“Quando o mal tentar dominar Atar,
duas jovens guerreiras de gênios e energias opostas,
vindas de outro mundo, trarão de volta a paz e o equilíbrio”
O belíssimo animal de crina castanha parou diante do paredão rochoso do que parecia apenas mais uma montanha como todas as outras. Os pés de Morgan, calçando botas de montaria, tocaram o solo e ela acariciou o cavalo, enquanto hesitava diante do que estava prestes a fazer. Mesmo sendo aquela uma rotina que repetia religiosamente a cada vinte dias no decorrer dos últimos dezoito anos.
Desamarrou a grande e pesada sacola de pano que trouxera presa ao corpo do animal e olhou para a montanha, pensativa. Estava frio e um forte vento gelado bagunçava os seus cabelos cacheados, mas a baixa temperatura não a incomodava. O que realmente machucava seu coração eram as lembranças das circunstâncias que a levavam corriqueiramente àquele local.
Respirando profundamente, ela criou coragem para o que precisava ser feito. Pediu carinhosamente ao cavalo que a aguardasse, sabendo que era o que ele sempre fazia, e caminhou devagar em direção à montanha, não parando nem mesmo quando estava visivelmente prestes a se chocar contra ela. Não foi o que aconteceu. Seu corpo simplesmente atravessou as paredes rochosas, adentrando a gruta escondida atrás dela. Lá dentro, sentada de forma confortável em uma cadeira, uma mulher a aguardava.
— Querida prima, por um momento imaginei que não viesse.
Morgan tirou a capa que a protegia do frio, deixando-a, junto à sacola que levara, sobre uma cadeira. Não se deu ao trabalho de responder. Sua prima sabia bem que ela nunca deixava de ir vê-la.
— Como está, Zaria?
Enquanto aguardava a resposta, Morgan a analisou. Zaria tinha a pele negra, um tom mais claro que a dela, e os cabelos enormes, batendo abaixo dos quadris, bem pretos e lisos. Apesar de sua condição de prisioneira, usava um luxuosíssimo vestido em tons de vermelho e vinho, com detalhes em dourado. Vestia-se tal qual uma rainha, não fosse por um detalhe: faltava-lhe uma coroa. A mesma prateada, ornada em pedrarias, que repousava sobre a cabeça da mulher à sua frente.
— Tão bem quanto uma prisioneira pode estar, majestade.
— Eu nunca quis que fosse dessa forma.
— Oras, não vamos começar de novo com essa ladainha, não é? Espero que tenha trazido alimentos mais saborosos dessa vez. As últimas frutas estavam a ponto de azedar.
Morgan não rebateu. Já sabia que, apesar de levar sempre os melhores frutos, grãos, pães e carnes, Zaria sempre reclamava. No fim das contas, não a culpava por aquilo. Mesmo vivendo com algum luxo, em um local decorado com belos móveis e com uma fonte de água fresca aos fundos da caverna, e de receber periodicamente bons alimentos, ser uma prisioneira não devia, mesmo, ser uma situação nada agradável. Ainda que soubesse que ninguém, além da própria Zaria, tinha culpa naquela situação. Mantê-la ali, em um ponto isolado e inabitado das terras de Atar, dentro de uma prisão onde mais ninguém, com exceção da rainha, conseguia entrar ou sair, era uma medida extrema tomada unicamente para proteger todo o mundo da cobiça daquela mulher.
— Os frutos do reino são da melhor qualidade, Zaria — Morgan respondeu, por fim.
Mas a outra deu de ombros.
— Tudo no reino é de melhor qualidade, não é? Até mesmo a rainha, que é tão boa que assumiu um trono que não era seu por direito.
