Diário: Numa tarde de sábado resolvi caminhar numa longa estrada com flores campestres de cada lado, até parecia que alguém as plantou e cuida de tamanha beleza. Não sei se foi coincidência ou providência Divina, Thabó me aparece com a carroça indo num antigo plantio buscar mudas de mandioca. Ao ouvir o atropelo do cavalo fiquei encostada para dar caminho e eis que surge a mais bela paisagem, Thabó conduzindo o cavalo na velha carroça entre as flores que no balançar assopradas pelo o vento exalou um doce perfume. Thabó freou o cavalo e perguntou-me o que eu fazia ali.
Respondi que estava apreciando as flores do campo. E assim, ele me fez o convite para acompanha-lo até o seu destino buscar mudas de mandioca.
-Não será perigoso? Alguém pode nos ver. ‘Um olho só’ esta disfarçando, mas está a nos espionar. Ana Clara.
- O meu destino é solitário, isolado e não demoro carrego a carroça com as mudas e voltamos. Deixo você aqui e termina de chegar a pé. ‘Um olho só’ está coordenando a colheita de café. Thabó.
E foi assim que Thabó me estendeu a mão para que eu subisse na carroça. E lá fomos nós com toda felicidade do mundo de carona conosco na carroça.
Thabó carregou a carroça com as mudas de mandioca e voltamos pelo o caminho cercado de flores, foi aí que o azar tomou o lugar de nossa felicidade de. Thabó resolveu frear o cavalo, apear e colher para mim algumas flores. Estávamos tão entretidos que não vimos que ‘Um olho só ‘passou pelo o treeiro entre as flores e a mata e nos viu. Fizemos como o combinado, Thabó me deixou antes da entrada do Engenho e foi embora rápido.
-Vou deixar você aqui, Ana Clara. Vai embora rápido para o casarão. Já vai escurecer. Cuidado com animais selvagens.
-Sim. Eu vou rápido. Temos que tomar cuidado com ‘Um olho só’. Até Thabo! Adorei o passeio.
Já estava para escurecer. Assim que aproximei do jardim, na frente do casarão, alguém segurou forte a minha mão. Olhei assustada e na penumbra, entre o fim de tarde e o inicio da noite, lá estava ‘Um olho só’. E o que ele fez, eu aprendi no colégio interno que se chama ‘chantagem’.
-Onde pensa que a sinhazinha do papai vai? ‘Um olho só’.
-Me solta, ou vou gritar. Ana Clara.
-Grita. Grita e aí eu já falo para o coronel dos seus passeios ás escondidas com o nego Thabó. A não ser que eu recebo em troca de meu silêncio algum agrado. Algumas moedas, quem sabe um carinho, se nego Thabó recebe carinho eu também posso... É pegar ou largar. Eu dou um tempo. Se a Sinhazinha não me fizer um agrado eu vou ser obrigado, por lealdade, contar o que eu tenho visto para o coronel Antero. ‘Um olho só.
-Faça o que quiser! Seu... Ana Clara.
Saí rápido de perto daquele ‘ coisa ruim’.
Mas eu precisava pensar numa forma de pagar pelo o silêncio de ‘Um olho só.
O azar duplicou, quando meu pai viu da sacada do casarão que ‘Um olho só’ estava a me dar uma lição. Só que a esperteza no meu pai é o que não falta. Ele não me falou nada e já foi perguntar o que era ‘aquilo’ que ele viu para ‘Um olho só’ que não quis ficar mal com o coronel e deu com a língua nos dentes em meu desfavor.
No dia seguinte, descendo as escadas para o café da manhã, meu pai estava no final da escada com as mãos para trás.
Assim que eu pisei abaixo do ultimo degrau, coronel Antero me pegou pela a mão e já saiu me arrastando rumo ao tronco, próximo da Senzala. Sabina ainda saiu atrás implorando para que meu pai não fizesse isso, que era pecado. E que Thabó só havia me dado carona por já está escurecendo.
-Cala a boca escrava velha! Senão vão sobrar umas chibatadas para você também. Coronel Antero Ferrão.
O meu pai, o rico e poderoso coronel Antero Ferrão tinha espuma no canto da boca, como um cão raivoso e os seus olhos estavam saltando para fora de tanto ódio.
Aproximando do tronco eu avistei Thabó que já estava com as mãos presas no tronco, abraçando-o. E lá estava o ‘coisa ruim’ do ‘Um olho só’ me aguardando. O dia estava a chorar por nós dois, o vento frio e lento mal balançava as flores e a chuva fina parecia lagrimar numa manhã de pavor, dor e tristeza.
Ao amarrar as minhas mãos no tronco, eu de um lado e Thabó do outro. Eu cuspi na cara desse que infelizmente eu chamo de pai e o excomunguei.
