DanteO sábado amanhece cinzento e silencioso. Acordo com uma dor surda no ombro, um lembrete cruel das marcas que o passado me deixou. Massageio a área dolorida enquanto encaro o horizonte além da janela. O peso da decisão que preciso tomar se arrasta em minha mente como um espectro inevitável.Hoje é o dia da partida.A sindicância se aproxima, me cercando como uma sombra. Não posso mais ficar. O risco com os bolivianos é real. Sei demais. Permanecer aqui é como estender o pescoço para a lâmina. E, ainda assim, um pedaço de mim hesita. O que me espera além dessa fuga? O que resta de mim, além da incerteza?Isabela se levanta devagar, me observando em silêncio. Sei que ela percebe a tensão em meus ombros, o olhar carregado de dúvidas que não consigo disfarçar.— Está doendo? — Sua voz suave corta o silêncio com um cuidado que me desconcerta.Assinto, mas não olho para ela.— É mais o peso do que vem pela frente. — murmuro, sentindo os ecos de um futuro incerto pressionarem meu peito.
DanteDirijo pela estrada, a mente um redemoinho de dúvidas e lembranças. As palavras de Isabela ecoam, misturadas com a imagem das fotos de Alice, ainda bebê, os olhos grandes e curiosos, o sorriso puro que congelava o tempo. Deixá-las para trás seria como abandonar um pedaço da minha história. O peito aperta, um nó se forma na garganta.Quando a bifurcação que leva à casa de praia se aproxima, minha decisão já está tomada, antes mesmo de virar o volante. Desvio, guiado por um impulso incontrolável, uma necessidade visceral de segurar um fragmento do passado antes que tudo se apague. Mas a cautela grita. Não vou pela frente. Não sou ingênuo.Estaciono o carro distante, engolido pelas sombras densas das árvores. O motor morre em um sussurro, e o silêncio da mata me engole. Saio devagar, os passos medidos, cada folha sob meus pés um aviso, cada som amplificado pelo receio. O coração pulsa forte, um tambor no peito, enquanto sigo margeando a mata, o olhar atento a cada movimento, cada so
DanteO silêncio de Isabela pesa do outro lado da linha. Sei que ela está processando minhas palavras, tentando encontrar um jeito de me convencer a não fazer isso. Mas não há mais volta.— Não há o que pensar. Eles foram atrás de Ronilson e meu irmão será o próximo da lista, é questão de tempo. E o boliviano costuma resolver seus problemas pessoalmente, é ele quem está lá na casa, a minha espera e eu vou me armar até os dentes e volto para acabar com ele. Minha voz sai firme, mas por dentro, uma tempestade se forma.Fecho os olhos e sou tomado por um turbilhão de lembranças. Rafael, ainda adolescente, apontando o dedo no meu peito, a raiva estampada no rosto.— Você quer ser como ele, Dante? Como nosso pai? Um fantoche de criminoso?Eu ri. Sempre ri da seriedade de Rafael. Mas, no fundo, sabia que ele estava certo. Eu só não quis ouvir.Outra memória surge. Ele, já adulto, segurando meus ombros com força, os olhos carregados de decepção.— Eu tentei te salvar, irmão. Mas você escolhe
O cheiro de pólvora ainda impregna o ar quando saio da casa. Meu peito sobe e desce em respirações pesadas, mas não há alívio. Só o gosto amargo da vingança, impregnado na minha língua como ferrugem.As chamas começam a consumir a estrutura, o estalo da madeira sendo devorada pelo fogo ecoa na noite silenciosa. A fumaça sobe em redemoinhos, levando consigo os últimos vestígios dessa guerra. Eu queimei tudo. Como se fosse possível apagar o passado.Mas o passado não se apaga.O ombro direito me lembra disso a cada movimento. A dor é um eco constante, uma presença que não se pode esquecer. As platinas dentro de mim, substituindo carne e osso, raspam umas contra as outras como um lembrete cruel de que meu corpo está longe de ser o mesmo. Cada movimento, cada respiração, cada gesto simples, é uma batalha para manter o controle. Sou um homem remendado. Cada costura, cada fragmento de metal que agora compõe minha carne, é uma recordação de quem fui. Um homem quebrado.Seguro as fotos de Alic
