CAPÍTULO QUATRO

− Como? Estou aqui há horas e você não estava aqui!

Seu coração batia tão descompassado que ele o ouvia dentro dos ouvidos, e imaginou que o avô também pudesse ouvir.

O velho retirou com cuidado o livro do chão, passando a mão como que para desamassar qualquer deformidade que porventura pudesse ter sofrido.

− O quê? Mas como? O quê ... - Balbuciava o rapaz perplexo. Notou que a cor havia fugido das faces do avô, e que esse se sentara do outro lado da cama, cabeça baixa, olhava fixamente para seu livro-diário-apontamentos.

−Só me dê um tempo, por favor, Já não sou mais um garotinho, e você me assustou sentado em minha cama com minhas anotações e isso ...

− Calma lá! - Interrompeu o rapaz -Tínhamos combinado há horas de jogarmos, lembra-se? Tive que inventar uma mentira para minha mãe ou teríamos até helicópteros sobrevoando aqui agora e em toda a cidade. Você simplesmente sai de dentro do banheiro que eu inspecionei e não tinha como você estar lá? Do nada? Como é possível? Agora vejo algumas coisas escritas aí. Pelo jeito de séculos, e você acha isso normal?

Seu avô passou a mão pelos parcos cabelos que ainda lhe restavam, outra mão segurava o livro e era como se carregasse o peso do mundo em seus ombros. Como se houvesse sido surpreendido em um banco a roubar, com câmeras a lhe filmar ao vivo de todos os ângulos.

Siro, ali conseguiu enxergar todos os 75 anos que o avô tinha realmente.  Não se via ali a destreza de quando ele se preparava para alguma viagem ou pescaria. Seu avô era ágil, e o homem que se encontrava agora em sua frente, era um velhote lento e derrotado.

Por um momento, se arrependeu de tê-lo crivado de perguntas.

−Sente-se garoto! - Ordenou a avô, passando a mão pelo rosto e se recompondo em parte um pouco da sua fraqueza momentânea.

− Começarei falando de mim, de minha infância e de como vim parar no que você presenciou hoje aqui, ok? - A um sacudir de cabeça confirmando, ele prosseguiu:

− Antes, vamos descer para a cozinha e vamos preparar algo para comermos, e não, eu não estou tentando te distrair da conversa que teremos; sei que é isso que está pensando. Só não toque no assunto ainda, por favor.

Ao descer as escadas devagar atrás do avô, o rapaz sentiu um cheiro que emanava do avô. Parecia algo como clorofila, algo que lembrava mato. Não parecia também que o avô tivesse tomado banho há apenas algumas horas, como era o que lhe parecera quando chegara que seu avô tivesse acabado de usar o banheiro para uma chuveirada.

Tantas perguntas ele tinha na cabeça, que queria saber logo! Primeiro: Como ele saíra do banheiro de repente se não estivera ali antes? E aquele livro-diário-apontamentos?  Parecia que o avô lhe dissera que eram anotações, mas o que significava outro lado? e ainda , como o avô o esperara por anos?

Enquanto pensava naquilo, nem percebeu que já estava sentado á mesa, enquanto o avô lhes preparava uma refeição. Só agora percebia os barulhos de talheres e o cheiro de carne.

−Sei e imagino o que passa pela sua cabeça, filho. Você quer que eu ligue para sua mãe e peça para você dormir aqui? - Questionou-o o velho.

− Não, eu já liguei para ela há horas atrás e disse que dormiria aqui hoje - Respondeu o rapaz, sem olhar o avô no rosto. De repente era como se nunca o tivesse conhecido.

− Ótimo! - Disse o velho − Boa ideia, pois precisarei de um tempo para eu te explicar tudo.

 Ele agora olhava ao redor, para a cozinha tão conhecida como a de sua própria casa. Há vinte anos ele circulava por ali como se fosse sua casa. Nada havia mudado desde a morte de sua avó, com exceção de que ela não deixava pratos na mesa, sempre os lavava e sempre ia lavando as louças que usava conforme as ia usando. Seu avô não era tão meticuloso como sua avó, mas também não parecia que era a casa de um homem ali.

Lembrou-se da mesa que estava sentado agora e de quando os avós a foram comprar. Sua avó queria uma mesa que tivesse um tampo no meio que rodasse, para colocar temperos para salada. Ícaro insistira que poderia ele mesmo fazê-la, mas a avó não permitiu. Queria a que havia visto e lá foram comprar. Levaram uma semana para entregar, e cada dia que demorava e sua avó ligava para reclamar, seu avô dizia que se ele mesmo tivesse feito, já estaria pronta e em uso.

Siro sorriu ao se lembrar de briguinhas corriqueiras que os avôs tinham, e muitas vezes sua avó piscava para ele e dizia com os lábios se movendo, mas sem som:  

- Velho rabugento!

Eram muitas as lembranças. A escada que seu avô insistira em fazer para pegarem coisas no armário em cima da pia continuava encostada entre a pia e o fogão. Ele se arrependera de tê-la fabricado, pois Áurea vivia empoleirada, como dizia Maggie para o pai: − O senhor não devia ter feito essa arma para a mamãe! Ela vivia bem sem ela e agora se empoleira a toda hora! E se cair? A culpa será sua!

Ali estava, aquele ambiente gostoso, a casa de seu avô e amigo. Se fosse á garagem, veria as varas e tralhas de pescas que os dois sempre usavam. Mas a ansiedade em saber o que seu avô tinha para lhe dizer, lhe tirou o apetite e ao colocar um prato de salada de folhas e um bife grosso que parecia suculento sobre a mesa, o velho percebeu que o neto não iria comer.

− Você precisa estar alimentado para o que vou lhe dizer - Avisou-o − E levará tempo; Por isso, por favor, me acompanhe, pois sempre volto faminto de minha passagem e ess...

− Que passagem, vô?! Eu não entendo - Interrompeu-o o rapaz.

− É exatamente sobre isso que vou lhe falar, Sí - Esse era o apelido carinhoso que o avô sempre o chamava quando queria acalmá-lo  − Não lhe esconderei um detalhe. Na verdade, há tempos tenho que falar isso com você, então vamos comer!

Por alguns minutos os dois sentados á mesa, partilharam bifes, sucos e salada. Começou beliscando, mas em seguida se viu devorando aquela refeição deliciosa e nada sobrou no prato.

Levantou-se assim que o avô também terminara de comer e pegou seu copo, talheres e prato para lavar.

− Isso pode esperar – disse o avô − Desde que Áurea descansou, não preciso mais me preocupar em deixar a pia seca e limpa para o dia seguinte. Acredite, faço isso sem remorsos; para quê deixar tudo limpo se nem sei se estaremos vivos amanhã? - Deu uma sonora gargalhada - Era o que eu sempre dizia á ela.

 “Agora vamos subir novamente ao meu quarto e teremos uma conversa de homem para homem, ok?”

Siro anuiu, mas de repente sentiu certa apreensão sobre o que descobriria. Subiram as escadas.

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