Diário: Numa manhã de domingo, dia de ir à missa na capelinha acompanhada e vigiada por Sabina, eu encontro a flor copo de leite na escada. Esse é o sinal que Thabó deixou, é como se fosse o convite para irmos tomar banho no rio. Após a missa, eu falei que iria confessar e que logo estaria em casa, Sabina seguiu para o casarão para preparar o almoço e eu fui por um caminho secreto que dava no rio. De longe eu avistei a cor mais linda, Thabó de costas, sentado numa pedra, e aguardando. Doce visão para uma mulher apaixonada. Sua costa nua parece com uma pétala da flor violeta negra rara. Tentei aproximar sem que ele me visse e passar a mão em suas costas, mas Thabó tem o sentido aguçado, e se vira pensando serem os passos de um animal selvagem.
Ele sorriu e pegou a minha mão para irmos para um lugar no rio bom para nadar. Eu não poderia nadar com todas as roupas, e o mais incrível que acolhidos pela a mata e ouvindo o coro dos passos eu não me senti acanhada em ficar só de corselet e de anágua cobrindo a calça íntima.
Ao som da cachoeira Thabó me pegou em seus braços e adentrou no rio. O que meu pai não imagina é que eu aprendi a nadar com Thabó, desde criança nós conhecemos esse lugar no rio. Mas agora, ao nadar junto com Thabó e ao sentir ele me carregando nos braços até o meio das águas claras, eu senti que não é a mesma experiência de quando éramos crianças. Nos braços de Thabó eu sinto ‘vontades’ ou desejos de mulher.
Infelizmente sempre chega a hora de voltarmos para o Engenho. Thabó sabe ler as horas analisando a posição do sol. Como o costumeiro eu tenho que tomar cuidado, ainda mais com os cabelos e as roupas molhadas.
Thabó me acompanha até próximo do casarão e se embrenha correndo na mata para chegar do outro lado da fazenda.
Catarina Diniz Sá: É a visão mais linda que eu tive de Ana Clara usando apenas o corselet e anágua nadando com Thabó tendo a mata como guardião, ouvindo o canto lírico dos pássaros e o romântico barulho da cachoeira. Thabó mergulhando nas águas do rio e saindo próximo dela. A mais bela das paisagens sobre outra paisagem, Thabó lindo, negro e másculo carregando a sinhazinha em seus braços para o meio das águas cristalinas do rio. Quase sinto as ‘vontades’ descritas por Ana Clara, posso imaginar que o tempo todo Ana Clara teve que ser forte para não se entregar a Thabó como uma fêmea sedenta de desejos.
Diário: Cheguei ao casarão, vindo do rio, parei enfrente ao altar da Virgem Maria e fiz uma oração rápida, agradecendo por nos proteger, eu e ao Thabó e implorei ao seu perdão pelos os pensamentos que tive no rio ao sentir os braços fortes de Thabó. Troquei de roupas e desci para o almoço e meu pai me deu a mais triste notícia. Como sempre esbravejando. Ele disse:
-Como sempre lesada e atrasada né, Ana Clara?
Ande e sente-se a mesa, eu estou faminto.
Na semana que vem o viúvo que mora na fazenda Galo Branco virá para o jantar, o jantar de seu noivado. Eu andei investigando e ao enviuvar ficou mais rico ainda, herdou as fazendas da família da falecida esposa, que Deus a tem. Eu já conversei com Sabina e ela vai pentear os seus cabelos e ajudar a se vestir. Quero que esteja uma princesa. Não podemos perder essa oportunidade. Seja gentil e mostre a sua ‘fines’ aprendida no colégio interno. Não apronte!
Eu respondi: - Sim senhor, pai.
Mas já posso pensar num meio de escapar desse jantar de noivado. O que meu pai não sabe é que eu ouvi ele e ‘Um olho só’ conversando debaixo de minha janela sobre o “zum-zum” de que esse senhor proprietário da fazenda Galo Branco e outras empurrou a sua senhora lá de cima do terceiro andar do casarão deles para ficar com as propriedades herdadas por ela.
Eu me lembro como se fosse hoje:
-Coronel, lá na fazenda Galo Branco hoje tem velório. ‘Um olho só’.
-E quem faleceu? Coronel Antero Ferrão.
-A senhora e esposa do proprietário da grande fazenda Galo Branco. Corre uns boatos de que ele jogou ela de cima do terceiro andar do casarão. Faz menos de um ano que ela herdou muitas posses do falecido pai. O capitão do mato de lá disse que a coitada se quebrou toda. Ele chora de mentira e fala que a sua senhora suicidou. ‘Um olho só’.
