—Os Estripadores nunca falharam, meu Amo, são seus próprios filhos, suas próprias crias, sangue do seu sangue. Esse caçador não terá vida em seu corpo até o amanhecer – bajulara o serviçal.
—Que assim o Mestre permita.
A pequena criatura se afastara da porta para o corredor com um sorriso na boca enorme que ia de orelha a orelha. Seus olhos eram amarelados e brilhavam todo o tempo, tinha nariz e orelhas longas e afinaladas e duas fileiras de dentes finos e pontiagudos em suas arcadas. Era baixo, corcunda e possuía braços mais longos que as pernas, com mãos pequenas de longos e finos dedos.
Vivia constantemente tocando os dedos de uma mão com os da outra como se estivesse planejando algo, mas a verdade era que apenas seguia ordens. Suas longas unhas eram negras de sujeira e velhice. Levava consigo um número sempre impreciso de lâminas que usava para torturar os outros serviçais do Supremo Licantropo daquele lugar.
Menos de cinco minutos depois, os Estripadores saíram para caçar.
A visão do caçador caminhando pelo pântano era notável. O guerreiro vestia um traje azul e branco, com ornamentos prateados. A peça principal compunha um sobretudo acima de uma túnica, no qual um número indefinido de armas escondidas se fazia presente. Usava luvas brancas com o brasão em forma de cruz na parte superior e diversas fivelas prateadas prendiam as vestes ao corpo no abdômen, braços, coxas e tornozelos.
Carregava uma espada longa na cintura. A bainha negra era ornamentada com desenhos talhados à mão em pequeninas peças de ouro. A mão esquerda estava sempre segurando a bainha com força, enquanto a outra estava sempre pronta para o imprevisto.
O jovem parara, enrijecendo os músculos relaxados do corpo. Erguera a cabeça, fixando o olhar vários metros à frente. O odor forte daquelas criaturas era marcante, um fedor que podia causar náuseas em pessoas despreparadas e marcar sua presença nos territórios que dominavam. Desde o momento em que pisara naquela terra, Natham sabia que aquele era o local do covil daquelas criaturas. Lycans.
Diferente de lobisomens comuns, Lycans eram capazes de escolher quando desejavam se transformar, podiam se passar por humanos comuns, fingindo ser andarilhos ou pedintes nas aldeias. Suas formas humanas eram sempre sujas e esfarrapadas, razão pela qual nunca podiam se passar por nobres ou coisa do tipo. Seus modos também eram rústicos e rudimentares, mesmo na forma humana não eram mais do que animais rudes e irritantes.
Mesmo assim eram capazes de se conter durante a presença da Lua Cheia e tinham muito mais poder durante as noites de Lua Vermelha, a chamada Lua Sangrenta. Ironicamente, há poucos minutos o caçador percebera a coloração da lua no céu mudar do branco gélido para o vermelho púrpura como sangue.
Agora ele sabia que tinha um grande obstáculo pela frente.
Um número não identificado de Lycans cercara o jovem combatente.
O cheiro dos mesmos se misturava aos odores pútridos do pântano onde estavam e ele não era capaz de identificar as criaturas, senão pelas que estavam mais próximas. Podia sentir pelo menos uma dúzia deles transformados, suas respirações ofegantes e sua excitação ante a batalha.
Eram monstros cruéis prontos para morrer a qualquer momento. Apenas um deles, poucos metros à frente do jovem, estava em sua forma humana. Era um sujeito grande, careca e com diversas cicatrizes pela cabeça, face e tórax.
Considerando que apenas armas sagradas ou feitas de prata eram capazes de deixar marcas naqueles seres, era um combatente veterano. Vestia uma capa feita da pele de algum animal, um cinturão que servia para prender o tapa sexo e alguns ossos de inimigos como enfeites.
Na mão direita uma espada brilhava com a cor da lua.
—Carniceiros… – dissera o caçador, encarando o inimigo.
—Somos chamados por muitos nomes – rosnara o sujeito – Mas preferimos o termo Estripadores. Esperava que fosse maior, sequer há carne para alimentar um de nossos filhotes.