Acordo com um estalo no meu corpo, o peso da dor me arrastando de volta à realidade. O ombro, marcado por platinas e remendos, arde como fogo. A dor não me dá trégua, como se cada movimento que eu fizesse fosse uma lâmina rasgando a carne, cortando mais fundo. Eu olho para a janela, onde a luz do amanhecer entra, mas o que vejo é uma mancha turva. O cheiro de pólvora ainda paira no ar, o cheiro do que fiz, do que sou.Minha mão vai instintivamente até o bolso da calça, e eu sinto o pequeno pacote que já se tornou familiar. A cocaína. No estado em que estou, já não sei mais como viver sem ela. Ela me dá o que o meu corpo não consegue mais — um alívio. Um intervalo da dor insuportável que me consome. Pego a pequena quantidade e, com a habilidade de quem já fez isso muitas vezes, despejo no buraco do ombro. A sensação é imediata, como uma onda que me atinge e me afasta ao mesmo tempo. O alívio vem em gotas, o ferimento se acalma, e por um momento, posso respirar sem que a dor me quebre.M
Eu sento à mesa, o café esfriando diante de mim, mas o vazio no meu peito é muito maior do que qualquer bebida quente poderia aquecer. A noite foi longa, cada minuto parecia uma eternidade. A cabeça, cheia de perguntas, me empurra para um lugar que eu não quero ir. Dante... Ele está em algum lugar, fugindo, ou talvez se escondendo de mim, mas o que me consome é a falta de respostas, a falta de qualquer sinal de vida. Como ele está? Onde está? O que aconteceu? A cada segundo, a angústia cresce dentro de mim, como se eu estivesse esperando por uma verdade dolorosa que eu sabia que não queria ouvir.Abro a tela do celular de novo, na esperança de que algo, qualquer coisa, apareça. Mas não há nada. Nenhuma mensagem. Nada que me diga onde ele está, ou o que está acontecendo. O silêncio me engole, e a cada olhar desesperado para a tela, me sinto mais distante dele.De repente, vejo uma notícia na televisão que chama minha atenção. "Uma casa pega fogo em Restinga da Marambaia e destrói tudo,
A dor em meu peito é uma pressão constante, como se algo dentro de mim tivesse sido esmagado e jamais pudesse voltar ao lugar. A sensação de perda é quase física, um buraco que consome tudo ao meu redor. Não tenho mais forças para lutar contra essa angústia. Eu a ouvi, cada palavra, cada suspiro, e ainda assim, fiz o que precisava ser feito. A verdade é que, no fundo, eu sabia que ia machucar. Sabia que ela ia sofrer.Eu a amo. Deus, como eu a amo. Mas o amor pode ser uma prisão quando você sabe que nunca será suficiente. Não quero ser um fardo. Não posso ser o homem que ela merece. Não agora. Talvez nunca. E se eu não a afastasse, ela estaria condenada a viver uma mentira. Eu, com essa dor constante, incapaz de trabalhar, incapaz de construir algo na fazenda... Eu seria um peso. E eu me conheço. Eu a destruiria. A última coisa que quero é ser a razão do sofrimento dela.O celular ainda está no chão, a tela rachada refletindo o brilho pálido do abajur. Olho para ele, sem coragem para p
Vamos até o quartinho de Alice, onde me deito na cama com ela. Pego um livrinho de histórias e começo a contar uma historinha, minha voz suave, tentando me concentrar na tarefa e não na presença dele. Dante está sentado na poltrona em frente a nós, com as pernas abertas, observando. Ele está se divertindo. Seu sorriso é torto, os olhos fixos em mim com um brilho de desafio. Ele é incrivelmente sexy, quase perigoso. Não posso negar, ele é o próprio demônio sedutor. Com aqueles olhos penetrantes, aquele corpo musculoso, e os braços que parecem feitos para me dominar. Ele é um monstro de bonito, impossível não perceber.Não se culpe, isso que você sente é apenas atração. Você não gosta dele!Quando Alice adormece, eu a cubro cuidadosamente. Me levanto da cama e, ao olhar para Dante, encontro seus olhos fixos em mim. Ele sorri de forma preguiçosa, seus lábios se esticando de um jeito que me desconcentra.Desvio os olhos, o coração batendo forte dentro do peito. Saímos do quarto, mas no co