03-Liberdade

DEZEMBRO DE 2062, PRESENTE...

Velhos hábitos não morrem. Mesmo no novo mundo, Lilian continuava com seus treinos. Não estava errada quando vivia em Hideaway, em treinar todos os dias, à espera de uma guerra. Não demorou para ela conseguir o que tanto queria. Sangue, gritos desesperados, mortes, e por fim, sua liberdade. Não tinha mais sua velha parceira, a lança, mas usava um bastão em seu lugar. Esperava pelo dia em que encontraria uma arma tão boa quanto a sua, que foi deixada na ilha.

Em algum lugar da vasta floresta, que cercava a pequena cidade de Tormenta, Lilian suava a cada golpe que feria ao ar. Às vezes, Alma lhe fazia companhia, às vezes, ela ia sozinha, mas nunca deixava de ir um só dia, ainda mais agora, que havia descoberto o paradeiro de um dos membros de sua família.

Não seria fácil adentrar o museu e roubar algo tão grande sem ser notada, mas estava decidida a resgatá-lo, mesmo que para isso, tivesse novamente que entrar em guerra.

Mesmo que estivesse a mais de quinhentos anos naquele mundo, Lilian não achava que sabia o suficiente sobre ele, e cautela era preciso se quisesse ter seu sobrinho de volta.

- Oliver? – Indagou ao chegar em casa e encontrar o namorado.

Era novidade ele estar ali, pois nunca a visitava sem um aviso prévio.

- Desculpa, eu estava preocupado. Depois da inauguração você não parecia bem – Disse ele, e prosseguiu – Há três dias não a vejo, embora pareça que eu não me importo, eu me preocupo sim, só não quero me intrometer na sua vida pessoal.

- Eu estou bem – Ela disse após um suspiro.

- Tem certeza? – Ele insistiu.

- Sim – Ponderou – Você está se preocupando a toa.

- Também pensei nisso, afinal não vi nada que pudesse deixar uma pessoa em choque. Nem sabemos se aquela pessoa no gelo é de verdade, confesso que também fiquei impressionado, mas é perfeito demais pra ser verdade, você não acha? – Ele a encarou.

- Sim, é verdade – Lilian virou-se – É perfeito demais.

- E quanto às outras coisas, na seção dos contos de Tormenta, eu até acredito em algumas histórias, mas também chego a duvidar, não sei, aquele fóssil de sereia, isso seria possível.

- Você duvida? – Perguntou curiosa.

- Apenas não vejo lógica na história dessa raça, digo, se existiu mesmo sereias, porque não há fósseis delas por aí como os dinossauros?

- Talvez elas tenham vivido aprisionadas, sem poder desfrutar da verdadeira liberdade.

- Deveriam ser seres bem fracos para viverem assim.

- Ou talvez não. Talvez elas desconhecessem o próprio mundo onde viviam. As sereias são famosas por serem belas e ter uma voz encantadora que seduz os marinheiros. Mas sua voz pode ser tão poderosa a ponto de adentrar na mente e te controlar, se concentrada como arma mortal, atinge um vasto perímetro e dizima tudo o que estiver em seu caminho. São seres magníficos, fiéis a sua raça, sem nenhum interesse na raça humana.

- Nossa! Você fala como se tivesse conhecido uma – A encarou surpreso.

Lilian por alguns instantes havia saído de seu personagem, o qual adotara em sua estadia no novo mundo.

- Eu li muitos livros. Quando leio gosto de sentir o personagem – Disse ela, tentando disfarçar.

- É admirável, mas bem, agora que sei que você está bem, eu voltarei para minha casa.

Lilian não o impediu, pois queria ficar sozinha para pôr em prática seu plano de resgate. Estava com o pensamento longe quando foi surpreendida com um beijo. Durante esses três dias que não o vira havia se esquecido da relação que tinham.

- Boa noite – Ele disse e cruzou a porta.

Os lábios do moreno não foram o suficiente para desconcentrar Lilian, mas a ausência da bruxa sim. Não havia como adentrar o museu sem sua ajuda.

Quando a madrugada chegou, Lilian não queria mais esperar, e ao abrir a porta se deparou com Alma prestes a entrar.

- Onde você esteve? – Perguntou chateada.

- Precisei dar uma volta – Respondeu a bruxa.

- Por três dias?

- Estava fazendo uma pequena pesquisa.

- Que seja. Você disse que me ajudaria a resgatar Derick hoje, e já está na hora – Disse Lilian cruzando a porta e a fechando logo em seguida.

- Você já formulou um plano? – Alma perguntou.

- Sim. Vamos indo, no caminho te explico.