Morgan suspirou, lamentando que o assunto voltasse a cair naquele ponto. Já estava mais do que cansada de se justificar, como se tivesse cometido algum crime. As leis de Atar eram claras: apesar de a linha de sucessão ser um fator importante, ele não era definitivo. O trono era repassado pelo governante atual ao primeiro sucessor que fosse legalmente habilitado. E a habilitação legal para isso era pautada no caráter. Em seu leito de morte, a rainha anterior não poderia, de forma alguma, passar o poder à sua única filha, já que esta na ocasião tinha acabado de ser julgada e condenada por uma série de crimes. Restou-lhe, então, repassá-lo à segunda na linha de sucessão, sua sobrinha.
— Isso representou um grande sofrimento à minha tia... — Morgan acabou externando seus pensamentos em voz alta ao se lembrar da antiga rainha, que fora obrigada a tomar duas atitudes extremamente dolorosas. A primeira, foi a de condenar a própria filha à penalidade máxima admitida em Atar: o total isolamento naquele lugar longínquo. A segunda, foi a de repassar sua posição à sobrinha no lugar da filha. Por mais que Morgan soubesse o tanto que a tia verdadeiramente a amava, era evidente que sempre sonhara em ver a filha ascender ao trono.
Novamente, Zaria deu de ombros. Expôs outra dúvida, sem, no entanto, demostrar muito interesse na resposta.
— Por que você vem pessoalmente trazer os mantimentos? É a rainha, deveria m****r algum subordinado. Imagino que tenha outras coisas mais importantes a fazer do que encarar dias de viagem apenas para me ver pessoalmente.
— Nada pode ser mais importante do que a família.
Zaria exibiu um debochado sorriso, mas isso não surpreendeu Morgan. Ela não esperava por qualquer atitude diferente da prima. Sendo assim, sua missão por ali estava cumprida, por ora. Apanhou novamente a capa sobre a cadeira e voltou-se para a prisioneira.
— Quer você goste ou não, voltarei em vinte dias, para trazer mais mantimentos e saber se está bem.
— Receio que você não vai a lugar algum, querida prima.
Morgan olhou nos olhos de Zaria para retrucar, mas logo que o fez percebeu o seu erro. Era para ser um olhar rápido, seguido pela resposta, mas foi como se sua voz travasse, juntamente a todo o seu corpo. Os olhos se mantiveram presos aos da prima, como se atraídos por uma força invisível. Força esta que ela, infelizmente, sabia muito bem do que se tratava: o poder de manipulação de Zaria. O mesmo que não deveria funcionar dentro das paredes daquela prisão.
— Surpresa! — Zaria sorriu ainda mais. Sabia que Morgan não diria nada, mas, ainda que isso não fizesse parte de seu poder, poderia jurar ser capaz de ler as perguntas que se passavam pela sua mente. — Quer saber como eu recuperei meu poder, não é? Adivinha só... eu tive uma pequena ajuda de alguém do lado de fora.
Quando Morgan conseguiu movimentar os olhos, tinha a ciência de que apenas conseguia tal feito porque Zaria assim permitiu. Com isso, ela pôde ver o pequeno animal que saiu de baixo da poltrona onde sua prima ainda estava, saltando para o seu colo. Um gato esguio, com a pelagem longa de cor alaranjada.
— Uma curiosidade sobre os gatos mensageiros: as paredes dessa prisão podem ser impenetráveis, mas a audição desses seres é apurada o suficiente para que ele fosse capaz de me ouvir. Foi uma questão de termos a conversa certa, de eu usar os argumentos certos e dar as coordenadas certas, e ele me trouxe tanto os aliados quanto a energia que eu precisava. Com ela, ele pôde entrar aqui, e, agora, eu também serei capaz de sair.
O desespero de Morgan aumentou ao ouvir aquilo. Sabia bem o que seria necessário para conseguir tal energia. E tal ideia a desesperou.
Contudo, não foi capaz de gritar, chorar, ou até mesmo de avançar contra aquela mulher que, agora ela tinha ainda mais certeza: não era nada além de um monstro. Não tinha mais controle de seu corpo. Sequer sentiu quando uma lágrima caiu sobre sua face. A pele estava anestesiada, embora a dor em seu peito fosse imensurável.
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