei o joelho e acabei rolando morro a baixo e batendo com a cabeça em um poste. Fiquei pouco mais de 1 semana internada. Mas não entendo o motivo de sentir que não foi isso que aconteceu. 

– Beatriz? – minha mãe – Você vai sair?

– Sim, eu vou comprar o presente! – respondi. 

– Que presente? – parecia uma piada, mas ela realmente havia esquecido. 

– O presente do Nicardo! – naquela semana iríamos comemorar o nosso aniversario de dez meses de namoro.

Minha primeira impressão do Nicardo não foi das melhores. A primeira vez que o vi, ele estava parado em minha janela, olhando para meu quarto. E não foi apenas uma vez, mas várias. Na semana seguinte, quando voltei para escola, acabei descobrindo que ele iria estudar conosco e acabei descobrindo que já o conhecia antes – e outra pessoa da qual ele me proibiu de tentar lembrar. 

Convenci de que eu havia tido algum tipo de lapso de memória e acabei apagando tudo o que vivi com Nicardo e com essa tal segunda pessoa que não consigo lembrar sequer o nome. Era a única opção lógica que me passava pela cabeça, mas tentava não ficar pensando demais nisso.

Fui até uma loja de ternos. Nicardo vivia dizendo que achava aquelas roupas interessantes e diferentes e eu ficava sem entender, mas deixava passar. Nicardo tem sido uma pessoa muito importante na minha vida, apesar de... Não sei explicar, mas existe algo nele, ou na lembrança que tento resgatar dele, que não parece se encaixar.

– Boa tarde! – uma moça muito bonita me atendeu. Nunca imaginei que seria atendida por uma mulher em uma loja de ternos. 

– Por favor, quanto está aquele modelo na vitrine? – apontei – O terceiro, preto. 

– Aquele modelo está por R$ 429,90. – a moça tinha uma voz enjoada. 

– Nossa! – deixei escapar. 

– Mas se quiser, temos alguns modelos mais em conta senhorita. – a moça tentou me levar para os ternos em liquidação. 

– Não, não! – dei um passo para trás – Eu quero aquele! É tamanho único, certo? 

– Sim senhorita! – a moça me olhou desconfiada. 

– Poderia dar uma olhada? – sorri.

O modelo era perfeito. Ficaria ótimo no Nicardo. Sempre que passávamos por essa loja sentia que o Nicardo queria muito aquele terno. Outra coisa que não sei explicar exatamente, mas eu conseguia sentir o que o Nicardo sentia. Era como se tivéssemos um tipo de elo, uma ligação mágica. E não era só com ele. Às vezes parecia estar ouvindo os pensamentos dos outros e às vezes parecia estar sentindo exatamente o que a pessoa ao meu lado está sentindo. Isso era horrível. Eu sentia muitas vezes sensações que nunca havia experimentado e outras que desejava nunca experimentar novamente. Isso era só uma das coisas estranhas que estava acontecendo comigo desde que acordei do coma.

As mesadas deste mês, a do mês anterior e a do mês seguinte estavam sendo gastas neste terno. Nunca imaginei que um dia gastaria tanto em um presente. Mas o Nicardo era tão legal comigo, tão paciente, me entendia e não ligava para minha má sorte. Acho que ele merecia um bom presente.

Cheguei em casa, tirei os fones do meu celular e fui esconder o presente em meu guarda roupa. Não queria que o Nicardo visse o seu presente antes do tempo. Enquanto guardava acabei derrubando um livro. Melhor dizendo, acabei derrubando o livro.

Eu encontrei esse estranho livro pouco depois de ter acordado do coma. Não fazia ideia de onde tinha surgido aquele livro e isso era extremamente perturbador. Na verdade, perturbador mesmo era as escritas, elas sim eram perturbadoras.

Eram símbolos estranhos e não fazia a menor ideia do sentido, como os símbolos que aparecem na minha mente. E toda vez que olhava para ele sentia que ele guardava algo muito importante e muito útil para mim.

A noite chegou bem rápido naquele dia e logo já estava dormindo outra vez. Minhas noites de sono já eram bem previsíveis, provavelmente veria o lobo assustador ou então uma moça com um vestido rosa. Mas desta vez o sonho foi um pouco diferente.

