Fernanda estava já fora de perigo, apesar de muito machucada e abalada. Foi realizado exame de corpo de delito, mas os policiais diziam a Jobson que não tinham muito o que fazer. Não haviam testemunhas e, segundo o que apuraram, sua mãe não tinha condições de descrever bem os criminosos.
Teria que ficar agradecido por ela ter sobrevivido e de acordo com o conselho dos homens da lei, ela deveria tomar mais cuidado por onde ia e a que horas andava "por aí".Jobson não se conformava que, com a quantidade de luta de sua mãe, era ela ainda a culpada por ter que morar onde morava e ter que trabalhar até a hora que trabalhava. Ela mal dormia. Sua vida era trabalhar.Pôde ir vê-la. Segundo os médicos, logo ela teria alta também. Não porque estava bem, pois além de completamente ferida, seus olhos estavam perdidos. Sequer conseguia olhar o filho nos olhos. Porém, o leito de internação seria necessário para "casos mais graves".Enquanto isso, Nicolas, que havia passado algumas horas numa cela sozinho, acabava de receber sua soltura. Foi paga sua fiança por seus pais e iria começar uma investigação para saberem o que estava por trás daquilo tudo.O advogado já trabalhava com uma teoria de que tudo havia sido premeditado para afetar a imagem do pai de Nicolas.Dr. Carlos havia sofrido recentemente ataques online, principalmente depois que comprou uma empresa de publicidade. Rapidamente, tudo passou e com uma rápida negociação com o promotor, não ia constar nem na ficha do garoto tal acusação.De alta, a mãe de Jobson, já em casa, não conseguia levantar pra ir trabalhar. Mesmo com um atestado de alguns dias, ela precisava, num dos empregos do qual não tinha registro, trabalhar pra receber. Ela tentou, mas não tinha forças, não tinha coragem de sair para a rua. Teve pesadelos horríveis. Teve febre alta. Os filhos de Fernanda não sabiam o que fazer. Ela não queria que eles chamassem ninguém para ajudar. Tinha uma enorme vergonha e um verdadeiro pavor de ter que contar a história para alguém e relembrar tudo o que aconteceu.Jobson não foi pra escola. Nenhum deles foi. Ele pensou que precisava cuidar da mãe, mas acima de tudo, ia precisar arrumar um jeito de conseguir dinheiro para segurar as contas. Sua mãe era o chão deles e sem ela, não havia mais nada.Tinha ouvido falar de uma empresa que ia contratar jovens aprendizes de origem mais simples. Ele já queria ter feito isso antes, mas sua mãe disse que precisava dele em casa, ajudando com os irmãos. Estava esperando a maioridade que estava próxima para tentar uma vaga efetiva em algum lugar e assim ganhar um pouco a mais. Mas se estava indeciso uns dias antes, agora ele tinha certeza que deveria fazer isso. A entrevista geral já era naquele dia mesmo. Se preparou, treinou tudo que achava que deveria fazer, mentalmente. Quando chegou lá, foi dispensado sem maiores explicações, logo após preencher a ficha, junto com alguns outros.Ele tentou não pensar que entre a maioria dos dispensados estavam negros e dentre a grande maioria dos que ficaram estavam brancos. Ainda assim, não conseguiu deixar de reparar.Saiu triste e, logo na entrada do prédio, encontrou Maycon, o motorista, parado próximo da porta do mesmo carro de quando o conheceu. Coincidentemente, aquele prédio, aquela empresa era do Dr. Carlos e era por ele que Maycon aguardava. Ele perguntou o que o garoto fazia ali. Este, por sua vez, respondeu o que tinha acontecido e, compadecido do garoto, o motorista disse que ia ajudar. Pediu o número de Jobson, mas seu telefone não estava funcionando. Pediu, então, para ele aguardar ali. Podia demorar um pouco, mas ou ele ia voltar ou m****r alguma notícia. Em menos de uma hora, uma pessoa o chamou para voltar à sala de Recursos Humanos. Lá estava o mesmo recrutador que o mandou sair, dizendo que ele seria contratado. Não precisou de nada, nem de teste, nem de entrevista. Já começaria no dia seguinte, era só aparecer no horário combinado com os documentos da lista que recebeu. Jobson