Diário: Todo o dia Sabina passa em minhas costas sebo de carneiro e babosa para que as cicatrizes causadas pelas as chibatadas desapareçam. Eu sempre falo para Sabina que as piores e dolorosas cicatrizes estão em minha alma.
Se não bastasse a perseguição de ‘Um olho só’ e a crueldade de meu pai coronel Antero Ferrão, para completar o nosso sofrimento, o negrinho Saci ouviu meu pai dando ordens para ‘Um olho só’ separar os negros na Senzala, pois ele já fechou negocio e o novo proprietário está a aguardar a ‘mercadoria’ na feira da cidade, eles vão em gaiolas-carroças até o porto e de lá seguirão de navio para longe.
-Deixe os escravos mais novos na Senzala. Eu já fechei negocio nessa remessa. Deixe também próximo do casarão às gaiolas-carroças. E preste atenção ‘Um olho só’, dessa vez o negro Thabó está no ‘lote’. Sempre deixei ele fora das vendas por ele ser forte e bom de serviço, mas dessa vez ele vai também e para bem longe. Coronel Antero Ferrão.
À noite ouvi as três pedrinhas baterem em minha janela, abri e lá estava Thabó na escada. Senti muita vontade de abraça-lo, no seu rosto havia coragem e em seus olhos tristeza. Veio me falar de seu plano para não ser levado com os outros escravos e pedi que eu tranquilizasse Sabina. O seu plano me deixou com palpitação, não sei o que é pior. Ver Thabó indo embora para sempre do Engenho, mas vivo ou morto por uma picada de cobra. Thabó pegou a minha mão e disse:
-Escute bem, minha linda Ana Clara. Eu quero que você tranquilize mãe Sabina. O meu plano é o seguinte; Está vendo aquele jacazinho de taboca ali no chão? Nele há uma cobra cascavel do brejo, muito venenosa, eu vou por a mão lá dentro antes do raiar do amanhã, ela está zangada, vai me picar, ninguém levará um negro morrendo para a feira. Velho preto curandeiro vai me salvar, depois que eles partirem. Thabó.
-Não! Você não vai suportar. Isso é loucura, Thabó. Tem de haver outro plano...
-Não há! Eu sinto muito, eu não vou poder sabotar essa viagem deles e libertar os nossos irmãos. Eles vão para longe, vão de navio. Eles vão ficar melhores, longe desse ‘coisa ruim’ de ‘Um olho só’ e de coronel Antero. Só não conte sobre o meu plano para ninguém e alerta a minha mãe Sabina. Não fique nervosa. Ore para a Virgem Maria por mim, ofendido pela a cobra cascavel do brejo e pelos os outros, indo embora para sempre.
Catarina Diniz Sá: Não posso acreditar que estou lendo essa loucura que Thabó irá praticar para ficar perto de seu amor, Ana Clara, ela vai colocar a sua mão dentro do jacá de taboca onde está uma cobra cascavel do brejo, muito venenosa. Só posso, mais uma vez secar as lágrimas de meus olhos. Thabó vai colocar a sua vida em risco por amor. Se naqueles tempos não houvesse tanta desumanidade, nada disso aconteceria. E os outros escravos? Vendidos como ‘coisas’, ‘objetos’... Mais uma vez eu deixo as minhas lágrimas caírem sobre as velhas páginas do velho diário.
Diário: E a manhã no Engenho nasceu com um friozinho, um vento lento e o céu cinza, um tom de tristeza. De minha janela observo as gaiolas-carroças lotadas de humanos já partindo. Meu pai coronel Antero Ferrão e o seu capitão do mato ‘Um olho só’ na frente a cavalos puxando o comboio, atrás uns homens que foram contratados para atirar na menor ‘ameaça’ de sabotagem e libertação dos escravos. Eu já orei a Virgem Maria agradecida por ter acontecido uma sabotagem na vez anterior a essa, os escravos fugiram e não mais foram capturados. Mas dessa vez o meu pai contratou esses homens e eles estão armados.
Aproveitamos que meu pai e o seu capitão do mato foram para a cidade, eu e Sabina fomos até a Senzala ver como está Thabó.
