O jovem caçador cavalgava o mais rápido que podia pela trilha entre as árvores. Havia deixado o caminho normal e adentrado a floresta por um atalho que conhecia. Sentia que suas forças não seriam suficientes para confrontar o mal que estava por encontrar, tampouco o caos irreparável que seria feito por ele. O odor fétido que o vento carregava era o cheiro de Lycans, Licantropos, Lobisomens em êxtase, bem próximos de uma batalha. E só havia uma aldeia nas proximidades naquela região.
Antes de chegar, Natham já confirmara o que mais temia. O clarão que vinha do pequeno povoado e a fumaça que subia não eram bons sinais. Ao passar pelos campos onde ele mesmo trabalhara nas plantações quando criança, tudo que encontrara fora um terreno vazio e destruído, as plantas haviam sido arrancadas e o solo cavado até a raiz dos vegetais. Além disso, era possível sentir o cheiro do veneno lançado contra a terra, uma forma cruel de garantir que nada mais floresceria ali por longos anos.
Ao adentrar a área das primeiras casas, o rapaz fechara os olhos em uma tentativa inútil de ignorar o que havia diante de seus olhos. A dor o inundara ao ver todas as velhas residências de palha e madeira com suas portas e janelas violadas. O cheiro de sangue se misturava ao fedor na fumaça que se erguia junto das chamas.
Todas as pequenas e humildes moradias haviam sido invadidas, destruídas e queimadas. Os animais também haviam sido assassinados, porcos, carneiros, galinhas, nem mesmo os bovinos e equinos tinham sido poupados. Era a forma como as trevas agiam, como assumiam os lugares e tomavam o controle.
Natham jamais imaginara que um dia o mal que confrontava chegaria até ali, seu lar.
A pior parte daquele estrago estava nas mortes. Por toda parte na pequena aldeia havia pedaços de pessoas mutiladas, aldeões surpreendidos ou tentado uma fuga qual jamais conseguiriam realizar. Era impossível escapar de Lycans, escapar de seu olfato, de sua velocidade ou mesmo resistir à brutalidade de sua força. Apenas aqueles preparados e treinados arduamente como ele estavam aptos a confrontar as bestas da lua cheia.
Natham descera do cavalo e seguira caminhando a pé, olhando para todos os lados em busca de algum indício de esperança, ainda que seu coração lhe dissesse não haver nenhum. A parte mais brutal da chacina estava no final da pequena aldeia, na saída para as montanhas do Leste. Os corpos de várias pessoas dependurados, amarrados pelos pés, virados de cabeça para baixo nas árvores e postes de madeira.
Suas cabeças, no entanto, haviam sido removidas, levadas como troféus. Ele sabia o que aconteceria, seus crânios logo estariam em estacas servindo de ornamento para a toca do Supremo Licantropo que ordenara aquele ataque. Ainda assim o jovem podia reconhecer nos corpos, por suas roupas e tamanhos, de quais pessoas se tratava – o ancião, sua família, seus próprios pais. Aquele não fora um ataque aleatório qualquer, quem quer que tivesse ordenado aquela carnificina sabia o que fazia, sabia que ali era seu lar.
Aquilo tinha um nome: Vingança.
O desejo do guerreiro era partir logo ao encontro de seu oponente e vingá-los, fazê-lo pagar por todas as vidas levadas desse mundo naquela batalha desumana e desigual. Mas ele sabia que não poderia, não naquele momento. Após amarrar o corcel e dar-lhe água e alimento que tinha guardado havia alguns dias, o rapaz descera os corpos que haviam sido dependurados.
Além disso, vasculhara cada centímetro de seu antigo lar procurando por outros corpos, mesmo os divididos em dezenas de partes. Todos foram reunidos e então cremados.
Uma última fogueira em sua última parada naquela terra amaldiçoada.
Entretanto, após reunir todos os cadáveres das vítimas daquele massacre, um vislumbre de esperança passara pela mente do jovem caçador. Ela não estava entre as vítimas. Sua amada, sua noiva, a prometida e a razão pela qual seu coração batia, Anne. Ela havia sido poupada? Aparentemente sim e nesse caso havia sido levada pelas feras.