Estava novamente em um deserto, mas desta vez diferente do habitual deserto em que eu me encontro com o lobo. Eu olhava para o chão e via um pouco de grama, o restante era terra seca. Um homem levantava os braços e uma grande bola de fogo descia do céu. Era um cometa. Todo o local se encheu de fogo e pessoas começaram a lutar contra o homem e antes que eu pudesse reconhecê-las o cenário do sonho mudou. 

Agora eu estava em uma floresta. Várias lanternas japonesas eram acesas em várias árvores e uma voz dizia “Ouvi alguém?” em seguida milhares de vozes repetiam “Alguém, alguém, alguém”. De repente cai de uma árvore um ser baixinho e de pés redondos e gordos na minha frente. Era um ser muito estranho e com um penteado ainda mais estranho. Novamente o cenário do sonho mudou, mas antes que pudesse notar onde estava o despertador começou a tocar.

Acordar também não havia se tornado uma das minhas coisas favoritas. De certa forma nunca foi, mas agora estava acontecendo coisas que me deixava muito preocupada.

Fui ao banheiro lavar o rosto. Minha cabeça doía por causa do pesadelo. O pior era sentir que eu não havia imaginado tudo aquilo. Parecia que eu já havia vivenciado aquelas situações, como se fossem lembranças e não apenas outro fruto da minha fértil imaginação.

Abri a torneira e lavei o rosto. Concentrei-me no espelho, eu já sabia o que viria depois. Sempre que tenho pesadelos – o que vem acontecendo com frequência – isso acontece logo de manhã.

A primeira vez eu levei um susto e não consegui controlar. Na segunda demorou um pouco, mas acabei estabilizando a situação. Na terceira eu já sabia o que devia fazer e da quarta em diante eu já não tive mais problemas.

Parei de fitar o espelho para não ter que dar de cara com litros e litros de água passando por detrás de mim e subindo para o teto até descer novamente para dentro do ralo da pia. Não sabia ainda o porquê de isso estar acontecendo, mas desejava todos os dias que isso parasse.

A primeira vez que isso aconteceu o meu quarto ficou alagado. A torneira chegou a quebrar com a pressão da água que saia furiosamente. Por sorte não estragou muita coisa que eu já não estivesse com intenção de trocar – como minha cama e guarda roupa –, mas o meu computador quase foi para o lixo e por muito pouco eu não perco todos os meus livros. Mas isso não é um fenômeno exclusivo da água, já aconteceu com fogo também. Para minha sorte o caso com o fogo aconteceu depois de já ter aprendido a controlar a água.

Estava na cozinha, evitando qualquer coisa que parecesse pontiagudo ou cortante, quando comecei a fitar a comida no fogão. Olhei para o fogo. Aquela pequena chama alaranjada pareceu começar a crescer e crescer. Eu olhava atônita enquanto ela se juntava as chamas das outras bocas do fogão. Não demorou muito e senti o cheiro de queimado invadir a cozinha. Corri para tentar desligar o fogo, mas ele pareceu perceber a minha presença e saiu das bocas do fogão e ficou flutuando ao meu redor. O calor do fogo estava machucando a minha pele e já começava a suar quando tentei fazer o mesmo que fazia com a água. Respirei fundo e tentei ordenar ao fogo que parasse – é ridículo, mas funcionou. O fogo começou a diminuir até desaparecer completamente. Atraída pelo cheiro de queimado, minha mãe veio conferir o que estava acontecendo. Disse que havia sentido o cheiro de algo queimando e corri para apagar o fogo. Não tentei explicar como todas as coisas que estavam sendo preparadas queimaram ao mesmo tempo.

Desde o incidente há um ano, Camila nunca mais passou pela rua daquela padaria. Ela dizia que trazia más lembranças e maus agouros. Das más lembranças eu não tinha – ou pelo menos não me lembrava –, mas dos maus agouros eu preferia ficar bem longe, minha vida já era agourenta demais.

Desencontrei Camila na ida para escola, mas encontrei com Toni. O namoro dos dois estava indo de vento em poupa. Depois que voltei do coma, Toni resolveu pedir Camila em namoro. Ele disse que ficou assustado com a minha situação e temeu que algo parecido acontecesse com Camila.

Toni era um cara legal. Um jovem de cabelos lisos e castanhos e imensos olhos azuis. Seu único defeito era o nariz, um pouco grande para o meu gosto. 

– Você também se perdeu da Camila? – ele perguntou. 