Com base em pesquisas, Lilian havia descoberto que as ervas cultivadas no museu eram usadas na idade média pelas bruxas, e principalmente pelas fadas. Seu dom de extrair energia da natureza era exclusivamente de tais ervas. Então, Lilian cogitou a possibilidade de Alma conseguir extrair tal energia a transformando em magia.

Lilian apostava na quantidade de ervas que havia ali, que seria o suficiente para descongelar o gelo e manter o corpo do sobrinho.

- Há tempos a magia não se manifesta em mim – Disse Alma.

- Antes de se tornar a portadora da magia de Kharis, você era uma bruxa comum, como suas irmãs, com capacidade para usar a energia da natureza – Disse Lilian – Talvez a magia não tenha se manifestado por não haver nenhuma ao seu alcance.

- Espera! Seu plano todo se baseia nisso? Na possibilidade de eu conseguir usar magia? – Alma perguntou incrédula.

- Não encontrei outra solução, era isso ou mostrar minha verdadeira identidade aos humanos – Respondeu Lilian.

- Você está apostando demais em algo improvável, ou melhor, isso é quase impossível.

- Saberemos depois de tentarmos.

Nisso, as duas se aproximaram dos muros. Logo na entrada podia-se ver um guarda. Ao lado de dentro, dois vigiando o portão principal. Aos arredores, no gramado, um homem alto caminhava de um lado para o outro. O museu estava bem vigiado.

Contudo, nada disso importaria se eles não pudessem ver os infiltrados. E assim, com seu corpo espectral, Alma adentrou o museu e dirigiu-se imediatamente à seção de contos, onde estariam as ervas.

- Isso é loucura – Ela disse, atravessando a vidraça.

Antes que pudesse lamentar o possível fracasso, uma luz emitiu da folhagem, uma luz que só as bruxas poderiam ver. As ervas estavam se manifestando na presença de Alma, como se estivessem oferecendo sua energia de bom grado.

- Não acredito, ela estava certa!

Alma sorriu de emoção, o calor e a sensação, de poder sentir novamente a magia correr pelo seu corpo a fazia sentir-se viva. Mas não havia tempo para comemorar, pois não sabia até quando aquela magia temporária iria durar, então ela apressou-se e seguiu para o salão principal, onde estava Derick.

 As mãos, de aspecto verde, tocaram o vidro, mas foi o gelo dentro dele a ser atingido. O derretimento foi rápido, mas agora ela precisaria abrir a caixa de vidro. Após induzir magia dentro do corpo do rapaz, Alma sentiu que a mesma estava a se esvair, e então a dividiu em duas partes. Uma ela fez o vidro trincar e silenciosamente ele quebrou. Logo, os alarmes vieram a tocar e Alma teve que se apressar carregando o corpo do rapaz. Quando os seguranças chegaram ao local, havia apenas cacos de vidro sob um chão molhado.

Em casa, Lilian já havia preparado um quarto especial para o sobrinho. Tinha feito de seu porão, um cômodo pouco usado, um ambiente familiar para quando ele despertasse. Embora Alma tivesse usado magia, para recuperar o calor de seu corpo e restaurar os poucos danos, ainda lhe faltava o essencial para seu despertar, sangue humano.

- Oliver – Disse Lilian.

- O que? – Alma a encarou incrédula.

- Ele me foi útil durante um bom tempo e pode continuar sendo – Ela sugeriu.

- Dar o namorado para o sobrinho devorar. O que você tem no lugar do coração? - Alma questionou.

- De todo modo, esse relacionamento era apenas uma fachada, em breve eu teria que deixá-lo – Lilian insistiu.

- Dar um fora é diferente de assassiná-lo.

- Então o que sugere? Roubar sangue do hospital? Não seria suficiente, ele precisa de sangue quente, direto da veia.

- Iremos pensar nisso mais tarde, o importante nós já conseguimos, que foi resgatá-lo.

Lilian concordou, temporariamente. Ela estava ansiosa para ver seu sobrinho totalmente recuperado. E não importava se havia passado mais de quinhentos anos a esperar, não podia mais perder um dia sequer.

Naquela noite seguinte, convidou Oliver para jantarem juntos, ele era um ótimo cozinheiro e não se importava de cozinhar mesmo sendo o convidado.

– Desculpa te chamar assim, de repente, mas é que eu estava com saudades da sua comida – Ela disse – Já faz um tempo... Que a gente não se via.

- Está tudo bem, você sabe que tenho o maior prazer de me gabar dos meus dotes culinários – Ele disse sorrindo.

Não importava a situação, ou o humor, o sorriso do rapaz era contagioso e fazia sorrir qualquer um que estivesse em sua presença. Após selar seus lábios aos delas, esticou as mangas e apoderou-se da cozinha.

Lilian ficou a observar, como sempre. Nunca havia reparado nele, das outras vezes, estava sempre com a cabeça ocupada, pensando em sua família ou no próximo lugar que desejaria investigar. Mas nesse dia, Lilian o encarava de uma maneira diferente, como se estivesse lamentando por algo, e não estava fácil disfarçar.