-Cala a boca com esse assunto. Que Deus tome conta da alma da pobre coitada. Ele é um bom partido para a minha Ana Clara. Coronel Antero Ferrão.
Parece que a ganância por posses cegou os homens. Esse senhor da fazenda Galo Branco é mais velho do que meu pai e Sabina me disse que já é a segunda esposa que ele despacha para o céu. Que tipo de pai teria coragem de dar a mão de sua filha para um ‘monstro’ desse.
Catarina Diniz Sá: A cada página frágil e amarelada do velho diário que leio com dificuldade suas letras já apagadas pelo o tempo eu sinto um arrepio, uma dor na alma. Posso ter a imaginação livre para pensar que talvez a dureza daquela época levasse os homens a serem tão duros e severos com as mulheres. Que absurdo! Dar a filha em casamento para um homem suspeito de matar duas esposas. Paro e penso se não seria falta de amor de pai por Ana Clara, ou só pensa nas posses e no ‘dote’, no valor em dinheiro ou bens que custam a sua filha e a sua pureza. E onde estava a justiça daquela época? Fico indignada!
Diário: O grande casarão hoje está com aroma de comida boa por todo lado. Infelizmente é hoje o jantar de meu noivado. Não conheço o noivo que meu pai arranjou para mim, e com um pouquinho de audácia e coragem não pretendo conhecer. Sabina deixou um vestido pendurado na ‘arara’. Ela o bordou todo, é um vestido lindo, mas que não me entusiasma nem um pouco.
Sabina prendeu os meus cabelos enrolando-os com sabugo de milho. O meu pai falou para ela que faz questão de meus cabelos soltos e cacheados. Sabina está com ar de tristeza por não concordar que eu fique noiva de ‘um coisa ruim’ e sem coração, como ela diz. A única ideia que eu tive capaz de me livrar ‘dessa’, ao menos por enquanto foi a de ir até a despensa e trazer para o meu quarto ‘uma lata de nove litros’ cheia de doce de figo em calda.
Eu vou comer doce até não suportar mais e espero que o resultado chegue logo que é o de permanecer o tempo todo na ‘privada’ ou no pinico vomitando ou obrando. O meu pai com a sua ‘impafa’ não vai querer apresentar a sua valiosa filha para o noivo em tal estado. Eu espero e rogo a Virgem Maria que o meu plano funcione.
Catarina Diniz Sá: Meu Deus! Ana Clara teve que buscar socorro numa lata de doce de figo em calada. De acordo com as páginas seguintes do diário, funcionou. Sabina sussurrou no ouvido do coronel Antero que a sua filha estava passando muito mal. E ele pediu licença para o candidato a noivo da sinhazinha que já estava ocupando umas das cadeiras na mesa de jantar do grande casarão e foi para o quarto de Ana Clara. Conforme as páginas do diário a sinhazinha havia vomitado no quarto todo e estava tão pálida quanto uma flor de algodão.
As palavras do pai de Ana Clara foram:
“Cuide dela, Sabina! Dê para beber losna amarga e logo ficará boa. Vou dispensar o noivo e marcar o noivado para outro dia. Essa lesada deve de ter comido manga demais no quintal. Vou já dispensar o noivo antes de ser servido o jantar. Se não tem noivado, não tem jantar. Ele que vá jantar em sua casa.”
Diário: Meu querido diário eu sou tão provida de azar que meu pai deu falta da lata de doce de figo em calda. E com a sua brutalidade partiu para cima da coitada de Sabina. Do meu quarto eu ouvi os gritos dele. Corri para a cozinha para saber o que acontecia e lá estava coronel Antero com o chicote levantado pronto para acertar a pobre da Sabina. O meu único meio de salvar Sabina foi contando para ele que eu havia pegado a lata de doce de figo em calda. Eu contei o ‘santo’ e não contei o ‘milagre’. Só contei que eu peguei a lata de doce e meu pai deduziu que eu dei a lata de doce para os escravos da Senzala. Ele não me bateu e nem bateu em Sabina, mas eu estou trancada no meu quarto, já faz três dias, Sabina trás as escondidas água e comida e Thabó ao ficar sabendo que eu estou trancada em meu quarto, de castigo por ter pegado a lata de doce de figo em calda, ele também coloca e sobe na escada para me trazer frutas frescas.
Confesso a você meu amigo diário que me alivia o coração de tanta dor e mágoa ao ver o rosto de Thabó na minha janela. Ele é rápido, entrega-me as frutas, desce da escada, esconde-a e corre para os seus afazeres. Ele me disse que ‘Um olho só’ está olhando para ele com ar de intimidação. Temos que tomar o máximo de cuidado.
