O massacre
Natham Benfort retornava para o lar após dois anos de batalhas incessantes no Norte em nome da Sagrada Ordem da Revelação. Diferente do jovem que partira da pequena aldeia de camponeses com dezesseis anos, agora, apesar da pouca idade, o rapaz já tinha em suas mãos mais sangue que muitos homens teriam durante toda a vida.
No entanto, o mesmo havia sido instruído pelos Altos Sacerdotes de que nada do que havia vivenciado ou aprendido devia ser revelado para as pessoas comuns. Os segredos da igreja e da guerra não deviam ser do conhecimento de todos os homens.
O terror presenciado pelo rapaz quase o consumira ainda nas primeiras semanas após sua partida, logo que encontrara as hordas de criaturas das trevas e presenciara em primeira mão tudo que elas faziam aos homens. Fora preciso muita frieza para adentrar vilarejos e aldeias repletos de pessoas massacradas, alguns simplesmente destroçados.
Muitos estavam mutilados, espalhados por toda parte, enquanto outros eram transformados em monstros, alterados, seus corpos sagrados agora usados pelo Senhor das Trevas para servirem em seus exércitos na forma dos mais diversos tipos aberrações, de zumbis a lobisomens e vampiros.
Era bem verdade que Natham nunca havia se encontrado com um Lorde Vampiro ou um Supremo Licantropo e agradecia a Deus em todos os momentos por isso, mas simplesmente os servos menores que confrontara já haviam sido o suficiente para que temesse as bestas com todo seu coração.
As pessoas da aldeia estavam escondidas dentro de suas humildes casas. Nos últimos três dias os uivos haviam sido incessantes durante todas as noites. Aquela, enfim, era a temível primeira lua cheia do mês, o amaldiçoado mês de outubro, mês que recordava a todos os crentes do Massacre no Vaticano 500 anos antes, quando as criaturas das trevas haviam despertado e retornado ao mundo sob o comando de seu terrível senhor.
Todos sabiam que aquele era um mês de mau agouro, pelo mundo todo as criaturas da noite vagavam e destruíam tudo que encontravam pelo caminho e mesmo para a Sagrada Ordem da Revelação, era impossível proteger a todos, o número de monstros era enorme e com os Portões do Inferno abertos, esse número aumentava cada vez mais e superava imensamente o dos homens.
A noite caíra rápido naquele dia. Os aldeões que haviam se retirado antes mesmo de o sol se pôr estavam todos em suas camas, em suas humildes mesas de jantar, todos com terços nas mãos, orando e clamando pela ajuda de um Deus que os havia esquecido há tempos.
O terror da noite era quase eterno, o simples barulho do vento do lado de fora fazia com que cada um deles tremesse. Em algum lugar de seus corações, boa parte daquelas pessoas esperava que a Sagrada Ordem da Revelação se lembrasse deles, assim como haviam se lembrado no momento em que tiraram o jovem Natham de seu lar. Mas até aquele momento nem mesmo as cartas do pobre rapaz lhes havia alcançado.
Natham viajava pelo vale que levava à aldeia havia duas semanas. Ele e o velho corcel marrom que ganhara como parceiro logo que chegara ao quartel general das tropas da Igreja. Estava ansioso por rever os amigos, rever sua família, sua mãe, seu pai, o ancião e mais que qualquer um, sua noiva prometida, a jovem com quem passara sua infância, que crescera ao seu lado e que lhe jurara seu amor. Havia prometido continuar vivo e retornar para ela tão logo as batalhas terminassem e então se casariam.
As notícias que trazia não eram as que ela eventualmente esperava, mas deveriam ser de maior consolo que se ficassem distantes.
A verdade era que as batalhas em nome de Deus nunca terminariam, não enquanto o Senhor das Trevas tivesse seu brasão ostentado por seus exércitos pelo mundo afora, e jamais enquanto o Portão do Inferno continuasse aberto em Solo Sagrado, no antigo Vaticano. As lutas só terminariam no dia em que os Soldados de Deus em nome da Sagrada Igreja da Revelação conseguissem enviar o cornudo amaldiçoado pelos portões para seu lar de natureza e o selassem, trazendo de volta a verdadeira paz ao mundo.