-Deus e a virgem Maria vão lhe dar o castigo merecido. Esse dia há de chegar.
-Mas, agora, é a filha desobediente e um negro safado que vão receber o castigo merecido. ‘Um olho só’, preste bastante atenção para não errar. Eu vou contar as chibatadas. Vinte e cinco em cada um.
Eu ouvi o choro de Sabina e as suas orações pedindo clemencia Divina e senti que Thabó encostou a sua mão na minha mão presas ao tronco e então o meu pai gritava: Uma! E ‘Um olho só’ descia a chibata com toda força nas costas de Thabó. Duas! Aí era a minha vez de receber a chibata nas minhas costas nua, uma vez que meu pai havia rasgado o meu vestido. E assim, sucessivamente, recebemos vinte e cinco chibatadas cada um, mais tarde eu fiquei sabendo que eu desmaiei e Thabó começou a implorar que batesse só nele e parasse de me bater, então, meu pai ao chegar nas cinquentas chibatadas gritou:
-Cinquenta chibatadas mais uma! Nesse negro desgraçado! Deixe-os aí ‘Um olho só’ que lá vem à chuva e quem sabe não lava a falta de vergonha dos dois.
Acordei com Sabina e os outros escravos nos tirando do tronco. Levaram-nos para a Senzala e velho preto Curandeiro ferveu ervas e plantas e colocava ‘emplasto’ de folhas nas feridas de nossas costas.
-Cuide de meu filho e de minha Sinhazinha preto Curandeiro. Eu já vou indo cuidar de meus afazeres no casarão, antes que sobram chibatadas para eu também. Mais tarde eu venho trazer umas cobertas para sinhazinha e uma forte canja de fubá. Eles vão ter muita febre.
Eu acordava, olhava para Thabó ao meu lado e adormecia novamente de tanta dor.
Ficamos deitados nas esteiras de taboca e sob os cuidados do velho preto Curandeiro uns quatro dias. Isso porque nós contamos com a cumplicidade dos dias chuvosos, ao contrário, Thabó teria que ir para a lida com as costas feridas.
Estávamos quase recuperados, Sabina veio me buscar para o casarão, cumprindo ordens de meu pai.
-Eu não quero voltar para casa, agora, Sabina. Ana Clara.
-São ordens do coronel. Disse que se eu não te levar, eu vou apanhar que nem uma cadela. Sabina.
-E Thabó?
-Deixa que eu cuido dele. Ele já tem que voltar para a lida. Mas eu vou trazer canja de fubá para ele todo final de tarde e velho preto Curandeiro vai dar lhe de beber chá curativo. Sabina.
Ainda me sentia zonza e com dor na alma, mas tive que voltar para o casarão, para evitar que Sabina recebesse um castigo.
Sabina me banhou na água com sal e pétalas de rosas brancas e me pôs para dormir. Fiquei alguns dias sem descer para fazer parte das refeições, eu não conseguia sentar a mesa junto de meu pai.
Todas as manhãs eu fico na janela de meu quarto até ver Thabó passar. Só podemos, durante um tempo, abanar as mãos um para o outro.
Numa noite dessas ouvi os passos de meu pai aproximando da porta de meu quarto, cobri-me e fingi que dormia um sono profundo.
A virgem Maria que me perdoe, mas não estou preparada para por os olhos em meu pai. Eu senti quando ele passou a mão em meus cabelos e falou baixinho:
-Ela ainada está frágil por causa das chibatadas, a falecida mãe dela deve de ter me amaldiçoado por isso, mas foi por uma boa causa. Agora deve de deixar de ter amizade com aquele negro Thabó. Eu vou ter que espera um pouco para marcar um jantar de noivado. Não posso apresentar para pretendente nenhum uma noiva com essa cara abatida. Vou falar para Sabina abater e fazer umas sopas de galinha, assim ela melhora essa aparência.
Depois que eu ouvi a porta se fechando e os passos de meu pai se afastando eu peguei o meu Rosário e fui orar a Deus e Virgem Maria para que apontasse uma possível solução para o nosso amor impossível e que protegesse a mim e a Thabó das crueldades de meu pai e de ‘Um olho só.
Catarina Diniz Sá: Eu sinto muito, mas além das páginas do diário estarem frágeis, amareladas eu ainda deixei que minhas lágrimas pingassem sobre algumas letras. Os homens daquela época não tinham coração, humanidade e com toda certeza não conhecia o que era o ‘amor’.