Felizmente Natham sabia como rastrear aquele tipo de monstro, era sua especialidade, a razão pela qual fora levado e treinado. O que um ser tão infame quanto um Supremo Licantropo poderia querer com sua amada? Ele não fazia ideia. De qualquer forma, nunca antes havia se encontrado com tal criatura, mas sabia agora que esse confronto predestinado era inevitável.
E ele sentia que estava pronto.
Era chegado o momento da batalha que testaria suas habilidades, sua fé e seu amor.
Retaliação
A lua cheia brilhava majestosa ostentando no céu estrelado. Aquela mesma lua inspiradora e encantadora era também a fonte de poder das bestas caninas das trevas, os malditos e temíveis Lycans.
Natham cavalgara até a saída da floresta.
Dali em diante, como se os demônios já fossem donos da terra, não havia mais grandes traços de vegetação, senão por plantas rasteiras de lamaçais e pântanos. O jovem cavaleiro descera da montaria e afagara a crina do animal.
—Ben-Hur – dissera, falando diretamente com o corcel enquanto encarava o cavalo nos olhos – Daqui em diante será como sempre é, não posso arriscar perdê-lo. Já conhece o procedimento, fique próximo da floresta, eu retornarei até a próxima lua.
Como quem compreende cada palavra, o corcel se virara e começara a trotar devagar para dentro da mata, fazendo parecer que não queria deixar seu dono. Antes que desaparecesse no espaço verde, Natham se voltara para ele.
—Ah… – dissera o caçador. O cavalo parara e virara a cabeça para observá-lo enquanto o ouvia – Não se aproxime de estranhos.
O jovem caçador da Sagrada Ordem da Revelação fitara o caminho diante de si. Uma velha estrada de terra seca e batida, toda corrompida por rachaduras como as cicatrizes na face de uma pessoa idosa. Diferente de uma pessoa idosa com sua sabedoria, aquela estrada só conhecera guerra, destruição e morte.
As laterais estavam tomadas por charcos, acima dos quais uma densa e venenosa névoa se fazia presente. O cheiro forte de podridão invadira as narinas do rapaz. Natham tentara fechar os olhos e se concentrar por um breve instante.
O jovem então imaginara seu encontro com o Supremo Licantropo daquela Alcateia. Por alguns segundos sentira que o ódio por aquela criatura e pelo que seus servos haviam feito o estavam dominando. Cerrara o punho em torno da bainha negra da espada e colocara uma das mãos no peito. Lembrara-se de seu juramento naquele dia de chuva em que chegara na Sede da Ordem.
Não lutarei por um, mas por todos. Não hesitarei diante do inimigo enquanto a humanidade não estiver livre. Não agirei por vingança ou por ganho pessoal.
Minha espada é a espada do meu Deus.
Os meus golpes são a Sua palavra e justiça.
Em seguida voltara a caminhar. Com sua experiência em caçadas a Lycans, e considerando o ataque realizado, Natham presumira que os inimigos estariam com um acampamento em algum lugar há poucas horas de sua atual posição. Felizmente, rastrear aquelas feras não era um grande desafio por conta de forte cheiro que tinham e dos inúmeros rastros que deixavam.
Seria preciso apertar o passo e correr por alguns quilômetros. As criaturas deveriam estar se abrigando em alguma caverna ou em algum tipo de ruínas. Conhecia bem aquela categoria de demônio. Diferente da maioria dos guerreiros com quem treinara, bem como diversos caçadores veteranos, Natham preferia atacar aquele tipo de inimigo em suas fortalezas durante a noite.
Ele sabia que era loucura confrontar uma criatura que aumentava seu poder com a luz da lua cheia quando essa estava brilhando bem acima de sua cabeça, mas o jovem via a situação por outro ângulo.
A maioria dos lobisomens caçava durante a noite. Isso reduzia as hordas de servos que o Supremo Licantropo teria ao seu lado.