E ele temia que esse dia não chegasse no tempo que lhe restava nessa vida.
De qualquer forma ele havia sido autorizado a encontrá-la, a se casar com ela e a trazê-la para o acampamento. Haveria um lugar para ela, um lugar que não seria seu lar, mas onde poderia estar em segurança enquanto ele estivesse nas linhas de frente, um lugar onde ele teria o calor de seus braços para se encontrar após retornar de cada batalha vitoriosa.
Anestesiado pelos pensamentos reconfortantes que envolviam Anne, sua paixão, Natham parara à margem do caminho para pernoitar. À sua direita tinha uma vastidão de verde da enorme floresta que o separava de sua amada e à sua esquerda um riacho que serviria para cozinhar o coelho caçado naquela tarde e também para matar a sede do velho corcel marrom.
O cavalo parecia estranhamente incomodado, Natham lhe alisara a crina pensando por um breve momento sobre a estranheza daquela paz. Havia se acostumado a dormir poucas horas e estar alerta aos ataques dos demônios o tempo todo, era incomum para ele estar há vários dias sem nenhuma batalha. Talvez seu velho companheiro se sentisse desconfortável pelo mesmo motivo – pensou. Era triste pensar que jovens como ele, que nascera em uma aldeia de pessoas pobres e desejava apenas uma vida comum e tediosa, tivesse se adaptado ao terror da guerra e se acostumado com o cheiro de morte no ar.
Enquanto olhava para o céu carregado de estrelas, Natham contemplara a gigantesca e majestosa lua cheia reinando e se lembrara de que dia era aquele e dos agouros que trazia. A brisa da noite soprara passando por ele com seu toque gélido, balançado seus cabelos castanhos. Aquela mesma brisa carregava consigo um cheiro forte e inconfundível, um cheiro que Natham havia aprendido a odiar nos últimos anos.
Nesse momento o jovem tivera a certeza daquilo que mais temia.
As trevas estavam mais perto do que nunca de seu lar.
Quando o barulho começara naquela noite, os aldeões sabiam que não seria apenas o vento a aterrorizá-los do lado de fora de suas janelas. Os uivos ao longe foram se tornando latidos mais próximos até que se tornaram rosnados furiosos do lado de fora das casas.
O pesadelo começara com o barulho da destruição em massa que as criaturas faziam nos trabalhos daquelas pessoas. Os animais foram os primeiros a serem atacados, as galinhas, os carneiros e os porcos. Quem dera estivessem apenas assustados ou apenas sido soltos de suas gaiolas e cercados. Mas era mais que isso, mais que travessuras de fadas e duendes, os balidos e cacarejos eram de animais completamente amedrontados experimentando o fio letal das presas e garras de seus predadores. Não importava onde estivessem, suas vidas estavam por fim condenadas por estarem ali e ninguém podia fazer nada.
Quando o barulho pelo impacto dos golpes contra a janela da casa do ancião começara, o mesmo implorara a Deus que tivesse piedade de sua esposa e suas filhas, mas fora um pedido em vão. A janela de madeira explodira para dentro em milhares de farpas e estilhaços. A criatura aparecera grandiosa pela abertura.
Era um gigantesco lobisomem de cor negra que deveria ter mais de duzentos quilos de músculos, carne, ossos e pelos. Os dentes prateados brilhavam sob a luz pálida da lua cheia em seu céu estrelado. Quando o frio penetrara o ambiente vindo do lado de fora, trouxera consigo o anúncio da morte que se aproximava.
O ancião fora a primeira vítima, sua cabeça arrancada de seu corpo pelas mãos do monstro bem diante dos olhos de sua esposa e suas duas filhas. Então a mesma besta avançara e sem rodeios perfurara a barriga da filha mais velha, puxando para fora tripas e órgãos em sangue ainda quente que se espalhava pelo chão.