O caçador estreitara o olhar, estudando o inimigo.
—Não se deixe enganar, animal. Foram enviados unicamente para testar a minha força. Seu único propósito aqui é serem exterminados. Não será rápido e nem indolor. Se preparem para retornar ao inferno de onde jamais deveriam ter saído! – respondera Natham, desembainhando a espada cuja lâmina de prata brilhava vermelha sob a luz do luar.
O monstro rangera os dentes diante da arma. Além da prata canonizada, haviam centenas de inscrições ao longo da lâmina com orações para as mais diversas situações de combate contra criaturas como aquelas.
Furioso, o Lycan então deixara que a capa caísse e soltando a fivela do cinto, o mesmo também fora ao chão. Segundos depois, começara a ter espasmos e se contorcer e o caçador sabia o que aquilo significava.
Natham saltara de onde estava com a arma preparada para o ataque. Após um movimento circular em que sua silhueta azul e branca se confundira com o efeito do deslocamento da lâmina, a espada voltara a aparecer descendo em grande velocidade apontando para a cabeça da criatura que se transformava.
O tilintar de metal se chocando contra metal fora ouvido no momento em que a espada colidira contra um bracelete de chumbo temperado.
Sem oferecer qualquer chance para contra-ataques, o caçador saltara para trás em uma posição estrategicamente defensiva. Havia um enorme Lycan de pelos negros e olhos vermelhos diante daquele que parecia ser o líder do bando. Este usava braceletes, um colar adornado com ossos e pedras com estranhas inscrições e brincos de ossos nas grandes orelhas. Tinha uma cicatriz em forma de cruz na testa e presas brilhantes aparecendo fora da boca.
Maldição – pensara o rapaz – Lycans eram lobisomens preparados para a guerra. Quando antecipados sobre os eventos que aconteceriam, podiam fazer uso de armas e armaduras. Isso lhes conferia grandes vantagens no combate se somado ao seu tamanho e poder.
O barulho ensurdecedor de uivos começara a ser ouvido por quilômetros. Aquilo era, para aquelas criaturas, o mesmo que o bater de tambores de guerra para outras unidades tribais em guerra. Natham agradecera ao Lorde Sagrado pela quantidade de armas de prata canonizada que possuía. Diferente das armas de prata comuns, essas armas abençoadas feriam seriamente apenas com um reles toque e podiam ser mortais mesmo com ataques medianos acertados.
Dois Lycans que se encontravam respectivamente à sua esquerda e direita atacaram ao mesmo tempo. Fora um ataque simultâneo, mas nem um pouco sincronizado. Até onde entendia, Lycans, em suas tribos, treinavam lutando uns contra os outros, mas nunca em duplas, trios ou grupos.
Eram criaturas orgulhosas e sua hierarquia se baseava em poder.
Resumindo, todos abaixo do Supremo Licantropo da região eram iguais e os mais fortes comandavam e eram respeitados pelos demais. E no que diz respeito a poder, se tratando daqueles seres, era justo classificar como fúria, voracidade, crueldade, brutalidade e declarações objetivas de violência.
No momento em que ambos atacantes estavam prestes a atingi-lo, Natham se esquivara com uma cambalhota em um movimento extremamente treinado e aprimorado, lançando suas adagas. Uma das criaturas fora atingida em um dos olhos, enquanto o outro fora atingido de raspão no braço.
Um terceiro lobisomem apoiara nas costas daquele primeiro atingido no olho e cravando suas garras na pele do animal para ganhar impulso se lançara contra o caçador com a boca aberta e as presas à mostra.
Natham tinha instantes preciosos para tomar suas decisões e sem escolhas, arremessara a espada contra a criatura. A lâmina de sua arma penetrara a boca do monstro e a atravessara. A besta tombara com a espada trespassada por sua cabeça em uma grande poça de sangue vermelho escuro. O outro lobisomem fora recebido por novas adagas, que dessa vez feriram seriamente seu peito.
