Eram demônios com o tronco feminino, tinham abdômen e seios de mulher, porém, com algumas deformações. As semelhanças ficavam por aí, pois a parte de baixo da cintura era coberta de pelos e no lugar dos pés haviam garras como as das aves. No lugar dos braços haviam asas enormes que tinham até dois metros de envergadura com as quais alçavam voo e se mantinham brevemente no ar. A cabeça era semelhante à de um ser humano, mas toda a arcada dentária era composta de presas longas e pontiagudas. Os olhos eram amarelos com íris espirais. Ao contrário do que pareciam, eram criaturas não apenas selvagens, mas também inteligentes.
—Então essa é a criança da Ordem que invade os domínios do Mestre? – grunhira uma delas com sua voz rouca, quase incompreensível.
—Parece ser mais jovem do que disseram. Sinto o cheiro de pureza. Vamos comer a sua carne doce e então levaremos os ossos e a espada para o Amo – rosnara outra.
Natham alongara os ombros enquanto mantinha os olhos castanhos atentos à sua volta. Sem que as criaturas percebessem, verificara cada uma das armas escondidas que carregava.
—Vocês deviam ter ficado escondidas no covil de onde vieram, demônios – dissera o sujeito em voz baixa. O vento balançara os cabelos claros do rapaz quando o mesmo erguera a cabeça e se colocara em uma nova postura – Tudo o que vão encontrar aqui essa noite é a morte.
As Harpias sequer tentaram entender o que ele dizia. No mesmo instante as criaturas se lançaram contra o sujeito em voos rasantes com as garras dos pés armadas. Natham conhecia aqueles ataques, já havia visto aqueles monstros em ação no campo de batalha inúmeras vezes, não apenas Harpias como aquelas, mas também algumas gigantescas.
Se algum dos ataques direcionados a ele fossem bem sucedidos, a missão certamente não passaria muito dali. O jovem já tinha presenciado companheiros perderem braços, cabeças e serem dilacerados por aquelas garras mortais. Mas ele não era um caçador qualquer. Natham era um caçador de Lycans, algo muito mais poderoso que aquelas criaturas.
Comparadas ao confronto contra um Licantropo, Harpias não passavam de um breve passatempo. Quando a primeira das bestas descera em direção ao rapaz em um voo rasante, o sujeito saltara para trás dando duas cambalhotas. Durante esse movimento, o caçador arremessara três adagas de prata que tinha na cintura contra o ser hediondo.
Minhas lâminas trazem as palavras do Senhor.
As palavras salvam os inocentes.
As palavras condenam os imundos ao limbo.
As adagas atingiram o monstro no peito. Um grito de dor cortara o ar, era como um assobio longo e sem ritmo. O monstro caíra ao chão, sua expressão era de ódio e de dor. Antes que pudesse imaginar o que aconteceria em seguida sua cabeça fora separada de seu corpo pelo fio da lâmina da espada de Natham.
Aquele que trilha o caminho das trevas às trevas há de retornar.
Eu serei o seu guia.
As outras criaturas sequer pareceram perceber a perda de uma entre elas, continuando com seus ataques ininterruptos. O caçador uma vez mais esquivara de uma investida e revidara. Assim que o monstro passara por ele, ao invés de atacar, o mesmo lhe agarrara por uma das asas, o girando com seu próprio corpo e após duas voltas, o lançara contra um outro que avançava ao seu encontro.
As duas criaturas caíram atordoadas e o rapaz saltara, caindo no meio delas com o punho cravado no chão. Nesse momento, da palma de sua mão diversas linhas de luz verde começaram a se estender pela terra, formando um círculo com diversas gravações em signos de um dialeto esquecido há séculos.
Era um círculo de magia de aprisionamento. No momento em que o caçador o executara, as duas criaturas ficaram imobilizadas dentro de sua área. Sem vacilar, o rapaz sacara a espada e rodopiara o corpo no lugar como um pião. A lâmina sequer chegara a tocar os monstros, apenas o deslocamento de ar causado pelo movimento lhes separara as cabeças de seus corpos.