– Não exatamente. – sorri – Estava esperando por ela para seguirmos juntas para a escola, mas ela não apareceu. 

– E Nicardo? – ele olhou desconfiado – Onde ele está? 

– Nicardo fez uma viagem com os pais, volta só amanhã. – respondi um pouco nostálgica. 

– Ahã. – foi a única coisa que ele disse. – Vocês se dão muito bem! 

– Acho que sim. – sorri.

– E você já conheceu esses pais do Nicardo? – Toni perguntou com pouco interesse.

– Ainda não. – dei um sorriso amarelo – Estranho não é? Mas eles são muito ocupados.

– Posso te perguntar uma coisa? – ele me parou. 

– Acho que sim. – respondi dando um sorriso torto. 

– A Camila disse algo sobre querer terminar comigo? – ele me deu um susto. 

– Nã... Não! – respondi após me recuperar do susto – Não, ela não quer terminar com você! 

– E que nós estávamos indo para a escola juntos, como sempre, mas ela desapareceu. – ele fitou triste o chão.

 – O que será que aconteceu? – estranhei. 

– Beatriz? – eu conhecia essa voz. 

– Nicardo? – perguntei incrédula. 

Era ele mesmo. Estava na minha frente, esbanjando sua beleza e carisma. Por alguns instantes achei que estava tendo uma miragem – ou algum devaneio novo –, mas logo pude sentir o seu abraço me apertar com uma força um pouco maior que o habitual. 

– Você vai acabar me partindo ao meio! – disse tentando fazê-lo me soltar. – Você não deveria voltar apenas amanhã? 

– Hã... Sim! – ele pareceu sem jeito – Digo, sim! Hã... E que eu... Bem, tive que... Voltar mais cedo! 

– Hum, sei... – sorri. 

– Sério, eu tive que... – ele tentou se explicar. 

– Pode confessar! – dei um soco em seu ombro – Você voltou por minha causa. Ficou com saudades? 

– S-s-sim! – ele olhava para Toni – Fiquei com saudades. Eu não consigo esconder nada de você! 

– Bobinho... – dei um beijo nele – Não é o namorado mais fofo que pode existir? 

– Hã? – Toni me olhava estranho – Não sei. 

– Ah, claro! – percebi a idiotice da minha pergunta – Isso é o tipo de coisa que eu perguntaria para a Camila! 

– E o que ela responderia? – tinha esquecido que a insegurança de Toni o estragava. 

– Que só existe um namorado mais fofo do que o Nicardo! 

– Q-q-quem? – Toni perguntou. 

– Você! – respondi – Dãh! 

– Então qual seria o motivo dela sumir? – ele parecia realmente apavorado. 

– Espere! – Nicardo nos parou – A Camila sumiu? 

– Sumiu! – Toni ficou ainda mais apavorado. 

– Como? – Nicardo perguntou. 

– Eu estava conversando com ela enquanto íamos para escola e, em algum momento, ela não estava mais comigo. Será que ela se encheu de mim e resolveu fugir de mansinho? 

– Acredito que não. – Nicardo falou baixo. 

– C-c-como assim? – Toni estava uma pilha de nervosos – O que você desconfia? 

– Beatriz, precisamos voltar! – Nicardo me pegou pelo braço. 

– Espere um momento! – Toni tentava ir atrás de nós enquanto Nicardo me puxava e corria. – O que está acontecendo? 

– Volte para a escola! – Nicardo gritou – Fique por lá!

O que vi em seguida foi algo muito estranho. Nicardo estendeu a palma da mão direita no rosto de Toni e uma bola azul claro começou a sair de dentro dela. Ela passou e entrou dentro da cabeça de Toni que, por alguns segundos, ficou paralisado e nos fitava com os olhos vidrados. Logo em seguida ele balançou a cabeça como se tivesse acordado de um transe e seguiu em direção a escola tranquilamente. 

– O que você fez? – perguntei enquanto ele me pegava no colo. 

– Não tenho tempo para explicar! – ele não olhava para mim – Você guardou aquele livro certo? 

– Aquele esquisitão? Sim! – respondi um pouco confusa – Está no meu quarto! 

– Ótimo!

Nicardo começou a correr em uma velocidade impressionante e quase tive certeza de que estava tendo outro dos meus sonhos estranhos. Sua pele também começou a mudar. Parecia que uma pequena crosta de pedra cobria seu rosto e seu corpo.