Era uma missão suicida – pensara. Mas não havia tempo para pedir reforços e mesmo que pudessse, sabia que as forças da igreja estavam reduzidas. Ele estava sozinho. Além disso, Anne estava com o inimigo e era seu dever resgatá-la, não importava como.
O ataque viera veloz, mas com grande imperfeição. Natham havia se virado para checar o movimento em um arbusto próximo e dera as costas para a luz do luar. Como se a sorte o acompanhasse, nesse exato momento vira claramente a sombra que cobrira a sua própria no chão de terra e pedregulhos.
Calculando em uma pequena fração de segundo o tamanho da sombra que aumentava, o caçador jogara o corpo para o lado em um movimento de esquiva extremamente preciso e sacando um punhal que carregava na cintura, fizera um risco profundo com a lâmina na criatura que passara ao seu lado com a mesma velocidade de um falcão.
O pio agudo do monstro ressoara pelo ar enquanto o mesmo alçava voo novamente, procurando um ponto seguro no céu, distante dos ataques físicos do guerreiro. O barulho causado pelo bater de asas tornara-se mais intenso e ao olhar à sua volta, Natham identificara outras seis criaturas como aquela.
Eram demônios com o tronco feminino, tinham abdômen e seios de mulher, porém, com algumas deformações. As semelhanças ficavam por aí, pois a parte de baixo da cintura era coberta de pelos e no lugar dos pés haviam garras como as das aves. No lugar dos braços haviam asas enormes que tinham até dois metros de envergadura com as quais alçavam voo e se mantinham brevemente no ar. A cabeça era semelhante à de um ser humano, mas toda a arcada dentária era composta de presas longas e pontiagudas. Os olhos eram amarelos com íris espirais. Ao contrário do que pareciam, eram criaturas não apenas selvagens, mas também inteligentes.—Então essa é a criança da Ordem que invade os domínios do Mestre? – grunhira uma delas com sua voz rouca, quase incompreensível.—Parece ser mais jovem do que disseram. Sinto o
—Os Estripadores nunca falharam, meu Amo, são seus próprios filhos, suas próprias crias, sangue do seu sangue. Esse caçador não terá vida em seu corpo até o amanhecer – bajulara o serviçal.—Que assim o Mestre permita.A pequena criatura se afastara da porta para o corredor com um sorriso na boca enorme que ia de orelha a orelha. Seus olhos eram amarelados e brilhavam todo o tempo, tinha nariz e orelhas longas e afinaladas e duas fileiras de dentes finos e pontiagudos em suas arcadas. Era baixo, corcunda e possuía braços mais longos que as pernas, com mãos pequenas de longos e finos dedos.Vivia constantemente tocando os dedos de uma mão com os da outra como se estivesse planejando algo, mas a verdade era que apenas seguia ordens. Suas longas unhas eram negras de sujeira e velhice. Levava consigo um número sempre impreciso de lâminas que usava para
Outros lobisomens continuavam os ataques e o guerreiro, sem sua espada, resistia fazendo uso das garras de prata, agora em ambos punhos. Da parte de cima de cada mão, três lâminas afiadíssimas faziam enormes retalhos na pele dos monstros que se aproximavam. Não demorara para entenderem que era impossível um ataque direto contra o caçador, que treinara especialmente para aquele tipo de batalha.Como saída para aquela situação, as criaturas tomaram uma medida que surpreendera até mesmo o jovem treinado para aquelas batalhas. De longe, os Lycans se colocaram em formação circular em torno de Natham e começaram a atirar pedras contra o rapaz. Mesmo que atacasse os inimigos, haviam muitos para derrubar e para cada um que o guerreiro abatia dois outros continuavam a lançar projéteis de rocha apanhados do chão contra ele.Os Lycans sabiam que aqueles ataqu
