Quando acordei no dia seguinte, encontrei a casa vazia. Na pressa de não me encontrar para que eu não tentasse falar sobre minha mãe ou namoros, Liam havia saído quase duas horas mais cedo para o trabalho.
Tomei meu café sozinha, ainda um pouco irritada com Rê, mas mais ainda frustrada por meu pai não se abrir.
Fui trabalhar a pé, distraída e cheia de pensamentos. Havia tanta coisa que eu queria saber, e pela primeira vez estava cogitando encurralar qualquer outro familiar. Renan e Teo tinham convivido com a minha mãe, meus avôs também. Alguém poderia me contar alguma coisa, qualquer coisa que fosse pelo amor de Deus!
Entrei na livraria sem prestar atenção nas outras pessoas, o que não era comum. Eu amava tanto aquele lugar que sempre chegava animada, cumprimentando a todos e sorrindo para possíveis clientes.
Meu chefe me encontrou na sala dos fundos, quando eu deixava minhas coisas no armário.
- Tudo bem, Beatriz? - sua voz era preocupada.
Me virei, encenando meu melhor sorriso. Ele era um ótimo chefe, meio calado, mas sempre me tratava muito bem - e aos outros também -, o que tornava todo o ambiente ainda melhor.
- Claro, Murilo. Só estava distraída.
Ele não pareceu se convenceu. Andou um pouco mais para perto, provavelmente para garantir que ninguém mais ouvisse.
- Se precisar conversar com alguém… - sugeriu, sem me olhar diretamente nos olhos, como se tivesse envergonhado - Pode contar comigo.
- Obrigada. - falei com sinceridade - Eu agradeço muito.
Com um meio sorriso, Murilo se afastou de mim o mais rápido possível.
Foquei em deixar os problemas para lá por enquanto. Eu precisava prestar atenção ao trabalho, aos clientes.
Não foi tão difícil como pode parecer, já que o ambiente era tudo que eu mais gostava. Quando me dei conta já estava perto do almoço.
- Beatriz… - Murilo entrou no estoque, onde eu tinha acabado de registrar alguns livros e me preparava para sair para almoçar - Tem um rapaz te procurando.
Eu já sabia quem era. Toda vez que Rê se sentia culpado por alguma coisa, tendia a ficar pairando por perto até ter certeza de que estávamos bem novamente.
Quando saí, o vi parado perto da porta. Havia um vinco de preocupação em sua testa, mas sorriu quando apareci.
- Ei, Bea. Eu vim te levar para almoçar. Aceita?
- Claro. - concordei, afinal eu iria ter que sair mesmo e a companhia cairia bem.
- Está muito brava comigo? - ele fez um bico e tocou meu rosto gentilmente.
- Para com isso. - ralhei, reprimindo um sorriso e afastando sua mão - Vamos.
Andamos em silêncio até um restaurante no final da rua. Rê só se atreveu a iniciar a conversa quando já estávamos acomodados com nossos pratos em uma mesa para dois.
- Foi muito ruim ontem? Você não me respondeu.
- Foi ruim. - falei sem dó e o observei encolher os ombros - Liam ficou chateado, obviamente entendeu tudo errado e eu ainda tentei entrar no assunto proibido. Ele fugiu e hoje saiu antes de eu acordar.
- Sinto muito, Bea. - ele segurou minha mão - Às vezes sou impulsivo demais.
- Ah, tudo bem. - decretei de uma vez, eu nunca conseguia passar muito tempo brava com ele - Ele reagiria assim de qualquer modo.
Rê relaxou visivelmente com meu perdão, e finalmente começou a comer. Por um tempo, foi tudo o que fizemos.
- O que quis dizer com "tudo errado"?
- O quê? - perguntei, confusa.
- Você disse que ele "entendeu tudo errado".
Hesitei.
- Por que está ficando vermelha? - ele riu abertamente.
- Não estou! - exclamei.
- Está sim. - ele provocou, obviamente achando graça da minha timidez - Fale logo!
- Ele achou que nós estávamos juntos. - soltei de uma vez.
- Meus pais também. - não pareceu nem um pouco abalado - Você ouviu a minha mãe.