Eu levei o meu Rosário para orar junto com Sabina, enquanto Velho preto curandeiro pratica o seu abençoado curandeirismo. E lá estava Thabó deitado na esteira de taboca, ele se contorcia imitando os movimentos de uma cobra,ele estava suando como se estivesse debaixo de uma cachoeira, estava com muita febre, gemia e delirava com o efeito do veneno da cascavel do brejo. No local da picada, Velho peto curandeiro já havia tomado às devidas providencias, ao contrário Thabó corria o risco de perder a sua mão. Sabina ficou desesperada ao ver o seu filho entre a vida e a morte. Eu me coloquei a rezar um terço para que Thabó sobreviva ao veneno da cascavel. Velho preto curandeiro dá leves batidas em Thabó com ramos de arruda, guiné e fedegoso bravo enquanto cantiga preces dos pretos velhos e seus santos. Ali próximo, na lavoura de milho as escravas e os escravos choram em forma de um canto os seus filhos, filhas, irmãs e irmãos que foram levados para longe.
Fiquei com Thabó o dia todo até que Velho preto curandeiro pediu que eu fosse para o casarão e que voltasse no raiar do dia que ele e seus santos prometiam que Thabó já estaria livre do veneno da cobra cascavel do brejo. Cheguei ao casarão, convidei Sabina para que ficássemos ajoelhadas a noite toda nos pés da Virgem Maria pedindo que salvasse Thabó da morte.
Mal amanheceu eu e Sabina fomos para a Senzala para ver se Thabó estava bem. Ele estava fraco, mas estava vivo e aqui no Engenho. Sabina o abraçou no chão e o abençoou, eu fiz carinho em seu rosto. Velho peto curandeiro recomendou que ele ficasse um pouco mais de repouso e sempre que passasse perto de coronel Antero e de ‘Um olho só’ fingisse que ficou aleijado de uma mão, a que foi picada pela a cascavel do brejo. Assim evitaria uma possível compra por outro coronel ou comerciante de escravos.
Meu pai e ‘Um olho só’ deve ficar na cidade uns três dias passeando nas noites pelos os bordeis se divertindo e visitando as suas irmãs que possuem títulos de baronesas.
Assim eu e Sabina podemos ficar mais um pouco junto de Thabó, enquanto ele se recupera. Ele já está conversando, baixinho, mas está.
-Ana Clara, o meu plano funcionou. Que bom senti que estou perto de você e de minha mãe Sabina.
-Fique quieto e caladinho, Thabó. Ainda está se recuperando. Que bom que o seu plano funcionou. Você se arriscou muito. Velho preto curandeiro disse que foi um milagre você ter escapado. Ele foi para a lida lá no engenho de cana e rapadura. A noite vai lhe dar chá curativo para te fortalecer.
Thabó sorri enquanto segura a minha mão e fala:
-Antes de saírem para a lida, todos aqui combinaram de fazermos uma festa aqui à noite. Enquanto os homens tocam os tambores, as mulheres dançam. Vão colher frutas no pomar para a nossa refeição. Vamos aproveitar que ‘Um olho só’ não está aqui. Hoje à noite vamos dançar juntos, eu e você Ana Clara.
Catarina Diniz Sá: O plano de Thabó funcionou. Ele não foi vendido junto com os outros. O que ele sente por Ana Clara é um imenso amor. E ela o ama muito. A cada página do velho diário de Ana Clara que leio, eu estou sempre aguardando que coronel Antero Ferrão e ‘Um olho só’ vão fazer de mau e desumano, não só com os dois, mas com os escravos do Engenho.
Diário: E assim a noite chegou com o cantar dos pássaros noturnos, grilos cantantes e urros dos bichos na mata, com a lua grande no céu eu e Sabina fomos para a Senzala que apesar de ser um local de desumanidade, humanos amontoados, as negras sempre mantém o local limpo. E lá estava uma ‘toalha’ de mesa feita de folhas de bananeiras com muitas qualidades de frutas e moringas com água e caldo de cana.
Eu me vesti com um vestido longo na cor bege, de mangas fofas e não coloquei o arco na saia, quero ficar mais livre para dançar imitando o belo balançar de ‘escadeiras’ e braços das escravas.
Thabó já está bem, graças a Virgem Maria e ao Velho preto curandeiro e o seu curandeirismo. E por algumas poucas horas a Senzala ficou impregnada de felicidade. Dançamos ao som dos tambores e depois os homens brincaram capoeira, ou uma falsa briga ao som do berimbau. Como gostaria que essa noite durasse para sempre, sem as presenças no Engenho de meu pai coronel Antero Ferrão e de seu capitão do mato ‘Um olho só’. Brincamos, dançamos livres, por algumas horas, no Engenho imperou a LIBERDADE.