Outra das criaturas fitara o sujeito e gritara algo que Natham não conseguira compreender. Aqueles monstros tinham as línguas deformadas e acreditava-se que eles mesmos mal eram capazes de se entender. O ataque viera menos de um segundo depois, contudo, era apenas outro ataque sem planejamento, sem precisão, a reação de um animal furioso e descontrolado.
Natham saltara de encontro ao ser com um plano preparado em mente. Ao chocar-se contra a criatura em pleno ar, o caçador apoiara-se na mesma e a usara para tomar impulso, lançando-se ainda mais alto, além de onde estavam. Assim que passara pelo monstro no ar, uma das adagas de prata atingira o inimigo nas costas. Graças ao movimento que o lançara mais para cima, Natham alcançara outra das Harpias que planava um pouco atrás daquela.
Eu sou a pena com que o Senhor escreve.
Meus golpes são suas palavras.
Suas palavras são a sentença definitiva.
As palavras ressoavam enquanto partia a cabeça da criatura ao meio.
Ao cair de quase seis metros de altura, o caçador cravara a espada afiada no crânio do monstro que havia sido atingido anteriormente pela adaga de prata.
Aquele que se opõe a mim, se opõe ao Senhor.
Aquele que se opõe ao Senhor, perece.
Nesse momento uma das Harpias surgira em suas costas tentando o abraçar com suas longas asas de penas negras. Natham fingira ser pego pelo golpe do inimigo, mantendo apenas um de seus braços livres.
Ironicamente, o braço que não segurava a espada.
No instante seguinte, o caçador estava preso ao abraço da fera que agora tinha a boca cheia de dentes afiados e pontiagudos bem próxima de sua face. Os olhos do rapaz brilharam quando a criatura abrira a boca e aquele hálito podre e decrépito lhe atingira, causando ânsias.
Era simplesmente a reação esperada. Com a mão livre, o sujeito apanhara um frasco em seu cinturão carregado de Água Benta, canonizada pelo Supremo Bispo na própria sede da Ordem. Como sempre, sem hesitar, o rapaz enfiara o recipiente pela boca do monstro, deixando que o líquido esverdeado pelo tempo escorresse por sua garganta.
A besta em desespero o libertara, afastando-se em espasmos sem conseguir respirar. Era como se ácido tivesse sido lançado contra seu corpo. Natham não acreditava que tais seres mereciam o perdão, mas não tinha tempo a perder. Em um golpe rápido e preciso, a cabeça do monstro fora decepada.
—Agora nós temos coisas a acertar – dissera ele, encarando o monstro que o atacara antes de todos os outros, tombado em um canto, vivo e indefeso.
A criatura na janela da torre de pedra observava ao longe pela vastidão de terreno diante de sua fortaleza. Um terreno perigoso e hostil para os indesejados, um pântano carregado de morte em cada planta e animal que ali vivia.
Era um ser com mais de dois metros de altura, pele de tom acinzentado e longos cabelos prateados caindo por suas costas. As sobrancelhas grandes e cheias complementavam a testa enrugada, de onde no alto, os cabelos desciam lisos para trás. Tinha olhos vermelhos, nariz grande e arredondado. De sua boca duas presas enormes saíam da parte de baixo projetando-se para o alto por sobre os lábios superiores.
Essa noite o mesmo trajava uma armadura de metal e madeira vermelha, feita sob medida para seu tamanho e polida pelos inúmeros serviçais sob seu comando na fortaleza. Aquele castelo, séculos atrás havia sido o monastério de uma religião chamada Cristã, outro grupo de lunáticos adoradores de um Deus que nem se lembrava de os ter criado e que sonhavam com a ilusão de um salvador que viria para os livrar de todo o caos.
A brisa noturna trouxera a criatura voando desajeitada até onde o mesmo estava. Aquele era um desaforo e um erro intolerável. A Harpia pousara ao lado do sujeito e o encarara com olhos fundos de um animal cansado e ferido. Tinha uma mensagem do jovem caçador, de que ele escapara do primeiro ataque, de que seu bando havia falhado e o guerreiro continuava em seu caminho.