Meu pai disse que da próxima vez eu vou tomar umas chibatadas. E outra vez me lembrou do noivado com o proprietário da fazenda Galo Branco.
Sabina vem trazer comida e água e fala que reza no altar da Virgem Maria para ela interceder a Deus para tirar tanta crueldade do coração de meu pai.
Catarina Diniz Sá: Quanta crueldade! Se o coronel Antero Ferrão é capaz de castigar a filha por pegar uma lata de doce de figo em calda na dispensa, colocando-a trancada no seu quarto, sem água e sem se alimentar, eu imagino se Ana Clara não se confessa, em parte, o que o coronel seria capaz de fazer com a escrava idosa Sabina. Entendo que o castigo aplicado a Sinhazinha é mais por ele, o coronel achar que a lata de doce foi dada aos escravos na Senzala.
Diário: Numa tarde de sábado resolvi caminhar numa longa estrada com flores campestres de cada lado, até parecia que alguém as plantou e cuida de tamanha beleza. Não sei se foi coincidência ou providência Divina, Thabó me aparece com a carroça indo num antigo plantio buscar mudas de mandioca. Ao ouvir o atropelo do cavalo fiquei encostada para dar caminho e eis que surge a mais bela paisagem, Thabó conduzindo o cavalo na velha carroça entre as flores que no balançar assopradas pelo o vento exalou um doce perfume. Thabó freou o cavalo e perguntou-me o que eu fazia ali. Respondi que estava apreciando as flores do campo. E assim, ele me fez o convite para acompanha-lo até o seu destino buscar mudas de mandioca. -Não será perigoso? Alguém pode nos ver. ‘Um olho só’ esta disfarçando, mas está a nos espionar. Ana Clara. - O meu destino é solitário, isolado e não demoro carrego a carroça com as mudas e voltamos. Deixo você aqui e termina de chegar a pé. ‘Um olho só’
Diário: Todo o dia Sabina passa em minhas costas sebo de carneiro e babosa para que as cicatrizes causadas pelas as chibatadas desapareçam. Eu sempre falo para Sabina que as piores e dolorosas cicatrizes estão em minha alma. Se não bastasse a perseguição de ‘Um olho só’ e a crueldade de meu pai coronel Antero Ferrão, para completar o nosso sofrimento, o negrinho Saci ouviu meu pai dando ordens para ‘Um olho só’ separar os negros na Senzala, pois ele já fechou negocio e o novo proprietário está a aguardar a ‘mercadoria’ na feira da cidade, eles vão em gaiolas-carroças até o porto e de lá seguirão de navio para longe. -Deixe os escravos mais novos na Senzala. Eu já fechei negocio nessa remessa. Deixe também próximo do casarão às gaiolas-carroças. E preste atenção ‘Um olho só’, dessa vez o negro Thabó está no ‘lote’. Sempre deixei ele fora das vendas por ele ser forte e bom de serviço, mas dessa vez ele vai também e para bem longe. Coronel Antero Ferrão.<
Diário: Aqui no Engenho, os dias e as noites continuaram os mesmos, o dia cheio de negros cuidando, trabalhando no Engenho ou levando chibatadas no tronco, de modo que a ‘liberdade’ até parece se esconder na mata com medo do coronel Antero e de ‘Um olho só’, as noites com a sua sensualidade, contando com a beleza da lua e das estrelas no céu, o coaxar dos sapos no rio, a cantiga dos pássaros e grilos em coro unido e vindo ao barulho do vento. Algumas dessas noites o som dos tambores na Senzala se faz especial. Se coronel Antero e ‘Um olho só’ já estão recolhidos em seus aposentos eu e Sabina, vamos até a Senzala apreciar a dança dos escravos e o batuque dos escravos. Assim eu e Thabó ficamos alguns minutos juntos. Temos que tomar cuidado, pois vivemos sob fortes ameaças até de: -Se eu te pego com esse negro Thabó, não sei do que eu sou capaz. Até de te matar! Ouviu Ana Clara? Coronel Antero Ferrão. Numa noite Thabó foi até a minha janela e me a
Diário: Querido diário, eu preciso desabafar o pavor que eu senti quando desci do meu quarto e lá na sala do casarão estava meu pai o coronel Antero e um homem, alto, com um chapéu caro e usando um terno de linho caro num tom de azul marinho, idade trinta anos. Assim, que eu o vi, sabia que não era algo de bom para mim. Eu mal botei o pé no ultimo degrau da escada, descendo, meu pai já foi logo me apresentando com um largo sorriso nos lábios, o que é muito raro. -Primo Luano, essa aqui é minha pedra preciosa, Ana Clara, está na hora de casar e eu tenho certeza que vai te dar uns quatro filhos como é de seu desejo. Cumprimente seu noivo, Ana Clara. Coronel Antero. -Boa noite, Ana Clara. Eu sou Luano, acabei de chegar da Europa, onde me formei em advogado. Meus pais têm fazendas na Bahia e Goiás, estava indo para Goiás e resolvi passar aqui para lhe conhecer e fazer a ‘corte’. Antero enviou uma carta para meus pais falando do encanto de filha que
