LUA SANGRENTA
LUA SANGRENTA
Por: Dan Yukari
01

O massacre

Natham Benfort retornava para o lar após dois anos de batalhas incessantes no Norte em nome da Sagrada Ordem da Revelação. Diferente do jovem que partira da pequena aldeia de camponeses com dezesseis anos, agora, apesar da pouca idade, o rapaz já tinha em suas mãos mais sangue que muitos homens teriam durante toda a vida.

No entanto, o mesmo havia sido instruído pelos Altos Sacerdotes de que nada do que havia vivenciado ou aprendido devia ser revelado para as pessoas comuns. Os segredos da igreja e da guerra não deviam ser do conhecimento de todos os homens.

O terror presenciado pelo rapaz quase o consumira ainda nas primeiras semanas após sua partida, logo que encontrara as hordas de criaturas das trevas e presenciara em primeira mão tudo que elas faziam aos homens. Fora preciso muita frieza para adentrar vilarejos e aldeias repletos de pessoas massacradas, alguns simplesmente destroçados.

Muitos estavam mutilados, espalhados por toda parte, enquanto outros eram transformados em monstros, alterados, seus corpos sagrados agora usados pelo Senhor das Trevas para servirem em seus exércitos na forma dos mais diversos tipos aberrações, de zumbis a lobisomens e vampiros.

Era bem verdade que Natham nunca havia se encontrado com um Lorde Vampiro ou um Supremo Licantropo e agradecia a Deus em todos os momentos por isso, mas simplesmente os servos menores que confrontara já haviam sido o suficiente para que temesse as bestas com todo seu coração.

As pessoas da aldeia estavam escondidas dentro de suas humildes casas. Nos últimos três dias os uivos haviam sido incessantes durante todas as noites. Aquela, enfim, era a temível primeira lua cheia do mês, o amaldiçoado mês de outubro, mês que recordava a todos os crentes do Massacre no Vaticano 500 anos antes, quando as criaturas das trevas haviam despertado e retornado ao mundo sob o comando de seu terrível senhor.

Todos sabiam que aquele era um mês de mau agouro, pelo mundo todo as criaturas da noite vagavam e destruíam tudo que encontravam pelo caminho e mesmo para a Sagrada Ordem da Revelação, era impossível proteger a todos, o número de monstros era enorme e com os Portões do Inferno abertos, esse número aumentava cada vez mais e superava imensamente o dos homens.

A noite caíra rápido naquele dia. Os aldeões que haviam se retirado antes mesmo de o sol se pôr estavam todos em suas camas, em suas humildes mesas de jantar, todos com terços nas mãos, orando e clamando pela ajuda de um Deus que os havia esquecido há tempos.

O terror da noite era quase eterno, o simples barulho do vento do lado de fora fazia com que cada um deles tremesse. Em algum lugar de seus corações, boa parte daquelas pessoas esperava que a Sagrada Ordem da Revelação se lembrasse deles, assim como haviam se lembrado no momento em que tiraram o jovem Natham de seu lar. Mas até aquele momento nem mesmo as cartas do pobre rapaz lhes havia alcançado.

Natham viajava pelo vale que levava à aldeia havia duas semanas. Ele e o velho corcel marrom que ganhara como parceiro logo que chegara ao quartel general das tropas da Igreja. Estava ansioso por rever os amigos, rever sua família, sua mãe, seu pai, o ancião e mais que qualquer um, sua noiva prometida, a jovem com quem passara sua infância, que crescera ao seu lado e que lhe jurara seu amor. Havia prometido continuar vivo e retornar para ela tão logo as batalhas terminassem e então se casariam.

As notícias que trazia não eram as que ela eventualmente esperava, mas deveriam ser de maior consolo que se ficassem distantes.

A verdade era que as batalhas em nome de Deus nunca terminariam, não enquanto o Senhor das Trevas tivesse seu brasão ostentado por seus exércitos pelo mundo afora, e jamais enquanto o Portão do Inferno continuasse aberto em Solo Sagrado, no antigo Vaticano. As lutas só terminariam no dia em que os Soldados de Deus em nome da Sagrada Igreja da Revelação conseguissem enviar o cornudo amaldiçoado pelos portões para seu lar de natureza e o selassem, trazendo de volta a verdadeira paz ao mundo.

E ele temia que esse dia não chegasse no tempo que lhe restava nessa vida.

De qualquer forma ele havia sido autorizado a encontrá-la, a se casar com ela e a trazê-la para o acampamento. Haveria um lugar para ela, um lugar que não seria seu lar, mas onde poderia estar em segurança enquanto ele estivesse nas linhas de frente, um lugar onde ele teria o calor de seus braços para se encontrar após retornar de cada batalha vitoriosa.