mal podia acreditar no que tinha acontecido e na sua sorte.A contratação de Jobson renovou as esperanças de sua mãe. Ela transformou seu sentimento de tristeza e vergonha em orgulho do filho. Era como se sua mente tentasse esquecer o que tinha vivido e entrar em uma nova realidade. Suas forças estavam renovadas. Ela fez marmita para ele, mesmo ele dizendo que não precisava, que ele próprio podia fazer, pra ela ficar tranquila. Ela fez questão. Comprou e preparou até um bife, afinal, era o primeiro dia. Acompanhou cada passo dele, ajudando-o e apoiando-o. Fazia muito tempo que ele não sentia isso por parte da mãe, tamanha atenção, carinho e dedicação. Aliás, ele nem se lembrava se algum dia ela já tinha sido assim com ele. Os dois saíram juntos para o trabalho, os horários coincidiam.Jobson estava muito feliz. Ele seria uma espécie de "faz-tudo". Na verdade, nem o chefe dele, onde ele foi designado, sabia exatamente a função do rapaz. A vaga para a qual tinha se candidatado tinha sido ocupada por outra pessoa. Mandaram que ele apenas ocu
Após o acontecido, Nicolas ganhou a oportunidade de seu pai de começar a trabalhar na empresa. Seria apenas 4 horas por dia, mas Dr. Carlos achava que era hora do filho entender a respeito de responsabilidades. Apesar de que, horário flexível, função sem tantas cobranças, com tarefas acessórias e sem corte de mesada, pelo contrário, com salário registrado, não estava muito dentro do que se pode chamar de responsabilidade. Ainda assim, seria bom para o garoto começar a se ambientar com o ambiente organizacional. Em sua chegada na empresa, ele parecia um chefe. Todos já sabiam que ele viria. Desde sua descida do carro, porta aberta pelo motorista, até a chegada no anti-penúltimo andar do prédio, onde seria sua sala, todos o cumprimentaram e o trataram como uma espécie de ídolo, artista. Sentou em sua mesa, havia algumas dicas em lembretes ao lado do teclado do computador. Logando no sistema haviam sugestões de projetos dos quais ele poderia escolher para participar. Todos eram
O segundo dia de Jobson no emprego foi mais fácil. A chegada em casa na noite anterior também tinha sido boa e motivadora para um dia seguinte. Ele tinha pequenas tarefas, a maioria delas relacionadas a documentos, arquivamentos, organização de papéis. Por sorte, ele era muito bom nisso. Quando era um pouco mais novo, auxiliava a vizinha Adalgisa, já idosa, que era bibliotecária. Ele gostava de ler e a biblioteca pública era perto da casa onde morava. A vizinha era bibliotecária lá e, vez por outra, ajudava-a a carregar livros. Ela sempre dava alguma caixinha para ele. Com a amizade, ela acabou ensinando algumas coisas, como o padrão de organização, o tipo de ordens, o que significavam os números de tombo. Ele era muito esperto, aprendia muito fácil. Usou uma lógica muito parecida, agora, para organizar melhor os papéis do Dr. Ricardo. Organizou, também, os livros. Aliás, ele tinha muitos livros em sua sala, era praticamente um elemento decorativo. Já Nicolas, em seu segundo dia
Os dois lembraram da conversa amistosa que tiveram no almoço antes de dormirem. Ambos tiveram uma sensação estranha a respeito de uma amizade, de uma forma que nunca tinham sentido antes. Nada tinha mudado na rotina deles até a chegada ao trabalho. Jobson ainda teve sua manhã bem suave de uma forma que parecia começar a se tornar uma rotina.Nicolas por outro lado teve um início de dia bastante agitado.Chegando perto do escritório, os olhares para ele eram mais fuzilantes que no seu primeiro dia. A saudação de bom dia de Sandra foi seca e sem desviar o olhar de suas tarefas. Adentrando em sua sala, estava lá, em sua cadeira, seu pai.- Bom dia, filho! - disse Dr. Carlos, num tom entre autoritário e conciliador, que Nicolas raramente sabia diferenciar.- Bom dia, Dr. Carlos, que bom que pôde vir me ver depois de eu ter pedido uma audiência - respondeu o filho, em tom de ironia, afinal, além do pedido de jantar que fez para a mãe, já tinha feito duas tentativas de encontr