- Está tudo bem amor? – Oliver perguntou, limpando as mãos em um pano de prato e se aproximando.

- Ah, sim, claro. – Ela disse, quase gaguejando.

- Não parece.

Levou suas mãos até o rosto dela e acariciou, as reações de Lilian mostravam cada vez mais, que ela não estava agindo como o normal. Fechou seus olhos para disfarçar, e iniciou por conta própria, um beijo quente.

Passou a mão pelo ombro dele, alcançando a nuca, e invadiu sua boca com a língua em movimentos desesperados. Oliver não entendia o que estava a se passar com ela, mas sabia que não estava nada normal, e se ela queria um momento íntimo, quente, ele não a negaria.

Segurou em sua cintura e a sentou sobre a mesa. Lilian gemeu em sussurros quando as mãos dele apertaram forte em sua costela e logo subiu a blusa. O frio da saliva em seus seios a fazia gemer ainda mais, a pressão que sua intimidade fazia contra sua virilha a arrancava suspiros. Eles estavam quentes, apressados e decididos.

Oliver afastou as coisas sobre a mesa e deitou sua parceira sobre ela. Não seria bobo em invadir sua intimidade sem antes prepará-la. A língua do rapaz parecia mágica e não demorou em arrancar de Lilian seu primeiro orgasmo. A penetração foi intensa e apaixonada, pelo menos da parte dele, que se esforçou em satisfazê-la.

Mesmo após fazer sexo na cozinha e ter diante de si um jantar maravilhoso, Lilian não havia desistido de seu objetivo. E tendo em consideração a boa companhia que Oliver tinha sido, ela se abriu com ele antes de se desfazer.

- Eu tenho uma família – Ela disse – que há muito tempo não vejo.

Oliver voltou toda a sua atenção a ela, ele não era bobo, sabia que todas aquelas atitudes diferentes tinham uma finalidade, e agora, com o início daquela conversa ele estava a obter a certeza de que a relação terminaria ali, naquela noite.

- Meu pai foi um grande homem e minha mãe uma mulher obediente. Eles morreram deixando nas mãos do meu irmão mais velho a missão de cuidar de mim. Mas nós nos separamos há muito tempo. Ele tem cinco filhos, sua esposa foi assassinada – Lilian lhe contava a história como se fosse um relatório - Prometi que iria reencontrá-los, e desde então ando pelo mundo à procura deles. Minha estadia nessa cidade é passageira, sempre foi, entretanto estou demorando mais do que deveria. Mas finalmente consegui notícias de um deles.

Ao final da frase, podia notar um leve sorriso no canto de sua boca. Oliver não poderia negar aquilo, e nem queria.

- Eu entendo – Ele disse – A família deve estar sempre em primeiro lugar. E se você os encontrou vá até eles, cumpra com sua promessa.

- Você realmente é uma boa pessoa – Ela disse com o olhar fixado à mesa.

- Você não deve ter conhecido muitas pessoas boas para estar dizendo isso, e eu fico mal por não ter tido a coragem de perguntar mais sobre você, de te conhecer melhor. Eu realmente espero que você possa reencontrá-los.

- Obrigada.

Lilian foi a primeira namorada de Oliver, a quem entregou seus beijos, seus carinhos, seu tempo, corpo e espaço em sua vida. E agora seria, também, quem levaria sua vida.

- Olive. Quero que veja algo antes de ir embora – Ela disse, após pôr os pratos na pia.

- Ah, claro.

Sem desmanchar o sorriso, ele a acompanhou até a sala, e frente à porta do porão, Lilian o olhou no fundo dos olhos. Ela não poderia dar pra trás agora, mas estava hesitando, ainda mais com aquele par de olhos fixados aos seus.

Nunca havia tido um relacionamento amoroso sem fins lucrativos. Michele era sua amante pelo o sangue que oferecia em troca, o ex-marido foi de um casamento forçado, nunca houve espaço para o coração, e por mais que, naquele momento, diante dele, Lilian tentasse buscar no fundo do seu peito algum sentimento de amor por aquele humano, ela não encontrava. Sentia apenas gratidão, não pelo tempo que ele esteve com ela, mas por estar a ser, agora, o sacrifício para trazer de volta um membro de sua família.

- Oliver eu...

Ding Dong! – Alguém tocou a campainha interrompendo o grande sacrifício. Tocou mais duas vezes, mas Lilian insistia em não desviar seus olhos de Oliver.

Ding Dong!

Ao terceiro toque, Oliver a beijou no rosto.

- Seja o que for que esteja atrás dessa porta, você pode me mostrar depois – Ele disse se dirigindo até a porta.