Anestesiado pelos pensamentos reconfortantes que envolviam Anne, sua paixão, Natham parara à margem do caminho para pernoitar. À sua direita tinha uma vastidão de verde da enorme floresta que o separava de sua amada e à sua esquerda um riacho que serviria para cozinhar o coelho caçado naquela tarde e também para matar a sede do velho corcel marrom.

O cavalo parecia estranhamente incomodado, Natham lhe alisara a crina pensando por um breve momento sobre a estranheza daquela paz. Havia se acostumado a dormir poucas horas e estar alerta aos ataques dos demônios o tempo todo, era incomum para ele estar há vários dias sem nenhuma batalha. Talvez seu velho companheiro se sentisse desconfortável pelo mesmo motivo – pensou. Era triste pensar que jovens como ele, que nascera em uma aldeia de pessoas pobres e desejava apenas uma vida comum e tediosa, tivesse se adaptado ao terror da guerra e se acostumado com o cheiro de morte no ar.

Enquanto olhava para o céu carregado de estrelas, Natham contemplara a gigantesca e majestosa lua cheia reinando e se lembrara de que dia era aquele e dos agouros que trazia. A brisa da noite soprara passando por ele com seu toque gélido, balançado seus cabelos castanhos. Aquela mesma brisa carregava consigo um cheiro forte e inconfundível, um cheiro que Natham havia aprendido a odiar nos últimos anos.

Nesse momento o jovem tivera a certeza daquilo que mais temia.

As trevas estavam mais perto do que nunca de seu lar.

Quando o barulho começara naquela noite, os aldeões sabiam que não seria apenas o vento a aterrorizá-los do lado de fora de suas janelas. Os uivos ao longe foram se tornando latidos mais próximos até que se tornaram rosnados furiosos do lado de fora das casas.

O pesadelo começara com o barulho da destruição em massa que as criaturas faziam nos trabalhos daquelas pessoas. Os animais foram os primeiros a serem atacados, as galinhas, os carneiros e os porcos. Quem dera estivessem apenas assustados ou apenas sido soltos de suas gaiolas e cercados. Mas era mais que isso, mais que travessuras de fadas e duendes, os balidos e cacarejos eram de animais completamente amedrontados experimentando o fio letal das presas e garras de seus predadores. Não importava onde estivessem, suas vidas estavam por fim condenadas por estarem ali e ninguém podia fazer nada.

Quando o barulho pelo impacto dos golpes contra a janela da casa do ancião começara, o mesmo implorara a Deus que tivesse piedade de sua esposa e suas filhas, mas fora um pedido em vão. A janela de madeira explodira para dentro em milhares de farpas e estilhaços. A criatura aparecera grandiosa pela abertura.

Era um gigantesco lobisomem de cor negra que deveria ter mais de duzentos quilos de músculos, carne, ossos e pelos. Os dentes prateados brilhavam sob a luz pálida da lua cheia em seu céu estrelado. Quando o frio penetrara o ambiente vindo do lado de fora, trouxera consigo o anúncio da morte que se aproximava.

O ancião fora a primeira vítima, sua cabeça arrancada de seu corpo pelas mãos do monstro bem diante dos olhos de sua esposa e suas duas filhas. Então a mesma besta avançara e sem rodeios perfurara a barriga da filha mais velha, puxando para fora tripas e órgãos em sangue ainda quente que se espalhava pelo chão.

Aqueles seres demoníacos não lutavam por fome, não estavam em busca de alimento, eram apenas feras procurando por dor e morte, tudo que queriam era o sofrimento dos esquecidos por Deus. A filha mais nova e a esposa do ancião tiveram suas vidas ceifadas em um instante, poucos segundos depois dos dois primeiros. Assim como eles, as famílias restantes eram todas destroçadas, desmembradas e estripadas uma a uma pelas bestas que haviam invadido seu refúgio. Aquela mesma aldeia que servira para gerações antes deles viverem era agora seu último local de repouso, uma enorme tumba tingida com o sangue de inocentes.

Em pouco tempo mais de trezentas vidas deixaram de existir, vidas de pessoas incapazes de se defender, homens, mulheres e crianças comuns que acreditavam em um Deus que não os ouvia e esperavam pela ajuda de uma Igreja que os considerava segundo plano, mandando seus filhos para travar outras batalhas, outras guerras.

Apenas uma vida havia sido poupada, uma vida especial, cuja sorte lhe permitiria continuar existindo apenas para em breve servir a um propósito ainda mais brutal e macabro que o destino de seus conhecidos naquela trágica noite de lua cheia.

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