Enquanto pensava em uma forma de remover aquelas lâminas que doíam tanto, Natham lhe atingira com um chute direto. A bota do guerreiro tinha solado com pregos de prata preparados para aquele tipo de situação. A besta tombara inconsciente, embora vivo. Aquelas marcas em sua face jamais desapareceriam enquanto o monstro vivesse.
Um novo Lycan surgira ao lado do caçador e o atacara com uma espada. Era uma arma grande, pesada e com a lâmina cheia de dentes. Certamente a criatura não se preocupava em cortar seus inimigos, bastava quebrar seus ossos com o peso da arma e sua força descomunal.
Natham se defendera com o punho. Abaixo da cobertura de couro presa por fivelas que usava como bracelete havia uma placa de metal desenvolvida para se defender de ataques como aquele. Era comum para um caçador como ele ter diversas formas de ataque e defesa, bem como armas pequenas escondidas sob o traje. Cerrando o punho da outra mão, três garras de prata com cerca de trinta centímetros de comprimento cada surgiram por cima da luva.
O contra-ataque fora preciso e direto no coração do atacante. O gigantesco lobo cinzento tombara sem vida, com a espada ainda em punho.
Outros lobisomens continuavam os ataques e o guerreiro, sem sua espada, resistia fazendo uso das garras de prata, agora em ambos punhos. Da parte de cima de cada mão, três lâminas afiadíssimas faziam enormes retalhos na pele dos monstros que se aproximavam. Não demorara para entenderem que era impossível um ataque direto contra o caçador, que treinara especialmente para aquele tipo de batalha.Como saída para aquela situação, as criaturas tomaram uma medida que surpreendera até mesmo o jovem treinado para aquelas batalhas. De longe, os Lycans se colocaram em formação circular em torno de Natham e começaram a atirar pedras contra o rapaz. Mesmo que atacasse os inimigos, haviam muitos para derrubar e para cada um que o guerreiro abatia dois outros continuavam a lançar projéteis de rocha apanhados do chão contra ele.Os Lycans sabiam que aqueles ataqu
De qualquer forma, a excitação pelo combate parecia ter acabado. Bastava.O caçador recolhera as lâminas do chicote, que voltara a ser uma espada. Se fosse necessário, em um instante ele poderia o sacar novamente.Voltando a caminhar, passara a poucos metros de um Lycan encolhido que nem se mexera, sequer movera o olhar. Poderia o exterminar antes que pudesse pensar em reagir, mas não o fizera. As criaturas haviam se rendido e sua batalha agora não era com eles, não mais, não nessa noite. Em breve, ele e o Supremo Licantropo que levara sua amada haveriam de se encontrar.Aquela era a sua batalha e ele estava ansioso por ela.O GuardiãoUm castelo? Natham custava a acreditar na visão diante de si.Havia acabado de chegar ao alto da colina quando contemplara a magnifica construção após o pântano à sua fre
O medo fora a causa da morte de muitos companheiros, o medo levava à hesitação, a hesitação trazia falhas de pensamento, de raciocínio lógico, de enxergar com clareza as oportunidades diante de si, as inúmeras possibilidades de reverter o fluxo dos combates a seu favor.Natham sabia que precisava manipular o inimigo a tomar as decisões que ele queria. Esse era o segredo de se vencer qualquer tipo de batalha. Quando fora recebido pelos Mestres, pelos Mentores e outros membros das tropas da Ordem, o Mentor que o adotara como discípulo junto de outros jovens camponeses como ele, os ensinara a jogar um jogo de tabuleiro muito antigo, esquecido por muitos, chamado Xadrez.—O que podemos aprender com um jogo? Se temos tempo livre para jogar, deveríamos estar treinando! – dissera um dos garotos.—Observe e aprenda – foram as únicas palavras do M
