Capítulo 5

Badá

"Ninguém confia em ninguém, é melhor assim. Eu nem na minha sombra e nem ela em mim.

Hoje qualquer muleque tá andando armado, puxar o cão sem pensar, pra ser respeitado.

Eu tô ligado, eu sei quem é quem, o super-homem de bombeta vai matar alguém.

Sendo refém de espíritos malignos, mal intencionado, cínico, leviano, indigno. Fui obrigado a conviver com isso, com uma quadrada e um velho crucifixo. É sempre bom andar ligeiro na calada, A VIDA NÃO É UM CONTO DE FADAS!"

Encosto a cabeça na parede jogando a fumaça pro alto, falta pouco tempo pra eu ficar aqui dentro.

A notícia que Rangel trouxe lá de fora não é a melhor delas, e eu não posso imaginar o que Maria tá sentindo agora.

Perder um ente querido é sempre doloroso, mas uma mãe, deve ser uma parada coisa de louco, da até um arrepio só de imaginar.

LK: tá pensativo aí por que, irmão?

Badá: várias fitas pra resolver quando sair daqui. Só queria paz e sossego por um tempo.

LK: Tu é chefe, tem paz não. Trabalha até aqui dentro.

Badá: Que nada, po. Colônia de férias, lá fora eles que se virem.

LK: 15 anos trancado, tô curtindo essa colônia de férias mais não mano, o papo é reto. Logo menos tô me saindo daqui!

Ouço os passos pelo corredor que eu conheço bem, era notícia boa ou uma grande merda, mas como sou sortudo pra caralho, fico com a primeira opção.

Guarda: Seu alvará chegou adiantado, Badá. Arruma tuas coisas que tu vai sair! - ele fala e vira de costas, sabendo que eu tinha que fazer uma ligação e ele tava pouco se fudendo se eu tinha um radinho aqui dentro, só queria fazer seu trampo em paz sem ter guerra com ninguém.

Ligo pro Rangel que já tava no toque pra descer, tô tô pra ver minha coroa, meu moleque, po... Só alegria! 15 anos caralho, muito tempo aqui dentro, sei nem como tá o mundão lá fora, mas tô pronto pra descobrir.

Badá: Ae mano, fica na paz. Satisfação esses anos ao seu lado aqui.

LK: Vai na paz, bada. Logo menos tô chegando pra gente trocar uma ideia na moral. Dá um abraço no moleque lá por mim!

Afirmo com a cabeça e me viro de costas pra grade da cela, sempre me levam algemado, sem necessidade nenhuma, já tô aqui a mó cota, se fosse pra matar alguém só pra fugir, eu já teria feito isso. 15 anos guardado não é pra qualquer um, a mente fica bagunçada, e na primeira semana você já quer armar um esquema pra sair daqui. Tô ligado como é, tem que ser forte pra caralho, parceiro.

Passo pelos corredores ouvindo o buchicho de uns e outros, o tanto que já tentaram me passar a perna aqui dentro, tu nem tá ligado, mas a minha fé sempre foi naquele lá de cima, que olha para todos e todos tem o mesmo valor.

Minha mãe nem sabe que tô saindo, eu poderia ter ligado pra falar, mas quero fazer uma surpresa pra minha coroa. Só Deus sabe de todo sofrimento dela durante esses anos, mas se eu pudesse voltar atrás e mudar algo, eu faria exatamente tudo da mesma forma, lugar de verme é a sete palmos da terra. E é o papo.

Passo na salinha trocando de roupa, esse uniforme surrado foi meu companheiro durante bons anos, mas já está na hora de se despedir. Permaneço calado, sem falar nada com ninguém aqui dentro. Não tenho nada para agradecer a nenhum deles, paguei minha pena e agora estou livre, quer ser reconhecido vira advogado, não pago pau pra guardinha safado não.

Os portões que mais parecem a muralha da China de tão alto, se abrem... Um som estrondoso parecendo a porta do inferno, e eu passo por ela inalando o ar que enche meus pulmões, já que o único ar que eu inalava dentro da cadeia, era o da morte, mas ela ainda vai demorar uma cota pra vim me buscar.

Rangel me aguarda a uns metros distante, consigo ver seu sorriso através do vidro do carro, com uma outra novinha do lado que eu nem tô ligado quem é. Só arruma doida esse dai, depois liga reclamando que mulher não presta.

Tá cedo, significa que vou curtir meu primeiro dia de liberdade depois de quinze anos aqui dentro. Vou ver meu filho, dar um abraço na minha coroa e depois se pá, dá uma atenção pra Maria. A mãe dela morreu e eu nem imagino como deve tá a cabeça dela agora, tô ligado que ela não tem pai, é só tinha a mãe por perto.

Suspiro me aproximando do carro, doido pra tirar essa camisa branca que me faz parecer um louco, tomar um banho maneiro e cortar o cabelo daquele jeitinho. Dentro da cadeia a gente se vira como pode, tem uns manos que ainda se arriscam em meter umas tatuagens lá dentro, mas eu fui de boa, todas que eu tenho foram feitas antes de eu cair lá dentro.

Rangel sai de um lado e vem em minha direção, considero esse moleque pra caralho, é mais novo que eu, quando fui preso ele ainda era uma criança, mas sempre me ajudou em tudo que eu precisei lá dentro, considerado máximo demais.

Rangel: Coe, mó saudade de tu, paizão! - Ele aperta minha mão e eu olho por cima do ombro, a menina que encara em mim.