Ana clara ficou entre a crucificação e a ponta da espada. De um lado a chantagem do capitão do mato que exigia bens ou até uma possível relação, ou algo assim. Do outro lado a crueldade do pai, coronel Antero Ferrão que com o aval da informação de ‘Um olho só’ que eu penso que pode até ter acrescentado mais alguma coisa. Quanta barbárie! Contar as chibatadas que feriam as costas da própria filha e ainda acrescentar mais uma nas costas de Thabó por querer poupar Ana Clara que já havia desfalecido de tanta dor.
Eu não aguentaria receber vinte e cinco chibatadas nas costas. Pobre Thabó e Ana Clara! Eu fico para entrar, de alguma forma dentro da narrativa do diário e fazer parte da triste história para ajuda-los de alguma maneira. E por pouca ‘coisa’ a escrava Sabina fica a mercê de ser castigada, de tomar chibatadas. Quanta leviandade em ir certificar se a filha estava com boa aparência para marcar o jantar de noivado com um pretendente que o pai que escolheu. Eu preciso encontrar ‘forças’ para prosseguir com a leitura do diário de Ana Clara.
Diário: Todo o dia Sabina passa em minhas costas sebo de carneiro e babosa para que as cicatrizes causadas pelas as chibatadas desapareçam. Eu sempre falo para Sabina que as piores e dolorosas cicatrizes estão em minha alma. Se não bastasse a perseguição de ‘Um olho só’ e a crueldade de meu pai coronel Antero Ferrão, para completar o nosso sofrimento, o negrinho Saci ouviu meu pai dando ordens para ‘Um olho só’ separar os negros na Senzala, pois ele já fechou negocio e o novo proprietário está a aguardar a ‘mercadoria’ na feira da cidade, eles vão em gaiolas-carroças até o porto e de lá seguirão de navio para longe. -Deixe os escravos mais novos na Senzala. Eu já fechei negocio nessa remessa. Deixe também próximo do casarão às gaiolas-carroças. E preste atenção ‘Um olho só’, dessa vez o negro Thabó está no ‘lote’. Sempre deixei ele fora das vendas por ele ser forte e bom de serviço, mas dessa vez ele vai também e para bem longe. Coronel Antero Ferrão.<
Diário: Aqui no Engenho, os dias e as noites continuaram os mesmos, o dia cheio de negros cuidando, trabalhando no Engenho ou levando chibatadas no tronco, de modo que a ‘liberdade’ até parece se esconder na mata com medo do coronel Antero e de ‘Um olho só’, as noites com a sua sensualidade, contando com a beleza da lua e das estrelas no céu, o coaxar dos sapos no rio, a cantiga dos pássaros e grilos em coro unido e vindo ao barulho do vento. Algumas dessas noites o som dos tambores na Senzala se faz especial. Se coronel Antero e ‘Um olho só’ já estão recolhidos em seus aposentos eu e Sabina, vamos até a Senzala apreciar a dança dos escravos e o batuque dos escravos. Assim eu e Thabó ficamos alguns minutos juntos. Temos que tomar cuidado, pois vivemos sob fortes ameaças até de: -Se eu te pego com esse negro Thabó, não sei do que eu sou capaz. Até de te matar! Ouviu Ana Clara? Coronel Antero Ferrão. Numa noite Thabó foi até a minha janela e me a
Diário: Querido diário, eu preciso desabafar o pavor que eu senti quando desci do meu quarto e lá na sala do casarão estava meu pai o coronel Antero e um homem, alto, com um chapéu caro e usando um terno de linho caro num tom de azul marinho, idade trinta anos. Assim, que eu o vi, sabia que não era algo de bom para mim. Eu mal botei o pé no ultimo degrau da escada, descendo, meu pai já foi logo me apresentando com um largo sorriso nos lábios, o que é muito raro. -Primo Luano, essa aqui é minha pedra preciosa, Ana Clara, está na hora de casar e eu tenho certeza que vai te dar uns quatro filhos como é de seu desejo. Cumprimente seu noivo, Ana Clara. Coronel Antero. -Boa noite, Ana Clara. Eu sou Luano, acabei de chegar da Europa, onde me formei em advogado. Meus pais têm fazendas na Bahia e Goiás, estava indo para Goiás e resolvi passar aqui para lhe conhecer e fazer a ‘corte’. Antero enviou uma carta para meus pais falando do encanto de filha que