O exterminador de demônios estava preso pelos dois punhos do inimigo que o segurava pelos ombros, apertando com força à medida que ganhava altura. Daquela forma era impossível para o caçador o atingir com as garras, pois seus braços estavam imobilizados. Contudo, nada havia saído diferente do planejado. Como em um jogo de Xadrez, as peças estavam posicionadas da forma como Natham havia previsto. Da forma como planejara.Batendo uma das mãos na cintura, o caçador abrira um pequeno frasco de Água Benta e uma vez mais a criatura fora embebida pelo líquido, que dessa vez lhe atingira a face e o peito. Olrox fechara os olhos e soltara um dos ombros do oponente, levando à mão ao rosto na tentativa de se livrar do líquido queimando seus olhos. No impulso, parara de bater as asas e ambos, a criatura e sua presa começaram a cair em queda livre por quase dez metros de altura.<
Apesar de não parecer quando visto de baixo, a torre negra tinha um terraço extremamente amplo. Natham estimara pelo menos cem metros de diâmetro, mas poderia ser mais, uma vez que sem qualquer ponto de referência, era difícil calcular com precisão. Havia ali diversos objetos como caixas e gigantescas balestras, certamente usadas no passado para a proteção do perímetro.Após poucos passos, o caçador contemplara a cena mais aterrorizante e chocante de toda sua vida. Deitada sobre o que parecia um grande caixão de pedra retangular, estava sua amada. Porém, a mesma permanecia imóvel, como se estivesse inconsciente e não notasse sua chegada.Usava um vestido com a parte superior branca e a saia vermelha.Não – pensara, já correndo ao encontro da mulher.A longa saia do vestido não era vermelha, o cheiro forte carregado pel
—Não entendo o que quer dizer, monstro… – rugira Natham, as lágrimas lhe escorrendo pela face, cuspindo saliva e sangue enquanto falava tomado pela fúria – Mas irei me certificar de que desapareça para sempre desse mundo.O Supremo Licantropo seguira calmamente até uma parede onde dezenas de armas gigantescas estavam jogadas. Natham não se movera um milímetro, talvez aquela fosse sua última luta. A criatura apanhara um martelo de cor negra, brilhante como se tivesse acabado de sair da forja, cuja empunhadura tinha quase a sua altura. Natham imaginara que nem dez homens dos mais poderosos que conhecia seriam capazes de erguer aquele artefato.—Venha com todas as suas forças. O esmagarei ao primeiro erro. Irá sentir a dor da morte como se durasse séculos antes de ser levado pelo Anjo para o mundo dos mortos… – quase de costas para o rapaz, a c
Havia uma saída – pensara o rapaz, refletindo sobre a situação.Era uma última cartada, sairia vitorioso ou morreria tentando. Sabia que se seu velho Mentor o visse ponderando vitória e derrota daquela forma, jamais o perdoaria. Não importava mais, ele não era mais aquele homem. Aquele Natham estava morto – Phelix ironicamente tinha razão.Ainda assim, mesmo com esse pensamento negativo, acreditava que tinha mais de oitenta por cento de chances de sucesso. Ele ainda era capaz de pensar, essa era a diferença entre homens e feras.Essa era a vantagem dos homens sobre as feras.Correndo como se tentasse fugir, Natham avançara para a direção onde o inimigo lançara sua espada. Precisava dela. Assim como esperado, o sombrio lobisomem sobrenatural reagira, correndo atrás de sua presa. O caçador saltara em meio às
O massacreNatham Benfort retornava para o lar após dois anos de batalhas incessantes no Norte em nome da Sagrada Ordem da Revelação. Diferente do jovem que partira da pequena aldeia de camponeses com dezesseis anos, agora, apesar da pouca idade, o rapaz já tinha em suas mãos mais sangue que muitos homens teriam durante toda a vida.No entanto, o mesmo havia sido instruído pelos Altos Sacerdotes de que nada do que havia vivenciado ou aprendido devia ser revelado para as pessoas comuns. Os segredos da igreja e da guerra não deviam ser do conhecimento de todos os homens.O terror presenciado pelo rapaz quase o consumira ainda nas primeiras semanas após sua partida, logo que encontrara as hordas de criaturas das trevas e presenciara em primeira mão tudo que elas faziam aos homens. Fora preciso muita frieza para adentrar vilarejos e aldeias repletos de pessoas massacrad