Antes que pudesse produzir qualquer som, a gigantesca criatura ao seu lado lhe pousara a mão na cabeça, como alguém que está prestes a afagar um animal de estimação. Ao contrário do gesto dócil e carinhoso, a besta apertara o crânio do serviçal com força, com tamanha força que os ossos em segundos explodiram entre seus dedos.
—Irei providenciar a limpeza imediatamente, meu Amo – dissera uma outra criatura de pele esverdeada, postada de joelhos, com a cabeça baixa e a mão esquerda no peito junto à porta do aposento.
—Os voadores falharam, como já era de se esperar. Nunca envie um verme para fazer o trabalho de um demônio… – rosnara o Licantropo – Ordene que os Estripadores partam imediatamente e notifique Olrox para que fique em sentinela diante do portão. Se ele sobreviver, estará aqui antes do amanhecer.
—Os Estripadores nunca falharam, meu Amo, são seus próprios filhos, suas próprias crias, sangue do seu sangue. Esse caçador não terá vida em seu corpo até o amanhecer – bajulara o serviçal.—Que assim o Mestre permita.A pequena criatura se afastara da porta para o corredor com um sorriso na boca enorme que ia de orelha a orelha. Seus olhos eram amarelados e brilhavam todo o tempo, tinha nariz e orelhas longas e afinaladas e duas fileiras de dentes finos e pontiagudos em suas arcadas. Era baixo, corcunda e possuía braços mais longos que as pernas, com mãos pequenas de longos e finos dedos.Vivia constantemente tocando os dedos de uma mão com os da outra como se estivesse planejando algo, mas a verdade era que apenas seguia ordens. Suas longas unhas eram negras de sujeira e velhice. Levava consigo um número sempre impreciso de lâminas que usava para
Outros lobisomens continuavam os ataques e o guerreiro, sem sua espada, resistia fazendo uso das garras de prata, agora em ambos punhos. Da parte de cima de cada mão, três lâminas afiadíssimas faziam enormes retalhos na pele dos monstros que se aproximavam. Não demorara para entenderem que era impossível um ataque direto contra o caçador, que treinara especialmente para aquele tipo de batalha.Como saída para aquela situação, as criaturas tomaram uma medida que surpreendera até mesmo o jovem treinado para aquelas batalhas. De longe, os Lycans se colocaram em formação circular em torno de Natham e começaram a atirar pedras contra o rapaz. Mesmo que atacasse os inimigos, haviam muitos para derrubar e para cada um que o guerreiro abatia dois outros continuavam a lançar projéteis de rocha apanhados do chão contra ele.Os Lycans sabiam que aqueles ataqu
De qualquer forma, a excitação pelo combate parecia ter acabado. Bastava.O caçador recolhera as lâminas do chicote, que voltara a ser uma espada. Se fosse necessário, em um instante ele poderia o sacar novamente.Voltando a caminhar, passara a poucos metros de um Lycan encolhido que nem se mexera, sequer movera o olhar. Poderia o exterminar antes que pudesse pensar em reagir, mas não o fizera. As criaturas haviam se rendido e sua batalha agora não era com eles, não mais, não nessa noite. Em breve, ele e o Supremo Licantropo que levara sua amada haveriam de se encontrar.Aquela era a sua batalha e ele estava ansioso por ela.O GuardiãoUm castelo? Natham custava a acreditar na visão diante de si.Havia acabado de chegar ao alto da colina quando contemplara a magnifica construção após o pântano à sua fre
O medo fora a causa da morte de muitos companheiros, o medo levava à hesitação, a hesitação trazia falhas de pensamento, de raciocínio lógico, de enxergar com clareza as oportunidades diante de si, as inúmeras possibilidades de reverter o fluxo dos combates a seu favor.Natham sabia que precisava manipular o inimigo a tomar as decisões que ele queria. Esse era o segredo de se vencer qualquer tipo de batalha. Quando fora recebido pelos Mestres, pelos Mentores e outros membros das tropas da Ordem, o Mentor que o adotara como discípulo junto de outros jovens camponeses como ele, os ensinara a jogar um jogo de tabuleiro muito antigo, esquecido por muitos, chamado Xadrez.—O que podemos aprender com um jogo? Se temos tempo livre para jogar, deveríamos estar treinando! – dissera um dos garotos.—Observe e aprenda – foram as únicas palavras do M
