CAPÍTULO 14

                                                              Maya Costa

         - Vicente, dá pra me dizer o que diabos é isso? – digo assim que ele atendeu minha chamada ao mesmo tempo em que olhava o frasquinho de remédio que tinha acabado de chegar à minha porta.

         Vicente disse que só faltava um detalhe para tudo dar certo, só não imaginei que fosse em um vidrinho de conta gotas.

         - Isso é a porta da sua liberdade Maya.

         - Eu não sabia que a minha liberdade vinha em um vidrinho de conta gotas.

         - Maya, essa é a única forma de te tirar daí sem correr o risco de Leandro nos pegar no flagra.

         - Por que a gente não pode esperar o próximo plantão? A gente correria menos risco e eu não precisaria dopar ele. Eu nunca fiz isso! E se der algo errado? Se eu colocar demais e ele morrer? – digo apavorada.

         - Se esperarmos o próximo plantão, ele pode voltar pra casa pra checar se você está aí a qualquer momento e reagir agressivamente ou até mesmo descobrir que ainda estou no Brasil. Já está tudo certo para acontecer hoje Maya.

         - Mas... – resmungo.

         - Calma, vai dar tudo certo, não precisa desse desespero todo. Não é como se a gente fosse matar ele, esse remédio só vai fazer ele dormir mais rápido.

         - E como eu faço?

         - Você vai ter que seguir exatamente o que eu vou te falar agora.

         - Tá – fico nervosa.

         - Leandro vai chegar na hora do jantar certo?

         - Sim, daqui a umas 3h.

         - Então, hoje você vai fazer uma sopa e um suco. Faça o jantar e tire a sua parte e a de Théo, no restante você põe umas 20 gotinhas dentro da panela e na jarra. Não precisa servir, ele mesmo serve e come. Não mude seu jeito de agir com ele para que não desconfie de nada.

         - E se ele não tomar?

         - Do jeito que você diz que ele é, ele vai comer. Vai reclamar no início, provavelmente, mas vai acabar comendo.

         - E depois?

         - Quando ele engatar no sono, você me manda uma mensagem. É só esperar uma hora depois de ele ter comido, só pra garantir que o efeito já vai estar acontecendo mais forte. Eu vou estar te esperando do lado de fora da casa no carro.

         - Tem certeza que isso vai dar certo? – mordi o lábio nervosa.

         - Não, mas é a nossa única oportunidade.

         - Tá, eu vou fazer do jeito que você está falando agora.

         - Boa sorte, estarei esperando notícias – desliga.

         O nervoso tomava conta do meu corpo, mas eu tinha que ser forte. Deixo Théo brincando no quarto e vou preparar a sopa. Do jeito que meu corpo ainda doía da pancada de Leandro, iria demorar um pouco mais pra deixar tudo pronto.

         Faço a sopa preferida de Théo: macarrão com frango. Depois faço um suco de laranja e faço o mesmo processo. Separo a minha parte e a de Théo e jogo o remédio no restante. Do jeito que minha mão tremia, tenho certeza que caiu mais do que o necessário.

         Quando já eram umas 19h, tudo ficou pronto e eu fui chamar Théo para jantar.

         - Vem meu amor – chamo meu pequeno – A mamãe fez um negócio que você adora.

         - O que mamãe?

         - Sopa de macarrão e frango.

         - Mamãe, vuxê divinhou meu penxamento.

         Assim que me sento do lado de Théo pra começar a comer, a porta da sala abre e Leandro entra. Não ouso abrir a minha boca pra falar nada e Théo também se encolhe ao meu lado. Porém, não podia negar que meu corpo tinha ficado tenso só com a possibilidade de ele desconfiar do que estava prestes a acontecer. Por isso, toco em meu bolso confirmando que tinha o potinho do remédio comigo e ele não tem como adivinhar.

         Isso tinha que dar certo ou então ele vai me matar.

         - O que tem pra jantar? – a voz de Leandro

         - Eu fiz uma sopa pra mim e pra Théo. Se quiser, ainda tem um pouco na panela.

         - Você sabe que eu não gosto de sopa.

         - Então, é só não comer e pedir seu jantar.

         Como é que eu me esqueci desse pequeno detalhe? Agora vai dar tudo errado.

         Já tinha desistido de tudo, quando escutei o armário fechar atrás de mim e ele colocar a tampa da panela na pia de qualquer jeito. Vejo pelo canto do olho ele encher o copo de suco e depois sair da cozinha. A primeira parte já estava feita, agora era só esperar o remédio fazer efeito.

         - Mamãe, cabô – Théo diz estendendo o prato em minha direção.

         - Tava bom meu amor?

         - Eu quelo mais – Opa! Não contei com essa possibilidade.

         - Acho que não tem mais meu amor, outro dia a mamãe faz mais um pouquinho, tá bem?

         - Tá – diz fazendo bico.

         - Toma o suco – entrego o copo a ele.

         Depois de ter acabado ali, coloco Théo no chão e vamos pro nosso quarto.

         - Já vão dormir? – Leandro pergunta assim que saímos da cozinha.