Diário: A vida me reservou mais uma surpresa. Não só para mim, mas para Thabó também. Ah, se tudo fosse diferente, a felicidade seria transbordante, mas o que está para se revelar é mais um motivo para estratégia de sobrevivência, ou melhor, de salvação. Fui de manhã até a cozinha e estava comendo manga verde com sal, que Thabó colheu para mim. Sabina se virou do fogão a lenha, fez uma cara de espanto e comentou: -Ana Clara, minha filha, tem muito tempo que eu desconfio, mas não falo nada, mas você e o Thabó não andam brincando por ‘ai’ como duas crianças, as brincadeiras dos dois agora são outras. Né? Eu parei de comer manga com sal e respondi baixinho: -Nós temos um lugar só nosso. É nosso segredo. Sabina veio até próximo, botou a mão na minha barriga e disse: -E essa barriga? Como vai fazer para esconder esse segredo? Essa barriga diz que você e Thabó podem cavar onde vocês serão sepultados. Sa
Diário: Até agora o nosso plano está dando certo, mas já pensamos num segundo plano. O bebê copo de leite está forte e bem de saúde. Ele fica no jacazinho de taboca, na Senzala, escrava Mudinha vai até ele para amamentar no dia e a noite eu fujo com a ajuda de Thabó e vamos para a Senzala onde fico um pouco com Thabó, amamento e dou amor para o nosso bebê. Eu me arrisquei a pedir para coronel Antero para que me deixasse fazer uma visita para tia Tereza Santina o que foi negado aos gritos. Thabó chamou Sabina e pediu para que me desse um recado e ao ouvir esse recado era para eu tomar muito cuidado em relação ao meu estado físico e ao bebê copo de leite. Thabó contou para Sabina que ‘Um olho só’ descobriu o bebê copo de leite na Senzala e foi falar para coronel Antero Ferrão, ele disse: -Coronel Antero, a nega Mudinha deu a luz a um menino branco. O que eu faço com ele? É branco que doí as vistas. ‘Um olho só’. -Ora, ora,
Diário: Não que eu deseje o mal para o meu pai, o poderoso coronel Antero Ferrão, mas eu e Thabó vivemos de ‘catar’ as migalhas de tempo e oportunidade para ficarmos juntos e dar carinho e amor para o nosso bebê. Coronel Antero Ferrão está com muita febre, ‘Um olho só’ já buscou médico na cidade que receitou medicamentos, chás e muito repouso. E é claro que eu e Thabó aproveitamos para irmos para a nossa cabana de pau-a-pique com o nosso bebê. ‘Um olho só’ aproveita e bebe cachaça em exagero e dorme cedo. Thabó me aguardou abaixo do chiqueiro dos porcos já com o nosso bebê no cestinho de taboca. Ele está saudável e cada vez mais lindo. E esta crescendo, já movimenta as mãozinhas e com os pezinhos, sorri e balbucia. Thabó tem muita cautela e amor pelo o nosso filho. Nós contamos com os raios da lua para clarear o caminho em que passamos e com a sorte e a proteção da Virgem Maria para que não sejamos atacados por bichos selvagens, já que passamos próxim
Diário: Eu, João Carlos Thabó Baptista, filho de Ana Clara Ferrão Gregório Baptista e Thabó, chamado carinhosamente na infância de bebê copo de leite, atendo ao pedido de meu querido e amado pai, Thabó: Assim é com imenso prazer que eu escrevo palavras tristes ditadas por meu pai com o objetivo de finalizar o diário de minha querida e brava mãe, a sinhazinha Ana Clara. Já fazem vinte anos que numa fuga em busca de liberdade e dignidade que aconteceu o ‘pior’ mas foi a partir desse ‘pior’ que hoje eu João Carlos Thabó Baptista sou um homem livre, sei ler e escrever e agora vou anotar as tristes e dolorosas palavras de meu pai Thabó. Meu pai relembra a fuga, conta que tinha tudo para ter dado certo, ele, minha mãe e minha avó Sabina combinaram tudo, e assim naquela madrugada vó Sabina fingiu ir até a lavoura de mandioca e foi para a cabana de pau-a-pique, chegando lá meu pai Thabó, minha mãe Ana Clara e eu ainda bebê embarcamos na carroça. Meu pai Thabó