- É, eu sei. - não conseguia controlar o rubor em meu rosto, eu deveria estar rosa - Mas ele frisou que você é… homem. E que eu não sou uma garotinha.
Rê sorriu, me observando com curiosidade.
- Pensei que fossem coisas que nós já soubéssemos.
Pensei na forma como ele havia me dito que eu era uma mulher adulta e dona das minhas decisões. Acho que apenas eu não tinha me dado conta dessas coisas. O tempo havia passado, nós dois éramos adultos. Pensei brevemente nisso na noite anterior, quando tinha entrado em seu quarto sem bater, mas aparentemente a minha ficha ainda não tinha caído - e eu era a única.
- O que foi? - novamente havia preocupação em sua expressão.
- Nada. Está tudo bem. - afastei o prato - Precisamos ir.
Rê me seguiu, mas ainda parecia um pouco preocupado pelo meu silêncio.
- Não vai me dizer o que a está perturbando? - me perguntou quando paramos na frente da livraria.
- Não é nada, Rê. - seria difícil explicar, e sinceramente eu não estava com vontade.
- Estamos bem? - ele colocou as duas mãos nos meus ombros - O plano ainda está de pé?
- Claro que estamos bem. - o tranquilizei - E, sim, o plano está de pé.
- Isso! - comemorou com o punho erguido para o céu.
Revirei os olhos.
- Vejo você mais tarde.
Quando entrei na livraria, percebi que Murilo estava me observando. Conferi o relógio, mas eu não estava atrasada. Devia ser coisa da minha cabeça.
O resto da tarde transcorreu tranquilamente, e acabei esquecendo completamente meus problemas. Somente com o horário de saída se aproximando que comecei a me perguntar se meu pai apareceria logo em casa, ou se continuaria fugindo por algum tempo para garantir que eu esquecesse o assunto.
- Já está indo, Beatriz? - Murilo perguntou quando me viu saindo da sala de armários com a bolsa.
- Precisa de mais alguma coisa? - olhei ao redor, mas havia apenas uma outra funcionária indo embora pela porta da frente.
- Não, não. - ele se apressou em negar, um pouco sem graça.
Fiquei parada, sem saber se estava dispensada ou não. Murilo estava com uma expressão estranha.
- Então, aquele rapaz é seu namorado? - as palavras saíram desajeitadas.
- Não. - dei um sorriso, tentando amenizar o clima estranho - É meu melhor amigo, filho do tio do meu pai.
- Entendi. - finalmente ele me encarou, um sorriso fraco nos lábios - Até amanhã, Beatriz.
- Até. - respondi, ainda sem entender direito aquela cena estranha.
Voltei para casa sem esperança de encontrar meu pai, e realmente ele não estava lá. Liam as vezes era tão previsível.
Resignada, preparei alguma coisa para comer e depois tomei um longo banho. Quando voltei para meu quarto, havia uma mensagem de Rê.
"Novidades?"
"Meu pai não voltou para casa." - digitei rapidamente - "Não acho que vou conseguir ter nenhuma conversa com ele nos próximos dias."
"Posso ir até aí? "
"Claro que sim."
Rê não demorou para chegar. Quando abri a porta, senti um forte cheiro de perfume.
- Por que está tão cheiroso?
- Você gostou? - ele passou pela porta, animado - Comprei hoje.
- É, é bom. - dei de ombros - Quer ficar aqui na sala ou ir para o quarto.
Ele hesitou por um momento.
- Acho que aqui está bom.
Liguei a televisão para vermos um filme - o que levou um tempo excessivamente longo, já que nós nunca entrávamos num consenso -, então nos acomodamos lado a lado e Rê passou o braço ao meu redor.
- Quando vai querer ir procurar um apartamento? - Rê disse depois de alguns minutos de filme em absoluto silêncio. - Não sei. - suspirei - Acha que devemos fazer isso antes de eu ter uma boa conversa com Liam? - Acho que sua vida não pode esperar seu pai resolver os traumas dele. - ele foi direto, até mesmo um pouco seco - Mas eu posso esperar se você quiser. - acrescentou com mais suavidade. Deitei a cabeça em seu ombro por um instante. Eu não gostava de ir embora sem estar completamente bem com meu pai, mas eu também não podia esperar para sempre. Rê tinha razão, eu precisava viver minha própria vida.  