Sabina me chamou para irmos para o casarão, todos têm de repousar, pois no mais tardar, no outro dia, por volta das nove e meia da manhã a liberdade partirá do Engenho com a chegada de meu pai e de seu capitão do mato.
Catarina Diniz Sá: Eu até vejo Ana Clara dançando no meio das escravas. Eu me emociono de pensar que numa época em que havia a ‘separação’ por cor da pele com o “aval” politico-econômico-social, Ana Clara tinha verdadeira afeição, respeito e consideração pelo o povo negro e um grande e verdadeiro amor por Thabó.
Diário: Aqui no Engenho, os dias e as noites continuaram os mesmos, o dia cheio de negros cuidando, trabalhando no Engenho ou levando chibatadas no tronco, de modo que a ‘liberdade’ até parece se esconder na mata com medo do coronel Antero e de ‘Um olho só’, as noites com a sua sensualidade, contando com a beleza da lua e das estrelas no céu, o coaxar dos sapos no rio, a cantiga dos pássaros e grilos em coro unido e vindo ao barulho do vento. Algumas dessas noites o som dos tambores na Senzala se faz especial. Se coronel Antero e ‘Um olho só’ já estão recolhidos em seus aposentos eu e Sabina, vamos até a Senzala apreciar a dança dos escravos e o batuque dos escravos. Assim eu e Thabó ficamos alguns minutos juntos. Temos que tomar cuidado, pois vivemos sob fortes ameaças até de: -Se eu te pego com esse negro Thabó, não sei do que eu sou capaz. Até de te matar! Ouviu Ana Clara? Coronel Antero Ferrão. Numa noite Thabó foi até a minha janela e me a
Diário: Querido diário, eu preciso desabafar o pavor que eu senti quando desci do meu quarto e lá na sala do casarão estava meu pai o coronel Antero e um homem, alto, com um chapéu caro e usando um terno de linho caro num tom de azul marinho, idade trinta anos. Assim, que eu o vi, sabia que não era algo de bom para mim. Eu mal botei o pé no ultimo degrau da escada, descendo, meu pai já foi logo me apresentando com um largo sorriso nos lábios, o que é muito raro. -Primo Luano, essa aqui é minha pedra preciosa, Ana Clara, está na hora de casar e eu tenho certeza que vai te dar uns quatro filhos como é de seu desejo. Cumprimente seu noivo, Ana Clara. Coronel Antero. -Boa noite, Ana Clara. Eu sou Luano, acabei de chegar da Europa, onde me formei em advogado. Meus pais têm fazendas na Bahia e Goiás, estava indo para Goiás e resolvi passar aqui para lhe conhecer e fazer a ‘corte’. Antero enviou uma carta para meus pais falando do encanto de filha que
Diário: A vida me reservou mais uma surpresa. Não só para mim, mas para Thabó também. Ah, se tudo fosse diferente, a felicidade seria transbordante, mas o que está para se revelar é mais um motivo para estratégia de sobrevivência, ou melhor, de salvação. Fui de manhã até a cozinha e estava comendo manga verde com sal, que Thabó colheu para mim. Sabina se virou do fogão a lenha, fez uma cara de espanto e comentou: -Ana Clara, minha filha, tem muito tempo que eu desconfio, mas não falo nada, mas você e o Thabó não andam brincando por ‘ai’ como duas crianças, as brincadeiras dos dois agora são outras. Né? Eu parei de comer manga com sal e respondi baixinho: -Nós temos um lugar só nosso. É nosso segredo. Sabina veio até próximo, botou a mão na minha barriga e disse: -E essa barriga? Como vai fazer para esconder esse segredo? Essa barriga diz que você e Thabó podem cavar onde vocês serão sepultados. Sa
Diário: Até agora o nosso plano está dando certo, mas já pensamos num segundo plano. O bebê copo de leite está forte e bem de saúde. Ele fica no jacazinho de taboca, na Senzala, escrava Mudinha vai até ele para amamentar no dia e a noite eu fujo com a ajuda de Thabó e vamos para a Senzala onde fico um pouco com Thabó, amamento e dou amor para o nosso bebê. Eu me arrisquei a pedir para coronel Antero para que me deixasse fazer uma visita para tia Tereza Santina o que foi negado aos gritos. Thabó chamou Sabina e pediu para que me desse um recado e ao ouvir esse recado era para eu tomar muito cuidado em relação ao meu estado físico e ao bebê copo de leite. Thabó contou para Sabina que ‘Um olho só’ descobriu o bebê copo de leite na Senzala e foi falar para coronel Antero Ferrão, ele disse: -Coronel Antero, a nega Mudinha deu a luz a um menino branco. O que eu faço com ele? É branco que doí as vistas. ‘Um olho só’. -Ora, ora,