Estava reconhecendo o caminho que Nicardo estava seguindo. Era o caminho da minha casa. O que ele estava querendo? 

– Nicardo, eu estou ficando com medo! – disse enquanto olhava as coisas passarem por mim feito flecha. 

– Eu também. – ele continuava sem olhar para mim. 

Chegamos em casa pela janela do meu quarto. Não sei exatamente em que momento, mas Nicardo subiu pelas paredes comigo no colo. 

– Rápido, onde está? – Nicardo me colocava no chão. 

– Onde está o que? 

– O livro! – ele respondeu. 

– Ela está aqui, no meu guarda roupa!

Abri o guarda roupa e acabei, inevitavelmente, revelando o presente de Nicardo bem antes do tempo. 

– O que é isso? – ele perguntou. 

– Seu presente! – respondi triste – Essa semana fazemos dez meses de namoro e queria algo especial. 

Por alguns instantes seus olhos brilharam, depois se transformaram em uma expressão de pena e remorso que, por fim, voltou ao desespero de antes. Ele pegou o livro.

– O que você quer com esse livro? – perguntei. 

– Abra! – sua voz estava séria. 

– O que? 

– Abra o livro! – ele continuava sério. 

– Mas o que está acontecendo! – notei que o chão do meu quarto estava cheio de água. 

– Vamos logo, abra o livro! – ele estava ficando nervoso. 

– Mas...

Fiquei apavorada. Novamente a torneira do banheiro quebrou e ouvi barulho de água saindo do chuveiro. Parecia que quanto mais apavorada eu ficava, mais água aparecia. 

A água começou a rolar pelas paredes, como se formassem pequenos rios e caiam bem atrás de mim, molhando completamente a minha cama e me molhando também. 

Minhas mãos pareciam não querer me obedecer e a água parecia estar esperando apenas um sinal meu para se espalhar por todo o quarto. Quando notei novamente todas as paredes estavam cobertas de cima a baixo por água e o teto também. Um tipo de cachoeira se formou atrás de mim e parecia furiosa por eu estar mantendo-a presa. 

– Beatriz – Nicardo falava alto – apenas você pode abrir esse livro!

Foi então que finalmente consegui. Assim que abri o livro, toda a água que estava presa as paredes e ao teto começaram a entrar para dentro do livro através da pequena cachoeira que se formou atrás de mim. Aos poucos percebi que o meu corpo e o de Nicardo estavam se dissolvendo junto com a água e comecei a gritar apavorada, mas parecia que ninguém estava ouvindo. Era como se nada estivesse acontecendo.

última coisa que me lembro foi de estar no colo de Nicardo, deitada em um chão transparente e com leão-marinho passando por debaixo de mim. Tomei um grande susto e me levantei no exato momento. Notei que o leão-marinho era o menor dos meus problemas.

Estava em um lugar completamente diferente de tudo o que eu já havia visto. As ruas eram feitas de uma pedra transparente e abaixo de nós, a água e as casas eram todas feitas de pedras azuladas que davam um clima de frio. Haviam várias árvores de tronco azul e folhas brancas e uma diversidade incrível de flores. As casas tinham canteiros de rosas brancas. Por um instante senti que tudo isso não era tão estranho e diferente. 

As pessoas tinham uma coloração meio branca e azulada. Os cabelos – azuis escuro – eram extremamente lisos e seus olhos eram azuis cinzentos e todos puxados, feito olhos de asiáticos, parecendo guardar todo o oceano em duas pequenas esferas. Seus rostos eram afilados e bonitos e em seus pescoços havia guelras semelhantes às de um tubarão. Mas havia algo de errado neles. Eles estavam tristes, com os olhos longe, como se estivessem relembrando um passado que nunca iria voltar. 

Quando olhei para Nicardo tomei outro susto. Sua pele havia se transformado em pedra e seus cabelos haviam embranquecido completamente. Era como se ele tivesse contraído uma doença de pele ou sido enfeitiçado por uma bruxa de contos de fada. 

– O que aconteceu com você? – perguntei. 

– Juro, quando tivermos tempo eu explico absolutamente tudo! – Nicardo sussurrava. 

– Mas será que poderemos... Aaahh! – levei um grande susto quando olhei para um dos postes de iluminação. 

– Procurados? – Nicardo arrancou o cartaz e riu – Vivos ou mortos... Como eles conseguiram nos desenhar tão mal?

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