- Boa noite, esta é a residência de Lilian Flowster?

Um rapaz alto, cabelos platinados e pele muito clara.  Até Oliver, que era um homem, questionou sua masculinidade ao vê-lo.

- Sim – Ele respondeu – O que deseja?

- Perdão, meu nome é -

- Dylan?! – Disse Lilian quase falhando a voz.

Quando ouviu a voz familiar, saiu correndo, e ao vê-lo, não acreditava em seus próprios olhos, que se inundaram de emoção.

Mas Lilian não era a única emocionada, Dylan ficara imóvel na entrada, bloqueando a passagem com seu imenso corpo. Seus irmãos, que estavam logo atrás, o empurraram para que todos pudessem adentrar. Dimitri, Dionísio e Dominic.

- Tia Lilian! – Disseram em uníssono e correndo para abraçá-la.

Foi uma surpresa e tanto reencontrar todos os seus sobrinhos em uma só noite, e Lilian não pôde conter a emoção. Como uma criança, ela desabou em lágrimas a chorar.

Oliver não precisou questionar, entendeu que aquele momento era especial e importante para Lilian, e que ele não estava incluído. Mas partiu para casa feliz, com a lembrança das lágrimas de felicidade que escorriam no rosto dela.

2066, EM UM FUTURO DISTANTE...

A população mundial caía graças à incompetência de seus governantes. Embora alguns se importem com seus habitantes, providenciando alimento e uma melhor condição de vida, outros trabalham exclusivamente para o seu próprio fim.

- Nós temos o poder em nossas mãos, mas o mundo não sabe, nem precisa saber – Disse a voz rouca no rádio transmissor – Eles precisam apenas sentir o impacto, a dor, o desespero, e quando acharem que não há mais esperanças iremos mostrar-lhes a luz. Todos virão até nós, mesmo aqueles que nada têm, venderão a própria alma, para conseguir a salvação.

- Suas idéias são ótimas, senhor, como sempre – Respondeu Butcher do outro lado da linha.

- Não mereço o crédito sozinho, graças às suas habilidades e seu conhecimento, foi possível criar a maior arma mortal.

- Embora tenha levado muito tempo e muitos sacrifícios, devo concordar, esta é uma arma mortal, mas não tenho certeza se é a maior. O original sempre será melhor que a cópia.

- Então destrua o original, e comece imediatamente o caos no mundo.

- Sim, senhor!

- Butcher...

- Senhor?

- Não me decepcione.

- Quando eu o decepcionei senhor?

Butcher desligou o rádio e voltou à sala de experimentos. O sorriso em seus lábios era de ironia. Ele não tinha intenção de entregar nas mãos de outra pessoa, sem o intelecto necessário, sua maior obra prima. Porém, continuaria a manter a figura de servo leal, para continuar ganhando fundos, até que seu experimento estivesse bom aos seus olhos.

Por quatro anos, o cientista trabalhou no projeto EVA, que tinha como objetivo, criar um clone perfeito da bruxa Alma, e isso incluía sua habilidade de usar magia. Entretanto, todas as suas tentativas fracassaram durante os anos, até que um dia ele teve a brilhante ideia de dividir o cérebro dela em dois.

- Magnífico! – Gritava Butcher eufórico – Finalmente, após cinco anos, o clone perfeito, não, a outra metade. Sim, Alma e Kharis deixarão de ser uma só.

- O senhor é mesmo um gênio, quem imaginaria que seria possível dividir um cérebro em dois? – Indagou um dos assistentes do laboratório.

- Controlar uma enquanto a outra está adormecida, através de lembranças artificiais – Disse outro assistente.

- No fim, a ciência venceu a magia, não somos tão insignificantes assim – Disse um terceiro ajudante, sorridente.

- Sim! – repetiu Butcher – A ciência venceu a magia.

O clone havia sido criado em sua forma adulta, e era controlado através de lembranças artificiais transmitidas para seu meio cérebro. Butcher as alterou para fazer o clone o obedecer e a chamou de Kharis.

Enquanto o corpo original de Alma permanecia desacordado dentro de um tubo imerso em líquido, seu clone desfrutava do ar de fora, sob os comandos de Butcher. O quarto branco agora lhe pertencia, não era mais tratada como uma prisioneira, e via seu mestre como seu criador.

- Você tem o sorriso mais lindo do universo – Disse Butcher – Sua pele é tão perfeita, o verde lhe cai bem, assim como todo esse majestoso poder que abriga dentro de você. Seria desperdício usá-lo apenas para causar alguns danos à humanidade. Você é o ser mais poderoso que já existiu, então porque não causar uma catástrofe? O mundo precisa saber da sua existência, precisa temê-la e ajoelhar-se aos seus pés, Porque você é uma deusa, a nossa deusa Kharis.

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