- Hummm, saindo com o chefe. - Rê me provocou no sábado. Era o quinto apartamento que estávamos vendo, e só ali tive coragem de contar sobre o almoço com Murilo. - Não seja babaca. Nós almoçamos, e não acho que tenha contado como primeiro encontro. Ele me puxou de repente, quase me fazendo tropeçar. - Gostei desse. - ignorou o tapa que dei em seu braço - Parece espaçoso o suficiente para nós, o aluguel é bom e eu amei a vista. Olhei pela janela da sala. Não era nada demais, apenas outros prédios e algumas casas. Rê devia estar apenas brincando sobre a ú
- Mas é nossa primeira noite aqui. - Rê lamentou-se atrás de mim. Tentei me concentrar em meu cabelo, e não em sua pirraça. - Rê, dá um tempo. - prendi os fios cuidadosamente em um meio rabo - Como você disse, estou fazendo meu caminho. Ele revirou os olhos, vi pelo espelho, mas preferi ignorar. Eu estava começando a ficar atrasada. - E por que ele não te pega aqui na porta? Foi a minha vez de revirar os olhos. - Será que arrumei outro pai? - provoquei. &nb
Morar com meu melhor amigo não era difícil. Nos dias que se seguiram nós tivemos uma convivência tão boa quanto costumava ser quando morávamos na mesma casa. Tirando o fato de que Rê parecia incapaz de vestir uma roupa completa. Agora eu só o via em shorts e calças, sem nada para cobrir a parte de cima. As coisas com Murilo também seguiam tranquilamente - embora eu não conseguisse tirar a palavra morno da cabeça. Talvez estivéssemos caminhando tão lentamente que estivesse se tornando tedioso, mas eu também não sentia nenhuma vontade de acelerar. Claro que não contei nada disso quando fui almoçar na casa do meu pai.<
Rê não se atreveu falar comigo por um bom tempo. Parecia incrivelmente concentrado na estrada que eu mal enxergava passando ao nosso redor. - Certo. Já chega. - ele jogou o carro para o acostamento. - O que foi? - perguntei, sobressaltada pelo solavanco. - Bea, diga o que está sentindo. - ele desligou o carro e arrancou o cinto. - Eu não sei. - respondi tirando meu cinto - Acho que apenas minhas fantasias estão sendo destruídas. Nós imaginamos nossos pais apaixonados, perfeitos… - Certamente. - ele concordou - Você percebeu que meu pai teve um caso com
Rê estava emburrado, de braços cruzados e com as costas apoiadas no carro. - Vamos? - perguntei com cuidado. - Você me expulsou de lá. - ele reclamou. - Você parecia prestes a brigar. - justifiquei também cruzando os braços - Eu queria que ela se desarmasse. - E funcionou? - perguntou com desdém. - É, funcionou. - agora eu também estava ficando irritada, uma reação involuntária ao seu comportamento. Rê bufou, e com um movimento irritado, abriu a porta do carro e se
Parte 2 - Rê Tinha acontecido. Quando abri os olhos pela manhã, diretamente de encontro a janela com as cortinas abertas, fiquei atordoado. Quanto tempo eu tinha fantasiado aquilo? Pelo menos uns cinco anos? Talvez desde que Bea tinha se transformado em uma garota, não mais uma garotinha ou apenas minha melhor amiga. Mas eu não tinha esperado que acontecesse. Realmente parecia algo que apenas ficaria na minha imaginação, algo em que eu sempre acabaria pensando antes de dormir. Só que agora havia acontecido. E eu não fazia ideia de como Bea se sentia a respeito disso. Eu sinceramen
Bea não voltou o dia todo. Fiquei tão agitado que não consegui fazer nada, nem mesmo comer. Andei de um cômodo a outro, e quando ficou insuportável, a procurei pela rua. Eu sabia que era uma reação a Liam, mas não conseguia deixar de me perguntar se também não era uma reação a mim. Bea estaria fugindo de nós? Nós… como se existisse isso. Quando escureceu, voltei para casa e comi alguma coisa. Tudo parecia tão vazio e silencioso sem ela. Sem sentido. Será que ela estaria evitando voltar para casa se nada tivesse acontecido? Será que eu não era mais um