Diário: Não que eu deseje o mal para o meu pai, o poderoso coronel Antero Ferrão, mas eu e Thabó vivemos de ‘catar’ as migalhas de tempo e oportunidade para ficarmos juntos e dar carinho e amor para o nosso bebê. Coronel Antero Ferrão está com muita febre, ‘Um olho só’ já buscou médico na cidade que receitou medicamentos, chás e muito repouso. E é claro que eu e Thabó aproveitamos para irmos para a nossa cabana de pau-a-pique com o nosso bebê. ‘Um olho só’ aproveita e bebe cachaça em exagero e dorme cedo. Thabó me aguardou abaixo do chiqueiro dos porcos já com o nosso bebê no cestinho de taboca. Ele está saudável e cada vez mais lindo. E esta crescendo, já movimenta as mãozinhas e com os pezinhos, sorri e balbucia. Thabó tem muita cautela e amor pelo o nosso filho. Nós contamos com os raios da lua para clarear o caminho em que passamos e com a sorte e a proteção da Virgem Maria para que não sejamos atacados por bichos selvagens, já que passamos próxim
Diário: Eu, João Carlos Thabó Baptista, filho de Ana Clara Ferrão Gregório Baptista e Thabó, chamado carinhosamente na infância de bebê copo de leite, atendo ao pedido de meu querido e amado pai, Thabó: Assim é com imenso prazer que eu escrevo palavras tristes ditadas por meu pai com o objetivo de finalizar o diário de minha querida e brava mãe, a sinhazinha Ana Clara. Já fazem vinte anos que numa fuga em busca de liberdade e dignidade que aconteceu o ‘pior’ mas foi a partir desse ‘pior’ que hoje eu João Carlos Thabó Baptista sou um homem livre, sei ler e escrever e agora vou anotar as tristes e dolorosas palavras de meu pai Thabó. Meu pai relembra a fuga, conta que tinha tudo para ter dado certo, ele, minha mãe e minha avó Sabina combinaram tudo, e assim naquela madrugada vó Sabina fingiu ir até a lavoura de mandioca e foi para a cabana de pau-a-pique, chegando lá meu pai Thabó, minha mãe Ana Clara e eu ainda bebê embarcamos na carroça. Meu pai Thabó
O meu pai tem loucura com fazendas antigas, sempre que encontra uma que esteja para vender, ele a compra, às vezes até com pertences antigos dentro delas. Sempre fala que pode ser encontrado no meio das ‘velharias’ algo com valor ou serventia. Em pleno ano de 1924 o meu pai acabou de fechar a compra de uma fazenda velha que teve o seu ‘vigor’ e alta produtividade por volta de 1822/1840. Então, eu me chamo Catarina Diniz Sá filha de Diniz Sá Mendes. E foi mexendo num baú empoeirado guardado no porão da velha casa, numa fazenda que meu pai comprou que eu encontrei a mais bela e triste história de amor narrada num velho diário datado de 1822. A sua narrativa em letras quase apagadas, escritas com os instrumentos, pena e tinteiro começam a história por volta de 1805. Diário: Eu Ana Clara Ferrão Gregório Baptista nasci em 1805 na Fazenda Engenho Escondido, cidade de São Joaquim de Iboré-Minas Gerais-Brasil, filha de coronel Antero Ferrão Gregório Baptista e de min
Diário: Numa manhã de domingo, dia de ir à missa na capelinha acompanhada e vigiada por Sabina, eu encontro a flor copo de leite na escada. Esse é o sinal que Thabó deixou, é como se fosse o convite para irmos tomar banho no rio. Após a missa, eu falei que iria confessar e que logo estaria em casa, Sabina seguiu para o casarão para preparar o almoço e eu fui por um caminho secreto que dava no rio. De longe eu avistei a cor mais linda, Thabó de costas, sentado numa pedra, e aguardando. Doce visão para uma mulher apaixonada. Sua costa nua parece com uma pétala da flor violeta negra rara. Tentei aproximar sem que ele me visse e passar a mão em suas costas, mas Thabó tem o sentido aguçado, e se vira pensando serem os passos de um animal selvagem. Ele sorriu e pegou a minha mão para irmos para um lugar no rio bom para nadar. Eu não poderia nadar com todas as roupas, e o mais incrível que acolhidos pela a mata e ouvindo o coro dos passos eu não me senti acanhada em