         - Não, eu vou brincar um pouco com Théo no quarto.

         - Me serve mais um pouco – estende o prato.

         Pego o prato com o coração na mão e volto na cozinha pra colocar mais. Volto com o prato cheio, entrego e puxo Théo pela mão direto para o quarto.

         - Mamãe, vuxê não dixe que tina cabado a xopa? – me olha triste e me corta o coração ter mentido pra ele.

         - Disse meu bem.

         - Então pu quê vuxê botou mais po homem mau e não pa mim?

         - Porque hoje eu tenho uma surpresa pra você e não podemos encher demais a barriga pra poder ir.

         - Xélio!? O que é?

         - Daqui a pouco você vai saber meu amor.

         - Ondi o tio Vixente?

         - Ele viajou meu amor.

         - Ele foi de vião?

         - Sim, a casa dele fica muito longe daqui e ele voltou de avião.

         - A gente vai visitá ele um dia?

         - Acho que sim.

         - E a gente vai de vião?

         - Sim.

         - Quelo que exe dia vem logo.

         - Você gosta do tio Vicente?

         - Xim, ele cuvexava muto comigo e a gente bincava de pioto de vião.

         - É mesmo? – balança a cabeça sorrindo.

         - Vuxê já foi no vião mamãe?

         - Não meu amor, nunca viajei de avião.

         - E ele voa muto ato?

         - Sim, lembra daquele dia no parque que a gente viu um avião no céu? – assente – O avião voa muito alto lá no céu, junto com as nuvens.

         - Com os paxalinos tamém?

         - Sim.

         - E não fax dodói no paxalino?

         - Não meu pequeno, o piloto toma cuidado com isso.

         - Eu quelo xer pioto de vião.

         - Você vai ser piloto de avião e vai me deixar com o coração apertado toda vez que for fazer uma viagem?

         - Xim!

         - Como é que eu vou deixar meu bebê fazer esse horror comigo? Como é que eu faço com a minha saudade?

         - Mas eu vô votá mamãe. Eu vo e voto no oto dia.

         - Promete?

         - Pometo.

         - De dedinho? – levanto o meu mindinho.

         - De dedino – cruza seu dedo com o meu e eu o abraço forte.

         - Eu te amo.

         - Eu tamém te amo mamãe.

         O aperto mais ainda no abraço esquecendo toda e qualquer dor que pudesse estar sentindo porque estava no melhor lugar do mundo. Théo era a minha força e a minha motivação para levantar todos os dias para continuar vivendo. Por ele, eu sou capaz de tudo.

         Por 2h eu fiquei no quarto conversando e brincando com Théo enquanto esperava o remédio fazer efeito. Depois, disposta a ver se realmente funcionou, vou até a sala para confirmar minhas suspeitas. Leandro estava capotado no sofá com a TV ligada. Chequei pra ver se realmente ele dormia pesado e voltei para o quarto para me comunicar com Vicente.

         - Ele já dormiu? – diz assim que atende.

         - Sim.

         - Eu já estou aqui do lado de fora da casa – vou até a janela do quarto e vejo um carro estacionado.

         - Preciso de ajuda pra pegar tudo.

         - Vou entrar pela janela – desliga.

         - Pu que vuxê ta abindo a janela mamãe? Ta de noti.

         - Porque chegou a hora da sua surpresa, meu amor - não demora muito e logo Vicente aparece ali e eu começo a pegar as malas para entregá-lo.

         - Tio Vixente! Eu penxei que vuxê foi pa casa.

         - Eu voltei para buscar vocês baixinho.

         - E a gente vai de vião? – Théo diz pulando de alegria.

         - Vamos, mas tem que falar baixinho.

         - O homem mau vai tamém?

         - Não meu amor, a gente nunca mais vai ficar aqui – beijo sua testa e volto a entregar as coisas pra Vicente.

         Teria ido mais rápido, se minhas costelas não tivessem doendo tanto, porém fiquei calada em relação a isso. Vicente pega Théo no colo e depois me ajuda a pular também. Entramos no carro e fomos embora.

         Nem acredito que isso realmente deu certo.

         - Não queria te pedir nada, mas será que podemos parar na casa de Sophie?

         - Onde ela mora? – dou o endereço – É caminho, mas ligue pra ela pra avisar que estamos indo, não podemos demorar.

         Ligo pra Sophie e peço pra que ela desça para a portaria para poder me despedir. Assim como pedi, ela fez.

         - Amiga, boa sorte – diz me abraçando apertado – Eu falei que tudo ia dar certo – sorri.

         - Eu vou sentir sua falta – a abraço mais uma vez.

         - Promete pra mim que vai ficar segura e nunca mais vai esconder nada do tipo.

         - Pode ter certeza que não vou deixar ela se envolver com ninguém que não ache confiável – Vicente diz atrás de mim.

         - Vou confiar em você então.

         - Devo lembrar que nenhum dos dois são meus pais e que eu sei me cuidar sozinha – digo e nós rimos.

         - Não somos seus pais, mas sim seus amigos que sempre querem te ver bem e é o que estamos fazendo contigo e com esse baixinho – ela pega Théo no colo e o enche de beijinhos.