Badá: Tô de volta! - estalo a língua no céu da boca e respiro fundo - Quem é ela?

Rangel: Helen. Amiga da Maria, po.

Badá: E ela tá como? Fiquei sabendo da mãe dela. Já enterrada?

Rangel: Tá rolando o velório ainda. Deve ser enterrada na parte da parte.

Badá: Humm... pode crê! - Ele enfia a mão no bolso me entregando um celular, tô nem ligado como mexe nessa porra, quando fui preso não existia isso.

Rangel: Depois te dou o papo de como mexe. - Afirmo com a cabeça e entro no carro.

Rangel faz o mesmo e da partida dali, o sol está estalando, só queria uma praia nesse momento propício. Mas tem tanta coisa que quero fazer só no dia de hoje, que ele poderia ter facilmente trinta e duas horas.

Faz tanto tempo que fiquei lá dentro, que acho que não sei mais o caminho até o Salgueiro. Papo reto mermo.

Vou o caminho inteiro pensando em altos bagulhos, tudo que queria agora era uma vida de paz e sossego, mas eu tô ligado que meu legado ainda vive no morro, e por mais que eu queria alugar uma casa no meio do mato e viver isolado, não vou conseguir isso nem tão cedo. Então de fato, vou ter que me contentar com minha realidade, por enquanto.

Na entrada da minha comunidade, a diferença já está nítida. Não está do jeito que eu sai daqui, parece ter mais cor e leveza, sem falar que tem mais uma porrada de casa amontoada, coisa que eu achava impossível de ser feito. As crianças correm de um lado para o outro na rua, enquanto o bar da esquina toca um samba daquele jeito. Carnaval tá aí, e eles estão só no aquecimento.

Badá: Para lá no salão da Érika, vou ver meu filho e depois vou pra casa. - Ele afirma com a cabeça e desvia o caminho.

É salão, padaria, barbearia é uma porrada de comércio que abriu aqui, sorrio satisfeito. Sempre quis que minha comunidade crescesse desse jeito, e vejo que isso aconteceu sem que eles precisassem de mim.

Badá: Alguém além de você, sabe que eu sai da tranca?

Rangel: Não po, só eu mermo.

Badá: Suave então. - Ele para em frente ao salão com os vidros do carro ainda fechados. - deixa o carro comigo, quero ir pra casa logo mais e não quero que ninguém saiba ainda. Se pá, organizo um baile. E mais tarde falo contigo.

Rangel: Tranquilo paizão. Bem-vindo de volta pra casa!

Desço do carro acionando o alarme, a rua está mais calma, diferente de lá embaixo.

De longe já ouço a voz de Érika gritando que eu presumo ser com Samuel, fiquei sabendo que esse moleque é virado no jiraia, raça todinha do pai, como a mãe dele vive falando.

Eu paro de frente a porta de vidro que está aberta, e Samuel está sentado no banco de frente pra porta, porém com a cabeça abaixada olhando o celular, e nem percebe a minha presença.

Dou um assobio e ele levanta o olhar me encontrando. Só ouço os passos dele correndo quando sinto o impacto dele pulando em meu colo... Primeiro abraço que dou em meu filho. Porra, que sensação gostosa pra caralho.

Badá: Eai, moleque. Como tu tá?

Samuel: Eu tô bem pai, e você?

Badá: tô suave agora. - Desço ele do colo e observo seu uniforme da escola - Tá chegando agora da aula?

Samuel: Não, eu ainda vou.

Érika: Samuel, vai pegar sua mochila. - ela grita lá de dentro, e estremece quando b**e os olhos em mim - Saiu quando?

Badá: De manhã. Parei aqui primeiro! Samuel: Por que a Maria não pode me levar na escola? To com saudades dela.

Érika: Eu já te falei. Essa semana eu te levo, deixa a Maria em casa. Ela nem enterrou a mãe ainda.

Um flash de memória me invade, Maria tinha me dito que trabalhava como babá, só não sabia que era a babá do meu filho.

Badá: Deixa que eu levo ele. Vai buscar tua mochila lá. Amanhã a gente conversa, Érika.

Ela afirma com a cabeça e Samuel entra.

(...)

Encaro a casa da minha mãe ainda do outro lado da rua, ela não tem noção que já estou aqui, mo saudades da minha coroa. Respiro fundo e desligo o carro, tô ligado que deve tá cheio de gente lá dentro, como sempre foi. Minha vó deve tá coroinha já. Sem falar no meu irmão que quando eu sai daqui, ainda era criança. E agora já tá até casado.

Atravesso a rua e abro o portão no talento, o macete existe até hoje, não mudou nada. Um portão de ferro que agarra no chão e precisa levantar ele pra abrir. Daqui já ouço o burburinho lá dentro, hora do almoço é sempre assim.

Eu passo por trás parando na porta da cozinha, e todo mundo para o que estava fazendo para me olhar. Minha tia arregala o olho e cutuca o ombro da minha mãe que estava de costas. Ela se vira, e quando me vê, dispara pela cozinha jogando o pano de prato em cima da mesa.

Ela me abraça tão forte, que por uma fração de segundos fico sem ar, totalmente sem ar. Retribuio o abraço beijando sua testa. Ela chora, mas sei que é um choro de alívio, e que nunca mais vai chorar por mim lá dentro. Cumpri minha pena por ter matado o verme que se dizia meu pai, poderia ter fugido, mas quis botar a cara na reta por isso.

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