Aqueles seres demoníacos não lutavam por fome, não estavam em busca de alimento, eram apenas feras procurando por dor e morte, tudo que queriam era o sofrimento dos esquecidos por Deus. A filha mais nova e a esposa do ancião tiveram suas vidas ceifadas em um instante, poucos segundos depois dos dois primeiros. Assim como eles, as famílias restantes eram todas destroçadas, desmembradas e estripadas uma a uma pelas bestas que haviam invadido seu refúgio. Aquela mesma aldeia que servira para gerações antes deles viverem era agora seu último local de repouso, uma enorme tumba tingida com o sangue de inocentes.
Em pouco tempo mais de trezentas vidas deixaram de existir, vidas de pessoas incapazes de se defender, homens, mulheres e crianças comuns que acreditavam em um Deus que não os ouvia e esperavam pela ajuda de uma Igreja que os considerava segundo plano, mandando seus filhos para travar outras batalhas, outras guerras.
Apenas uma vida havia sido poupada, uma vida especial, cuja sorte lhe permitiria continuar existindo apenas para em breve servir a um propósito ainda mais brutal e macabro que o destino de seus conhecidos naquela trágica noite de lua cheia.
O jovem caçador cavalgava o mais rápido que podia pela trilha entre as árvores. Havia deixado o caminho normal e adentrado a floresta por um atalho que conhecia. Sentia que suas forças não seriam suficientes para confrontar o mal que estava por encontrar, tampouco o caos irreparável que seria feito por ele. O odor fétido que o vento carregava era o cheiro de Lycans, Licantropos, Lobisomens em êxtase, bem próximos de uma batalha. E só havia uma aldeia nas proximidades naquela região.Antes de chegar, Natham já confirmara o que mais temia. O clarão que vinha do pequeno povoado e a fumaça que subia não eram bons sinais. Ao passar pelos campos onde ele mesmo trabalhara nas plantações quando criança, tudo que encontrara fora um terreno vazio e destruído, as plantas haviam sido arrancadas e o solo cavado até a raiz dos vegetais. Além diss
Eram demônios com o tronco feminino, tinham abdômen e seios de mulher, porém, com algumas deformações. As semelhanças ficavam por aí, pois a parte de baixo da cintura era coberta de pelos e no lugar dos pés haviam garras como as das aves. No lugar dos braços haviam asas enormes que tinham até dois metros de envergadura com as quais alçavam voo e se mantinham brevemente no ar. A cabeça era semelhante à de um ser humano, mas toda a arcada dentária era composta de presas longas e pontiagudas. Os olhos eram amarelos com íris espirais. Ao contrário do que pareciam, eram criaturas não apenas selvagens, mas também inteligentes.—Então essa é a criança da Ordem que invade os domínios do Mestre? – grunhira uma delas com sua voz rouca, quase incompreensível.—Parece ser mais jovem do que disseram. Sinto o
—Os Estripadores nunca falharam, meu Amo, são seus próprios filhos, suas próprias crias, sangue do seu sangue. Esse caçador não terá vida em seu corpo até o amanhecer – bajulara o serviçal.—Que assim o Mestre permita.A pequena criatura se afastara da porta para o corredor com um sorriso na boca enorme que ia de orelha a orelha. Seus olhos eram amarelados e brilhavam todo o tempo, tinha nariz e orelhas longas e afinaladas e duas fileiras de dentes finos e pontiagudos em suas arcadas. Era baixo, corcunda e possuía braços mais longos que as pernas, com mãos pequenas de longos e finos dedos.Vivia constantemente tocando os dedos de uma mão com os da outra como se estivesse planejando algo, mas a verdade era que apenas seguia ordens. Suas longas unhas eram negras de sujeira e velhice. Levava consigo um número sempre impreciso de lâminas que usava para