         - Tia eu vou no vião! – aponta para o céu.

         - Vai meu pequeno, você vai ficar do ladinho das nuvens – responde sorrindo pra ele - Titia vai sentir saudades - dá mais um beijo na bochecha dele.

         A felicidade de Théo era realmente algo contagiante.

         - Protege sua mamãe pra mim ta bom?

         - Eu pometo que vo poteger.

         - Agora vão e me atualizem quando chegarem lá.

         - Eu tenho seu número e peço que não dê o meu pra ninguém. Vamos tentar evitar que Leandro tenha alguma possibilidade de...

         - Ele nunca mais vai chegar perto – Vicente me interrompe.

         - E eu logo vou tentar ir pra lá, só falta ser aceita no programa de internato.

         - Vou torcer por você – respondo.

         Dou mais um abraço nela e vamos direto para o consulado para assinar os papéis. Além de assinar, tive de fazer uma entrevista para falar os motivos da viagem e também deixar alguns outros comprovantes. Depois disso, nós fomos direto para o local onde estava o jatinho.

         Apesar de já ter passado da hora de dormir, Théo estava mais do que acordado e animado em ver um avião tão perto. Nunca imaginei que o sonho de meu baixinho fosse realmente se realizar tão rápido.

         Entramos e nos sentamos nas poltronas. Vicente orientou para que colocasse o cinto até o final da decolagem, que aconteceu em questão de minutos.

         - Agora vamos conversar – ele se levanta da sua poltrona e me chama para a mesa.

         - Primeiro eu tenho que agradecer mais uma vez por tudo isso que fez por mim. Você nem me conhecia e, mesmo assim, está se arriscando, colocando a segurança da sua família em risco por mim.

         - Eu não poderia agir de outra forma. Infelizmente não posso fazer isso por todas as mulheres que passam por isso na vida, mas, se posso fazer por uma, já fico bem satisfeito.

         - Obrigada.

         - Você ainda sente dor? Vi o jeito que me entregava as malas e percebi que ainda se move com um pouco de dificuldade.

         - Sim, eu ia deixar pra ir ao hospital quando chegássemos...

         - Deveria ter me avisado, poderíamos ter parado em uma emergência.

         - Iríamos correr mais risco e eu consigo suportar por mais algumas horas.

         - Assim que chegarmos, você vai comigo até o hospital. Meu amigo é médico lá e vai te examinar para garantir que não tem nada de errado aí. Tem dias que você está sentindo dor e aposto que deve estar doendo mais do que no dia que aconteceu.

         - Não quero te incomodar mais, posso ser atendida por qualquer médico.

         - Não, ele já sabe que você está indo comigo. Inclusive, esse jatinho é dele.

         - O que mais me preocupa é ter que recomeçar uma vida do zero e deixar o pouco que tenho para trás. Procurar um emprego, uma escola para Théo, um lugar para morarmos...

         - Eu pensei nisso. Por isso, pedi para esse meu amigo procurar alguns locais que precisam de empregados e também algumas escolas. Por enquanto, vocês ficam em minha casa, depois pensamos no resto.

         - Isso é muito.

         - Isso é o mínimo. Pensou o quê? Que eu ia te levar e te deixar para se virar sozinha? – não respondo – Não mesmo Maya, lembre-se que prometi a Sophie que cuidaria de você. Agora eu só quero uma coisa.

         - O quê?

         - Quero que me conte toda a sua história, desde o início. Quero te conhecer melhor.

         - Eu nunca falei disso pra ninguém, só Sophie...

         - Acho que se me contar, vou poder te ajudar mais com isso.

         - É que tem umas partes da minha vida que são difíceis de contar.

         - Vamos aos pouquinhos, temos tempo. São quase 16h de voo.

         - Posso por Théo pra dormir antes?

         - Claro, segue esse corredor que no final tem um quarto com uma cama. Pode deixar ele lá – assinto e vou com Théo até o quarto.

         Eu sei que o momento de voltar ao passado chegaria, mas não posso deixar de admitir que será difícil falar tudo. A minha história envolve coisas que me machucaram e que me privaram até hoje. Tive de aprender muita coisa sozinha. Não me envergonho do meu passado, mas sinto que muita coisa poderia ser diferente.

         - Mamãe, obigada po me tazê no vião.

         - Você gostou, meu amor?

         - Muto.

         - Fico feliz que tenha gostado. Eu te prometi e estou cumprindo com minha palavra.

         - E pa ondi a gente vai?

         - A gente vai pra um lugar bem bonito pra poder viver muito mais feliz.

         - O homem mau não vai te maxucar mais?

         - Não, o homem mau não vai nem chegar perto.

         - A gente vai molar com tio Vic?

         - Só por um tempinho.

         - E eu vo ter amiguinos?

         - Você vai ter muitos amigos meu pequeno, muitos – digo e começo a balançar seu corpo de leve para embalá-lo no sono.

         Foi questão de tempo para que ele dormisse e para que eu voltasse para encarar a verdade da minha vida. Chegou a hora de finalmente me abrir para alguém.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo