- Quando vai querer ir procurar um apartamento? - Rê disse depois de alguns minutos de filme em absoluto silêncio.
- Não sei. - suspirei - Acha que devemos fazer isso antes de eu ter uma boa conversa com Liam?
- Acho que sua vida não pode esperar seu pai resolver os traumas dele. - ele foi direto, até mesmo um pouco seco - Mas eu posso esperar se você quiser. - acrescentou com mais suavidade.
Deitei a cabeça em seu ombro por um instante. Eu não gostava de ir embora sem estar completamente bem com meu pai, mas eu também não podia esperar para sempre. Rê tinha razão, eu precisava viver minha própria vida.
- Certo. Iremos no sábado. - decretei, erguendo a cabeça para encará-lo.
- Perfeito. - Rê colocou uma mecha do meu cabelo atrás da orelha - Vai dar tudo certo, Bea. Seu pai adora você.
Eu estava certa sobre Liam me evitar. Vimos o filme até o fim, eu comecei a cochilar e ele ainda não havia aparecido.
- Quer ajuda para ir para cama? - assustei com a voz de Rê no meu ouvido.
- Posso fazer isso sozinha. - meu coração havia disparado.
Me coloquei de pé, mas estava tão mole que cambaleei um pouco. Ele me amparou, fazendo alguma piada que não consegui registrar, e me ajudou a ir até a cama.
- Durma bem, Bea. - escutei a voz de Rê muito longe, e senti o contato de seus lábios em minha testa.
Quando acordei, dei um pulo para fora da cama na esperança de pegar Liam em casa, mas mais uma vez eu estava sozinha.
Consegui disfarçar melhor no trabalho, mas estava tão irritada que me escondi no banheiro para ligar para o celular dele.
- Pai?
- Oi, Beatriz. - sua voz foi cautelosa.
- Será que poderia parar de me evitar? - reclamei, detestando o quanto minha voz pareceu a de uma adolescente.
- Não estou te evitando, querida. O trabalho…
- Isso não é justo. - senti lágrimas vindo aos olhos - Está me evitando porque acha que vou perguntar sobre a mamãe. Sei que é difícil para você, mas…
- Por favor, Beatriz. - sua voz saiu como um lamento - Eu não quero falar sobre sua mãe. É… complicado.
Senti uma onda de frustração. Não era justo. Ele não era o único que tinha perdido alguém importante.
- Não sei porque ainda tento… - sussurrei.
Desliguei o aparelho, ignorando que ele ainda falava comigo, e lavei o rosto. Eu iria tentar outra pessoa, qualquer um.
Dei de cara com Murilo do lado de fora da porta. Eu tinha falado muito alto? Meu Deus, meus olhos ainda deviam estar vermelhos.
- Murilo, me desculpe… Eu…
- Você está bem, Beatriz? - só havia preocupação em sua voz - Há algo errado acontecendo, não é?
- Problemas familiares. - dei de ombros - Não vou mais deixar que afete o trabalho.
- Não se preocupe com isso. – gentilmente, e muito respeitosamente, ele colocou uma mão no meu ombro e me guiou – Venha, vamos almoçar mais cedo.
- Eu não quero atrapalhar, Murilo. – eu podia sentir meu rosto se avermelhar de vergonha.
- Não está atrapalhando.
Me deixei levar porque não encontrei uma boa maneira de impedir. Percebi os outros funcionários nos olhando com curiosidade quando passamos pela porta da frente, mas não havia nada que eu pudesse fazer àquela altura.
Murilo me levou para um restaurante um pouco mais longe. O público parecia um pouco mais refinado, o que não se encaixava a nós dois, e só pude pensar que ele estava tentando ser cavalheiro.
Era estranho almoçar com o chefe e, depois que os pedidos estavam feitos, procurei desesperadamente algum assunto sobre o qual pudéssemos falar. Quando não encontrei nada, comecei a bater o pé embaixo da mesa.
- Esses problemas estão te deixando agitada?
- Um pouco. – não era totalmente verdade no momento, mas no geral...
- Beatriz, eu gosto de imaginar que podemos ser amigos. – ele continuou suavemente, e deu para perceber que havia se esforçado para transpor uma barreira de nervosismo ou vergonha – Acha que consegue almoçar comigo, Murilo, e não com o chefe?
- Talvez. – respondi com insegurança – Não quero parecer desrespeitosa.
- Você não conseguiria nem se tentasse. - seu sorriso pareceu genuíno.
Sorri em resposta, começando a relaxar um pouco.
- Então, Beatriz. - Murilo se ajeitou na cadeira - Sei muito pouco sobre você. Ainda mora com seus pais?
- Com meu pai, na verdade. - corrigi, ainda me esforçando para parecer tranquila - Minha mãe morreu.
Ele ficou sem jeito na mesma hora.
-Desculpe por… puxar o assunto… Eu…
- Não tem problema. - ergui as mãos em sinal de paz - Já faz muito tempo.
Felizmente nossos pedidos chegaram nesse momento e fizemos uma pausa.
- E você, vive sozinho? - já que ele estava se esforçando para ser gentil, eu podia colaborar.
- Sim, sim. - Murilo parecia aliviado por eu não parecer chateada - Uma casa perto daqui.
- Sem família? - eu ainda me sentia muito invasiva por falar assim com meu chefe.
- Na verdade, eu também não tenho mãe. - ele ergueu os olhos do prato para mim - Ela morreu há muitos anos.
- Sinto muito. - finalmente, apesar do assunto pesado, comecei a ficar um pouco relaxado - E seu pai?
Ele fez um muxoxo.
- Ainda está por aí, mas nunca quis saber de mim.
Me senti com sorte. Considerando que meu pai era um adolescente quando eu nasci, eu havia sido muito bem cuidada e amparada.
- Seu pai é legal?
- Muito. - foi difícil não soar orgulhosa - Ele ainda é jovem, me teve aos dezesseis anos.
- Então temos quase a mesma idade. - ele disse a frase com cuidado, como se quisesse testar minha ração.
- É mesmo? - estimulei, distraída. Já estava quase completamente à vontade.
- Tenho trinta e seis anos. - ele falou baixo, ainda me estudando com os olhos.
Não respondi nada, concentrada em mastigar, e me perguntei por que a idade parecia ser um tópico sensível.
- Beatriz, sinto que preciso ser um pouco mais direto agora. - eu acenei com a cabeça - Bom, eu contratei você, então sei a sua idade.
- Certo… - agora eu estava insegura. Tomei um gole de água.
- O que acha de sair com homens mais velhos? - outra vez as palavras pareceram desajeitadas - Quero dizer, comigo, no caso.
Murilo estava me chamando para sair?
Fiquei muda, a boca um pouco aberta e o garfo a meio caminho.
- Sei que pode parecer repentino. - de repente as palavras estavam jorrando dele - Eu fiquei observando você desde que começou a trabalhar, e, bem, além de obviamente você ser linda, é muito inteligente, dedicada, alegre… Eu só… - seu tom foi baixando - Estou sendo ridículo, não é? - sorriu tristemente.
- Não! - me apressei em dizer - Eu só estou muito surpresa.
- É, eu sei mesmo disfarçar. - era uma característica que ele não parecia gostar - Mas, já que eu me abri, posso saber o que acha? Você sai, tem encontros?
- Bom, eu… - puxei pela mente uma série de encontros terríveis e um namorico adolescente - Já tive alguns encontros, nenhum namorado sério.
- Está disponível agora? - ele pareceu querer pegar minha mão, mas desistiu no meio do caminho - Sabe, aquele rapaz de ontem…
- Eu disse, somos amigos.
- Mesmo? Eu vi o modo como ele olhava para você.
Precisei rir. Somente alguém de fora não seria capaz de entender.
- Renan e eu somos próximos. - esclareci - Crescemos juntos, como irmãos. Tanto que iremos dividir um apartamento em breve. Nunca teve qualquer coisa romântica entre nós.
Murilo pensou por um instante, observando minha expressão. Depois pareceu concluir que eu estava sendo completamente sincera.
- Sendo assim, será que estaria disposta a me conhecer melhor? - ele soou esperançoso.
Pensei por um instante, também o observando. Ele era um homem interessante, sempre impecavelmente arrumado. Os fios de cabelo grisalho eram charmosos em meio aos escuros, e os olhos azuis eram sempre muito gentis.
-Acho que sim. - decidi por fim - Se estiver disposto a ir com calma.
Murilo abriu o sorriso mais alegre que eu já havia visto. Todo seu rosto pareceu se iluminar.
- No tempo que quiser, Beatriz. - e finalmente pegou minha mão.
- Hummm, saindo com o chefe. - Rê me provocou no sábado. Era o quinto apartamento que estávamos vendo, e só ali tive coragem de contar sobre o almoço com Murilo. - Não seja babaca. Nós almoçamos, e não acho que tenha contado como primeiro encontro. Ele me puxou de repente, quase me fazendo tropeçar. - Gostei desse. - ignorou o tapa que dei em seu braço - Parece espaçoso o suficiente para nós, o aluguel é bom e eu amei a vista. Olhei pela janela da sala. Não era nada demais, apenas outros prédios e algumas casas. Rê devia estar apenas brincando sobre a ú
- Mas é nossa primeira noite aqui. - Rê lamentou-se atrás de mim. Tentei me concentrar em meu cabelo, e não em sua pirraça. - Rê, dá um tempo. - prendi os fios cuidadosamente em um meio rabo - Como você disse, estou fazendo meu caminho. Ele revirou os olhos, vi pelo espelho, mas preferi ignorar. Eu estava começando a ficar atrasada. - E por que ele não te pega aqui na porta? Foi a minha vez de revirar os olhos. - Será que arrumei outro pai? - provoquei. &nb
Morar com meu melhor amigo não era difícil. Nos dias que se seguiram nós tivemos uma convivência tão boa quanto costumava ser quando morávamos na mesma casa. Tirando o fato de que Rê parecia incapaz de vestir uma roupa completa. Agora eu só o via em shorts e calças, sem nada para cobrir a parte de cima. As coisas com Murilo também seguiam tranquilamente - embora eu não conseguisse tirar a palavra morno da cabeça. Talvez estivéssemos caminhando tão lentamente que estivesse se tornando tedioso, mas eu também não sentia nenhuma vontade de acelerar. Claro que não contei nada disso quando fui almoçar na casa do meu pai.<
Rê não se atreveu falar comigo por um bom tempo. Parecia incrivelmente concentrado na estrada que eu mal enxergava passando ao nosso redor. - Certo. Já chega. - ele jogou o carro para o acostamento. - O que foi? - perguntei, sobressaltada pelo solavanco. - Bea, diga o que está sentindo. - ele desligou o carro e arrancou o cinto. - Eu não sei. - respondi tirando meu cinto - Acho que apenas minhas fantasias estão sendo destruídas. Nós imaginamos nossos pais apaixonados, perfeitos… - Certamente. - ele concordou - Você percebeu que meu pai teve um caso com
Rê estava emburrado, de braços cruzados e com as costas apoiadas no carro. - Vamos? - perguntei com cuidado. - Você me expulsou de lá. - ele reclamou. - Você parecia prestes a brigar. - justifiquei também cruzando os braços - Eu queria que ela se desarmasse. - E funcionou? - perguntou com desdém. - É, funcionou. - agora eu também estava ficando irritada, uma reação involuntária ao seu comportamento. Rê bufou, e com um movimento irritado, abriu a porta do carro e se
Parte 2 - Rê Tinha acontecido. Quando abri os olhos pela manhã, diretamente de encontro a janela com as cortinas abertas, fiquei atordoado. Quanto tempo eu tinha fantasiado aquilo? Pelo menos uns cinco anos? Talvez desde que Bea tinha se transformado em uma garota, não mais uma garotinha ou apenas minha melhor amiga. Mas eu não tinha esperado que acontecesse. Realmente parecia algo que apenas ficaria na minha imaginação, algo em que eu sempre acabaria pensando antes de dormir. Só que agora havia acontecido. E eu não fazia ideia de como Bea se sentia a respeito disso. Eu sinceramen
Bea não voltou o dia todo. Fiquei tão agitado que não consegui fazer nada, nem mesmo comer. Andei de um cômodo a outro, e quando ficou insuportável, a procurei pela rua. Eu sabia que era uma reação a Liam, mas não conseguia deixar de me perguntar se também não era uma reação a mim. Bea estaria fugindo de nós? Nós… como se existisse isso. Quando escureceu, voltei para casa e comi alguma coisa. Tudo parecia tão vazio e silencioso sem ela. Sem sentido. Será que ela estaria evitando voltar para casa se nada tivesse acontecido? Será que eu não era mais um
Os próximos dias foram horríveis. Eu me sentia como um robô, seguindo em frente e fazendo o que tinha que fazer, mas numa constante onda de infelicidade. O arrependimento já tinha me corroído ao extremo, tanto que eu sentia que era capaz de me jogar de joelhos aos pés de Bea e implorar seu perdão se ela aparecesse. Eu via como Renan me olhava, e até mesmo Liam quando eu esbarrava com ele no trabalho, mas não conseguia mais disfarçar. Era uma questão de tempo até qualquer um dos dois me encurralar. Desejei que fosse meu pai, afinal como eu ia dizer a Liam o que havia feito com a filha dele? - Rê? - escutei meu pai me chamar numa tarde. Eu estava andando pe