De qualquer forma, a excitação pelo combate parecia ter acabado. Bastava.O caçador recolhera as lâminas do chicote, que voltara a ser uma espada. Se fosse necessário, em um instante ele poderia o sacar novamente.Voltando a caminhar, passara a poucos metros de um Lycan encolhido que nem se mexera, sequer movera o olhar. Poderia o exterminar antes que pudesse pensar em reagir, mas não o fizera. As criaturas haviam se rendido e sua batalha agora não era com eles, não mais, não nessa noite. Em breve, ele e o Supremo Licantropo que levara sua amada haveriam de se encontrar.Aquela era a sua batalha e ele estava ansioso por ela.O GuardiãoUm castelo? Natham custava a acreditar na visão diante de si.Havia acabado de chegar ao alto da colina quando contemplara a magnifica construção após o pântano à sua fre
O medo fora a causa da morte de muitos companheiros, o medo levava à hesitação, a hesitação trazia falhas de pensamento, de raciocínio lógico, de enxergar com clareza as oportunidades diante de si, as inúmeras possibilidades de reverter o fluxo dos combates a seu favor.Natham sabia que precisava manipular o inimigo a tomar as decisões que ele queria. Esse era o segredo de se vencer qualquer tipo de batalha. Quando fora recebido pelos Mestres, pelos Mentores e outros membros das tropas da Ordem, o Mentor que o adotara como discípulo junto de outros jovens camponeses como ele, os ensinara a jogar um jogo de tabuleiro muito antigo, esquecido por muitos, chamado Xadrez.—O que podemos aprender com um jogo? Se temos tempo livre para jogar, deveríamos estar treinando! – dissera um dos garotos.—Observe e aprenda – foram as únicas palavras do M
O exterminador de demônios estava preso pelos dois punhos do inimigo que o segurava pelos ombros, apertando com força à medida que ganhava altura. Daquela forma era impossível para o caçador o atingir com as garras, pois seus braços estavam imobilizados. Contudo, nada havia saído diferente do planejado. Como em um jogo de Xadrez, as peças estavam posicionadas da forma como Natham havia previsto. Da forma como planejara.Batendo uma das mãos na cintura, o caçador abrira um pequeno frasco de Água Benta e uma vez mais a criatura fora embebida pelo líquido, que dessa vez lhe atingira a face e o peito. Olrox fechara os olhos e soltara um dos ombros do oponente, levando à mão ao rosto na tentativa de se livrar do líquido queimando seus olhos. No impulso, parara de bater as asas e ambos, a criatura e sua presa começaram a cair em queda livre por quase dez metros de altura.<
Apesar de não parecer quando visto de baixo, a torre negra tinha um terraço extremamente amplo. Natham estimara pelo menos cem metros de diâmetro, mas poderia ser mais, uma vez que sem qualquer ponto de referência, era difícil calcular com precisão. Havia ali diversos objetos como caixas e gigantescas balestras, certamente usadas no passado para a proteção do perímetro.Após poucos passos, o caçador contemplara a cena mais aterrorizante e chocante de toda sua vida. Deitada sobre o que parecia um grande caixão de pedra retangular, estava sua amada. Porém, a mesma permanecia imóvel, como se estivesse inconsciente e não notasse sua chegada.Usava um vestido com a parte superior branca e a saia vermelha.Não – pensara, já correndo ao encontro da mulher.A longa saia do vestido não era vermelha, o cheiro forte carregado pel
—Não entendo o que quer dizer, monstro… – rugira Natham, as lágrimas lhe escorrendo pela face, cuspindo saliva e sangue enquanto falava tomado pela fúria – Mas irei me certificar de que desapareça para sempre desse mundo.O Supremo Licantropo seguira calmamente até uma parede onde dezenas de armas gigantescas estavam jogadas. Natham não se movera um milímetro, talvez aquela fosse sua última luta. A criatura apanhara um martelo de cor negra, brilhante como se tivesse acabado de sair da forja, cuja empunhadura tinha quase a sua altura. Natham imaginara que nem dez homens dos mais poderosos que conhecia seriam capazes de erguer aquele artefato.—Venha com todas as suas forças. O esmagarei ao primeiro erro. Irá sentir a dor da morte como se durasse séculos antes de ser levado pelo Anjo para o mundo dos mortos… – quase de costas para o rapaz, a c