Vez por outra se cruzavam de longe, horário de entrada no trabalho era próximo, na saída era mais difícil. Nicolas saia mais cedo que Jobson. Mas ainda não tinham sequer se cumprimentado novamente.A rotina dos dois foi ficando mais comum, natural, sem grandes novidades. Num desses dias que se seguiu, essa repetição de processos foi quebrada de uma forma trágica. Uma explosão elétrica no prédio culminou num incêndio de grandes proporções, no meio da tarde, no auge do período de trabalho, com alta lotação do contingente de funcionários. O desastre aconteceu no meio do edifício e os funcionários da parte mais baixa, incluindo Jobson, conseguiram ser evacuados rapidamente. Mas quem estava na parte alta do prédio, principalmente o alto escalão da empresa, incluindo Nicolas, ficaram presos.Jobson que estava muito próximo da região do local onde o fogo estava mais forte, ao entrar na escada de emergência, pensou se deveria descer. Ele tinha treinamento básico de brigada de incêndio
- Mãe, você pegou meu secador de cabelo de novo? - A pergunta era frequente naquela casa e a resposta, na maioria das vezes igual.- Dafne Cristina, eu pego seu secador quantas vezes eu quiser, a hora que eu quiser. Quem comprou fui eu, aliás a dívida do cartão de crédito tá lá ainda, se você quiser pode pagar pra exigir que eu não pegue. - Sua mãe sempre respondia nervosa, como se qualquer pergunta fosse uma acusação. - Mas mãe, será que você não pode pôr de volta no lugar depois de usar? Ou pelo menos deixar num mesmo lugar? Cada hora tá num canto e eu tenho que ficar procurando, atrasada. - Muitas vezes a filha parecia a mãe naquela casa.Era comum que, com a idade, algumas pessoas que tiveram muitas responsabilidades acumuladas durante toda a vida, decidam que seja o momento de tentarem, de certa forma, aproveitar o tempo perdido. Era o caso de Auxiliadora, mãe de três filhos, dois homens já casados de mais de 30 anos e de Dafne, com 18 anos recém completados. Desde os
No dia seguinte, Jobson foi tentar trabalhar como se nada tivesse acontecido, mas somente as equipes de limpeza e segurança estavam lá. O celular dele não funcionava e sua mãe, de quem era o número de contato que ele tinha deixado, também não tinha recebido notícias do Dr. Ricardo sobre o que fazer. Quando a equipe o reconheceu assim que entrou no prédio, todos pararam o que estavam fazendo e começaram a aplaudi-lo. Ele ficou completamente sem graça e um dos seguranças foi cumprimentá-lo, levando-o para uma outra área. - Você não está acostumado com a fama, né? - perguntou ele, abrindo a porta de uma sala vazia, onde entraram. - Não, definitivamente não - respondeu Jobson. - Me chamo Glauber, sou o chefe dos seguranças. Achei que seria melhor trazê-lo para cá. Você trabalha nos escritórios, não trabalha? É jovem-aprendiz, estagiário, não é? - Jobson respondeu que sim com a cabeça à pergunta dele. Ficou com receio de explicar que sequer sabia ao certo sua função e
O tempo foi passando, Jobson conseguiu colocar algumas contas da casa em dia, fazer uns mimos para mãe e rapidamente voltou ao trabalho. Continuava trabalhando com o Dr. Ricardo, mas uma carga horária menor, já que ganhou dois cursos da empresa, um de técnico em segurança e outro para auxiliar de administração. Como ele ainda estava no último ano da escola, recebeu a promessa também de que ganharia um curso superior na área que ele escolhesse ligada à empresa. Saiu até no noticiário. Como parte do pacote, a empresa anunciou uma série de mudanças, como a da ampliação de sua brigada de incêndio e equipe de primeiros socorros, o que na verdade, praticamente era uma ampliação de zero para alguma coisa, e reformas na integração social dos funcionários. O marketing da empresa achou que essas medidas trariam uma repaginada para a imagem arranhada pelo incêndio. Como símbolo dessa renovação escolheram as figuras de Nicolas e de Jobson. Por conta disso, suas agendas acabaram se encontran