O exterminador de demônios estava preso pelos dois punhos do inimigo que o segurava pelos ombros, apertando com força à medida que ganhava altura. Daquela forma era impossível para o caçador o atingir com as garras, pois seus braços estavam imobilizados. Contudo, nada havia saído diferente do planejado. Como em um jogo de Xadrez, as peças estavam posicionadas da forma como Natham havia previsto. Da forma como planejara.Batendo uma das mãos na cintura, o caçador abrira um pequeno frasco de Água Benta e uma vez mais a criatura fora embebida pelo líquido, que dessa vez lhe atingira a face e o peito. Olrox fechara os olhos e soltara um dos ombros do oponente, levando à mão ao rosto na tentativa de se livrar do líquido queimando seus olhos. No impulso, parara de bater as asas e ambos, a criatura e sua presa começaram a cair em queda livre por quase dez metros de altura.<
Apesar de não parecer quando visto de baixo, a torre negra tinha um terraço extremamente amplo. Natham estimara pelo menos cem metros de diâmetro, mas poderia ser mais, uma vez que sem qualquer ponto de referência, era difícil calcular com precisão. Havia ali diversos objetos como caixas e gigantescas balestras, certamente usadas no passado para a proteção do perímetro.Após poucos passos, o caçador contemplara a cena mais aterrorizante e chocante de toda sua vida. Deitada sobre o que parecia um grande caixão de pedra retangular, estava sua amada. Porém, a mesma permanecia imóvel, como se estivesse inconsciente e não notasse sua chegada.Usava um vestido com a parte superior branca e a saia vermelha.Não – pensara, já correndo ao encontro da mulher.A longa saia do vestido não era vermelha, o cheiro forte carregado pel
—Não entendo o que quer dizer, monstro… – rugira Natham, as lágrimas lhe escorrendo pela face, cuspindo saliva e sangue enquanto falava tomado pela fúria – Mas irei me certificar de que desapareça para sempre desse mundo.O Supremo Licantropo seguira calmamente até uma parede onde dezenas de armas gigantescas estavam jogadas. Natham não se movera um milímetro, talvez aquela fosse sua última luta. A criatura apanhara um martelo de cor negra, brilhante como se tivesse acabado de sair da forja, cuja empunhadura tinha quase a sua altura. Natham imaginara que nem dez homens dos mais poderosos que conhecia seriam capazes de erguer aquele artefato.—Venha com todas as suas forças. O esmagarei ao primeiro erro. Irá sentir a dor da morte como se durasse séculos antes de ser levado pelo Anjo para o mundo dos mortos… – quase de costas para o rapaz, a c
Havia uma saída – pensara o rapaz, refletindo sobre a situação.Era uma última cartada, sairia vitorioso ou morreria tentando. Sabia que se seu velho Mentor o visse ponderando vitória e derrota daquela forma, jamais o perdoaria. Não importava mais, ele não era mais aquele homem. Aquele Natham estava morto – Phelix ironicamente tinha razão.Ainda assim, mesmo com esse pensamento negativo, acreditava que tinha mais de oitenta por cento de chances de sucesso. Ele ainda era capaz de pensar, essa era a diferença entre homens e feras.Essa era a vantagem dos homens sobre as feras.Correndo como se tentasse fugir, Natham avançara para a direção onde o inimigo lançara sua espada. Precisava dela. Assim como esperado, o sombrio lobisomem sobrenatural reagira, correndo atrás de sua presa. O caçador saltara em meio às