Outros lobisomens continuavam os ataques e o guerreiro, sem sua espada, resistia fazendo uso das garras de prata, agora em ambos punhos. Da parte de cima de cada mão, três lâminas afiadíssimas faziam enormes retalhos na pele dos monstros que se aproximavam. Não demorara para entenderem que era impossível um ataque direto contra o caçador, que treinara especialmente para aquele tipo de batalha.Como saída para aquela situação, as criaturas tomaram uma medida que surpreendera até mesmo o jovem treinado para aquelas batalhas. De longe, os Lycans se colocaram em formação circular em torno de Natham e começaram a atirar pedras contra o rapaz. Mesmo que atacasse os inimigos, haviam muitos para derrubar e para cada um que o guerreiro abatia dois outros continuavam a lançar projéteis de rocha apanhados do chão contra ele.Os Lycans sabiam que aqueles ataqu
De qualquer forma, a excitação pelo combate parecia ter acabado. Bastava.O caçador recolhera as lâminas do chicote, que voltara a ser uma espada. Se fosse necessário, em um instante ele poderia o sacar novamente.Voltando a caminhar, passara a poucos metros de um Lycan encolhido que nem se mexera, sequer movera o olhar. Poderia o exterminar antes que pudesse pensar em reagir, mas não o fizera. As criaturas haviam se rendido e sua batalha agora não era com eles, não mais, não nessa noite. Em breve, ele e o Supremo Licantropo que levara sua amada haveriam de se encontrar.Aquela era a sua batalha e ele estava ansioso por ela.O GuardiãoUm castelo? Natham custava a acreditar na visão diante de si.Havia acabado de chegar ao alto da colina quando contemplara a magnifica construção após o pântano à sua fre
O medo fora a causa da morte de muitos companheiros, o medo levava à hesitação, a hesitação trazia falhas de pensamento, de raciocínio lógico, de enxergar com clareza as oportunidades diante de si, as inúmeras possibilidades de reverter o fluxo dos combates a seu favor.Natham sabia que precisava manipular o inimigo a tomar as decisões que ele queria. Esse era o segredo de se vencer qualquer tipo de batalha. Quando fora recebido pelos Mestres, pelos Mentores e outros membros das tropas da Ordem, o Mentor que o adotara como discípulo junto de outros jovens camponeses como ele, os ensinara a jogar um jogo de tabuleiro muito antigo, esquecido por muitos, chamado Xadrez.—O que podemos aprender com um jogo? Se temos tempo livre para jogar, deveríamos estar treinando! – dissera um dos garotos.—Observe e aprenda – foram as únicas palavras do M
O exterminador de demônios estava preso pelos dois punhos do inimigo que o segurava pelos ombros, apertando com força à medida que ganhava altura. Daquela forma era impossível para o caçador o atingir com as garras, pois seus braços estavam imobilizados. Contudo, nada havia saído diferente do planejado. Como em um jogo de Xadrez, as peças estavam posicionadas da forma como Natham havia previsto. Da forma como planejara.Batendo uma das mãos na cintura, o caçador abrira um pequeno frasco de Água Benta e uma vez mais a criatura fora embebida pelo líquido, que dessa vez lhe atingira a face e o peito. Olrox fechara os olhos e soltara um dos ombros do oponente, levando à mão ao rosto na tentativa de se livrar do líquido queimando seus olhos. No impulso, parara de bater as asas e ambos, a criatura e sua presa começaram a cair em queda livre por quase dez metros de altura.<
Apesar de não parecer quando visto de baixo, a torre negra tinha um terraço extremamente amplo. Natham estimara pelo menos cem metros de diâmetro, mas poderia ser mais, uma vez que sem qualquer ponto de referência, era difícil calcular com precisão. Havia ali diversos objetos como caixas e gigantescas balestras, certamente usadas no passado para a proteção do perímetro.Após poucos passos, o caçador contemplara a cena mais aterrorizante e chocante de toda sua vida. Deitada sobre o que parecia um grande caixão de pedra retangular, estava sua amada. Porém, a mesma permanecia imóvel, como se estivesse inconsciente e não notasse sua chegada.Usava um vestido com a parte superior branca e a saia vermelha.Não – pensara, já correndo ao encontro da mulher.A longa saia do vestido não era vermelha, o cheiro forte carregado pel