Diário: A vida me reservou mais uma surpresa. Não só para mim, mas para Thabó também. Ah, se tudo fosse diferente, a felicidade seria transbordante, mas o que está para se revelar é mais um motivo para estratégia de sobrevivência, ou melhor, de salvação. Fui de manhã até a cozinha e estava comendo manga verde com sal, que Thabó colheu para mim. Sabina se virou do fogão a lenha, fez uma cara de espanto e comentou: -Ana Clara, minha filha, tem muito tempo que eu desconfio, mas não falo nada, mas você e o Thabó não andam brincando por ‘ai’ como duas crianças, as brincadeiras dos dois agora são outras. Né? Eu parei de comer manga com sal e respondi baixinho: -Nós temos um lugar só nosso. É nosso segredo. Sabina veio até próximo, botou a mão na minha barriga e disse: -E essa barriga? Como vai fazer para esconder esse segredo? Essa barriga diz que você e Thabó podem cavar onde vocês serão sepultados. Sa
Diário: Até agora o nosso plano está dando certo, mas já pensamos num segundo plano. O bebê copo de leite está forte e bem de saúde. Ele fica no jacazinho de taboca, na Senzala, escrava Mudinha vai até ele para amamentar no dia e a noite eu fujo com a ajuda de Thabó e vamos para a Senzala onde fico um pouco com Thabó, amamento e dou amor para o nosso bebê. Eu me arrisquei a pedir para coronel Antero para que me deixasse fazer uma visita para tia Tereza Santina o que foi negado aos gritos. Thabó chamou Sabina e pediu para que me desse um recado e ao ouvir esse recado era para eu tomar muito cuidado em relação ao meu estado físico e ao bebê copo de leite. Thabó contou para Sabina que ‘Um olho só’ descobriu o bebê copo de leite na Senzala e foi falar para coronel Antero Ferrão, ele disse: -Coronel Antero, a nega Mudinha deu a luz a um menino branco. O que eu faço com ele? É branco que doí as vistas. ‘Um olho só’. -Ora, ora,
Diário: Não que eu deseje o mal para o meu pai, o poderoso coronel Antero Ferrão, mas eu e Thabó vivemos de ‘catar’ as migalhas de tempo e oportunidade para ficarmos juntos e dar carinho e amor para o nosso bebê. Coronel Antero Ferrão está com muita febre, ‘Um olho só’ já buscou médico na cidade que receitou medicamentos, chás e muito repouso. E é claro que eu e Thabó aproveitamos para irmos para a nossa cabana de pau-a-pique com o nosso bebê. ‘Um olho só’ aproveita e bebe cachaça em exagero e dorme cedo. Thabó me aguardou abaixo do chiqueiro dos porcos já com o nosso bebê no cestinho de taboca. Ele está saudável e cada vez mais lindo. E esta crescendo, já movimenta as mãozinhas e com os pezinhos, sorri e balbucia. Thabó tem muita cautela e amor pelo o nosso filho. Nós contamos com os raios da lua para clarear o caminho em que passamos e com a sorte e a proteção da Virgem Maria para que não sejamos atacados por bichos selvagens, já que passamos próxim
Diário: Eu, João Carlos Thabó Baptista, filho de Ana Clara Ferrão Gregório Baptista e Thabó, chamado carinhosamente na infância de bebê copo de leite, atendo ao pedido de meu querido e amado pai, Thabó: Assim é com imenso prazer que eu escrevo palavras tristes ditadas por meu pai com o objetivo de finalizar o diário de minha querida e brava mãe, a sinhazinha Ana Clara. Já fazem vinte anos que numa fuga em busca de liberdade e dignidade que aconteceu o ‘pior’ mas foi a partir desse ‘pior’ que hoje eu João Carlos Thabó Baptista sou um homem livre, sei ler e escrever e agora vou anotar as tristes e dolorosas palavras de meu pai Thabó. Meu pai relembra a fuga, conta que tinha tudo para ter dado certo, ele, minha mãe e minha avó Sabina combinaram tudo, e assim naquela madrugada vó Sabina fingiu ir até a lavoura de mandioca e foi para a cabana de pau-a-pique, chegando lá meu pai Thabó, minha mãe Ana Clara e eu ainda bebê embarcamos na carroça. Meu pai Thabó
O meu pai tem loucura com fazendas antigas, sempre que encontra uma que esteja para vender, ele a compra, às vezes até com pertences antigos dentro delas. Sempre fala que pode ser encontrado no meio das ‘velharias’ algo com valor ou serventia. Em pleno ano de 1924 o meu pai acabou de fechar a compra de uma fazenda velha que teve o seu ‘vigor’ e alta produtividade por volta de 1822/1840. Então, eu me chamo Catarina Diniz Sá filha de Diniz Sá Mendes. E foi mexendo num baú empoeirado guardado no porão da velha casa, numa fazenda que meu pai comprou que eu encontrei a mais bela e triste história de amor narrada num velho diário datado de 1822. A sua narrativa em letras quase apagadas, escritas com os instrumentos, pena e tinteiro começam a história por volta de 1805. Diário: Eu Ana Clara Ferrão Gregório Baptista nasci em 1805 na Fazenda Engenho Escondido, cidade de São Joaquim de Iboré-Minas Gerais-Brasil, filha de coronel Antero Ferrão Gregório Baptista e de min